ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

sábado, abril 30, 2005

 

Rogério Samora + Paulo Coelho = Paul Auster




Paul Auster, que anda por cá a fazer as delícias dos adolescentes, é um escritor único: fisicamente parece o Rogério Samora e literariamente o Paulo Coelho. Livra!

quarta-feira, abril 27, 2005

 

Pequeno esclarecimento



Só para dizer que a expressão «Vá de Metro, Satanás» é do Alexandre O'Neill, não fossem os leitores do Barnabé pensar que a autoria da frase é do Daniel Oliveira . Para quem não sabia, e não são assim tão poucos, o O'Neill, além de poeta, foi publicitário e inventou frases publicitárias como "Com colchões Lusoespuma não se dá só uma".

terça-feira, abril 26, 2005

 

Conhece-te a ti mesmo



David Hockney, "Portrait of an Artist (Pool With Two Figures)", 1971

Colton diz: se queres inimigos, distingue-te sobre os outros; se queres amigos, deixa que os outros se distingam. E tu? O que é que queres?

segunda-feira, abril 25, 2005

 

LUIZ PACHECO, "O MEU 25 DE ABRIL"

A LER, NO NÃO SEI BRINCAR, TEXTO INÉDITO DE LUIZ PACHECO.

A NÃO PERDER TAMBÉM, DURANTE A SEMANA, ENTREVISTA INÉDITA A LUIZ PACHECO. AQUI, NO ESPLANAR.

sexta-feira, abril 22, 2005

 

Reportagem da Feira da Ladra





Romper da manhã, Feira da Ladra. Na última terça-feira fui à feira vender tralha, coisas do arco da velha que tinha para aqui a ocupar espaço e que não interessam nem ao menino Jesus, livralhada, presentes para esquecer que me foram oferecidos no Natal, enfim, bugigangas. Montei escritório junto ao gradeamento do jardim de Santa Clara, mesmo em frente à esplanada do café Panteão e ao Tribunal Militar. Instalei-me ao lado do João Vinagre, um dos vendedores mais batidos da Feira e, simultaneamente, empreiteiro da construção civil. Tratei de puxar conversa, o que não foi muito difícil. Ainda não tinha acabado a primeira frase e já ele tinha desatado a falar. Levantou-se pouco depois da cadeira, branca e de plástico como as das esplanadas, dirigiu-se à carrinha estacionada em frente, enfiou a mão no bolso de dentro do casaco e deu-me um cartão. Quando não está na feira remodela apartamentos, repara telhados, afaga soalhos, aplica flutuantes, faz envernizamentos, tectos falsos, estuques, pinturas, vidros duplos, divisórias, resguardos para banheiras e polibans, conserta estores, marquises, etc. Faz orçamentos grátis e pode-se pagar em prestações. É possível que já tenham ouvido falar dele: o Vinagre é um daqueles jeitosos que invade as nossas caixas de correio com papéis de publicidade. E é também uma das pessoas mais conhecidas da Feira da Ladra. Aliás, o Vinagre é a própria Feira da Ladra. Se eu fosse o José Gil ou o Eduardo Lourenço, diria que a Feira da Ladra é o nosso país em ponto pequeno, é um Portugal em miniatura. Está lá a Igreja, o exército, o tribunal, o hospital, a Casa Pia e, claro, a quinquilharia típica das casas portuguesas.
Se forem à Feira perguntem pelo Vinagre ou, então, pelo “otário da Feira da Ladra”. Assim mesmo, palavra de honra. O próprio Vinagre já não liga ao insulto, já não se importa, já tanto lhe faz. A história tem muito anos, remonta aos primórdios da década de 80. Ouçamo-lo, de cigarro entalado entre dois dedos: “nas obras, às vezes, apanham-se coisas que uma pessoa nem sabe o que é que tem nas mãos. Por exemplo, o lixo deixado para trás pelos antigos donos das casas que estou a remodelar. É aí que vou buscar muita coisa que depois vendo na feira: papéis velhos, brinquedos partidos, bibelôs, ferramentas e objectos de cozinha enferrujados, etc. Numa dessas casas encontrei, entre outras coisas, não sei bem se era o canhoto de um cheque, se uma cédula, uma apólice, sei lá, não quero saber e, se querem saber, tenho raiva de quem sabe, bom, era uma espécie de papel moeda que circulava na Índia. Sei é que vendi o papel por cem paus, julgando eu que estava a fazer um dinheirão. Mais tarde, num leilão, o gajo vendeu aquilo por 17 mil contos. A história até veio no jornal, na primeira página, em letras grandes: «Otário da Feira da Ladra». A partir daí nunca mais tive sossego. No princípio ainda respondia, chateava-me, chegava a vias de facto, agora não. Já tenho feito bons negócios, nada que se pareça, lá está, com os 17 mil contos do outro, mas têm compensado um pouco, como o disco de vinil dos Beatles, aquele disco todo branco [o White Album], tinha era um número de prensagem baixo, vendi-o aqui vai para dois anos. Sabem por quanto? Quinze mil euros... três mil contos, na moeda antiga. E singles? Dos Queen, por exemplo, já tenho vendido por 400 e 500 contos. Há vinis a render muito dinheiro, muitos milhares de contos. O vinil é do que se procura mais na Feira. De resto, na Feira, agora só se encontra é lixo, só se vende é lixo, não há nada que preste [teve um estremecimento de cólera, beliscou a asa do nariz e alargou o olhar pelo Largo do Mercado de Santa Clara]. Sabes onde é que ainda encontras coisas boas, coisas de valor?, em Algés, aos domingos. Hoje em dia o que é bom vende-se em Algés. Em Algés encontras as mesmas pessoas que na Feira da Ladra só que mais bem vestidas. Isto aqui é só fachada. Estão lá os mesmos gajos mas com outra personalidade. Eu só queria era que a Câmara Municipal voltasse outra vez a subsidiar obras, recuperações de prédios antigos, com o RECRIA. Há aí muito velhote a morrer e os herdeiros, quando não são conhecedores do que é bom, deixam muita coisa de valor pelo caminho. Eu às vezes deito os bancos do carro e ando aos contentores das obras, nas madrugadas de terça e de sábado. O problema é que a Câmara agora parou com o RECRIA. Sabes quem é que também tem a culpa? As lojas dos 300 e as lojas dos chineses...”
Enquanto o Vinagre continuava o monólogo, entrecortado pelo som do rádio, sintonizado na Seixal FM, eu ia olhando e inspeccionando o que ele tinha para vender. Livros vários, uns mais conhecidos, outros de que nunca ouvi falar, obras com títulos exóticos e anacrónicos, com as páginas amareladas, casca de ovo, cheirando a um pó muito velho: O Astro, de Janet Clair, o romance que serviu de base à telenovela com o mesmo nome; Ela quis viver os seus sonhos, de Luciana Peverelli; Os filhos da droga, da Christiane F. (13 anos, drogada, prostituta...); Bastardos ao Sol, do Urbano Tavares Rodrigues. Coisas tão bizarras como os Acórdãos do Tribunal da Relação de Luanda ou o Projecto de Convenção destinada a evitar as duplas tributações (edição dos cadernos de ciência e técnica fiscal). Isto para não falar do boletim mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, do dicionário de Inglês Comercial ou dos imprescindíveis Aspectos da Produtividade na Videira e Botânica Criptogâmica. Na verdade, se quisermos perceber os hábitos de leitura dos portugueses na década de 70 e de 80, se quisermos conhecer os livros que formaram gerações de portugueses, portugueses que viveram a Guerra Colonial, o 25 de Abril, a Guerra Fria, conhecer profundamente os portugueses que hoje mandam no país, basta percorrer a Feira da Ladra. Académicos, especialistas em Antropologia, em História, em Sociologia, investigadores das Ciências Sociais, das Ciências Humanas, abandonem os gabinetes, renunciem ao conforto dos centros de investigação, larguem os livros, desamparem as bibliotecas, vão à Feira da Ladra. Está lá tudo. Os livros do Pitigrilli, do Eric Ambler, do Evan Hunter, do Edgar Wallace, os livros de guerra do Sven Hassel, os romances de Stefan Zweig e do Alexandre Dumas, os policiais de Jack Higgins e, de uma forma geral, as mais variadas edições do Círculo de Leitores ou das Selecções do Reader’s Digest. Há os clássicos do marxismo, que inundaram a década de 70, logo a seguir ao 25 de Abril: Que são as Classes e a Luta de Classes?, de A. Ermakova e V. Rátnikov, das edições Progresso, ou O Materialismo Histórico, de A. Spirkine e O. Yakhot, edição da Estúdios Cor (colecção Breviários de Cultura), isto para não referir as inesgotáveis e infatigáveis edições da Seara Nova (Porque se Revoltam os Estudantes é apenas um exemplo), as obras completas do Lénine ou a História da U. R.S. S., do camarada Louis Aragon.
Agora, como antes, os leitores portugueses sentem um grande fascínio pelos “Grandes Livros”, como O Grande Livro do Gato ou As Grandes Evasões do Passado; pelas enciclopédias, como a Enciclopédia da Vida Sexual ou O Mundo em que Vivemos; pelos fenómenos do desconhecido, como os Grandes Mistérios, A Maldição dos Faraós, O Mistério das Bermudas ainda de Pé ou Mistérios OVNI: O Que Lhe Andam a Esconder. Os leitores portugueses do que gostam mesmo é de livros com os Recordes da Natureza, livros que ensinem Como Interpretar Os Seus Sonhos ou A Linguagem do Corpo: gestos e posturas que revelam a sua personalidade. Mas como não é só de literatura que vive um homem, o João Vinagre não vende apenas livros, vende também exemplares da revista Xis, aquela distribuída aos sábados com o Público, vende postais de cinema, daqueles que qualquer bípede pode adquirir, de borla, nos cinemas do Dr. Paulo Branco, como o Monumental ou o King, vende teclados de computador, vende o word perfect para DOS, vende calculadoras, borrachas usadas, afias, bombas para encher os pneus das bicicletas, bonecos dos ovos de chocolate kinder surpresa e da PEZ, roupa em segunda mão, discos vinil, como Tonight I’m Yours, de Rod Stewart, o Hotel California, dos Eagles, ou singles dos Salada de Frutas, maçanetas, molhos de cabides a 50 cêntimos cada, carregadores e capas de telemóvel, cassetes de vídeo caseiras, com filmes gravados da TV (reparei em Cocktail, com Tom Cruise), maços de meias (sem defeito, 100% algodão), uma TV antiga, mais defunta que o Camões. “Mas trabalha com uma granda pinta e o resto é música”, disse-me o João Vinagre. Depois, limpou os lábios com as costas da mão esquerda e começou a atacar uma sandes de carne assada.

quinta-feira, abril 21, 2005

 

LUIZ PACHECO




EM BREVE, E A QUALQUER MOMENTO, GRANDE ENTREVISTA, INÉDITA, AO ESCRITOR LUIZ PACHECO.

quarta-feira, abril 20, 2005

 

Conhece-te a ti mesmo



Pierre Louys sobre a infelicidade: há duas maneiras de ser infeliz, desejar o que se não tem ou possuir o que se desejava. E tu? Qual é a tua infelicidade?

 

Marxismos Imaginários

O António Vergara está-se a passar.

segunda-feira, abril 18, 2005

 

Edmundo Pedro: entrevista




Edmundo Pedro é um homem de acção, daqueles que andam aos tiros. Com 15 anos de idade viu-se dentro de uma prisão, acusado de actividades conspirativas no 18 de Janeiro de 1934. Passado um ano, já em liberdade, foi eleito para a direcção das juventudes comunistas e organizou movimentos de agitação e propaganda nas Escolas Industriais.
Subversivo reincidente. Perigoso! Em 1936, Edmundo Pedro foi preso pela segunda vez, mas agora para inaugurar o Tarrafal, juntamente com o pai e outros dirigentes do PCP. Tinha 17 anos quando desembarcou em Cabo Verde. Tentou fugir várias vezes. Numa delas, quase conseguia, foi por pouco. Ainda conseguiu roubar um barco de pescadores, mas apanharam-no. Por causa disso, esteve 70 dias seguidos na terrível “frigideira”. Como se não bastasse, o PCP castigou-o com dois anos de suspensão: a fuga não tinha sido autorizada, ninguém podia fugir sem antes informar ao Partido. Bateu com a porta. Não estava para isso. Nunca mais quis voltar. “Fui educado lá dentro, sei como é”.
Na família eram quase todos revolucionários, a mãe, o pai, os irmãos. Edmundo Pedro nasceu a 8 de Novembro de 1918, no Samouco (Alcochete), fruto do amor entre um varino e uma jovem camponesa. Mas Margarida e Gabriel Pedro moviam-se nos meios altamente perigosos do anarco-sindicalismo, andavam de agitação em agitação. O melhor a fazer era deixar o pequeno Edmundo aos cuidados da tia paterna, a única que era conservadora na família. A tia queria que ele fosse engenheiro naval, mas Edmundo escolheu ser como os pais, um revolucionário. Fugiu de casa da tia aos 13 anos, idade com que aderiu ao PCP e iniciou a sua actividade anti-fascista.
Edmundo Pedro só saiu do Tarrafal com o fim da II Grande Guerra, na amnistia de 1945. Regressou com 27 anos, alguns cabelos brancos e uma tuberculose. Tornou-se correspondente comercial, tinha estudado línguas na prisão, inglês, francês, alemão… Mas a luta anti-fascista estava-lhe no sangue. Em 1959 alinhou no 12 de Março e na noite de passagem de ano de 31 de Dezembro de 1961 andou aos tiros no quartel de Beja. O golpe não resultou e fugiu para o Algarve. Foi apanhado em Tavira e condenado a três anos e oito meses de prisão. Antes do 25 de Abril ainda voltou à prisão, acusado de contrabando. Nada ficou provado.
Aderiu ao PS em 1974 e durante o chamado “Verão Quente” envolveu-se, com Manuel Alegre, nos contactos com os operacionais do 25 de Novembro. Foi a ele, em nome do PS, que o general Ramalho Eanes mandou entregar um lote de armas para defender as sedes do partido que estavam a ser alvo dos ataques da esquerda radical. A história não terminaria aí. Em Janeiro de 1978, então presidente da RTP, Edmundo Pedro voltou a ser preso. Durante semanas, a sua fotografia fez manchete nos jornais. Porquê? Um ano antes, o Exército tinha pedido ao PS para devolver as armas distribuídas no Verão de 75. Edmundo Pedro tentou reunir as armas, dispersas por algumas sedes nacionais do partido. Guardou-as no armazém de uma antiga firma onde trabalhara. Alguém contou à polícia. “Fui apanhado numa ratoeira”. Tinha muito que explicar à Judiciária. Mas não disse nada. Não falou em nomes. Ficou seis meses preso, até ser absolvido. Desse episódio guarda muitas mágoas, “o mal que me fizeram não tem remédio”.
Com 86 anos, Edmundo Pedro vai publicar as suas memórias. “Estou a sentir o meu horizonte temporal a encurtar-se”.

 
JPG – A primeira vez que entrou numa prisão tinha 15 anos. O que é que se passou?
Edmundo Pedro – Fui preso por estar envolvido na tentativa de greve geral revolucionária de 18 de Janeiro de 1934. É um acontecimento conhecido na crónica da luta anti-fascista, nomeadamente no movimento operário e anarco-sindicalista. Pretendia ser uma greve contra a fascização dos sindicatos, levada a cabo pela antiga CGT de influência anarquista, pela intersindical de influência comunista e pelos sindicatos autónomos que representavam alguns sindicatos de influência ainda socialista. Eles juntaram-se todos e tentaram desencadear uma greve geral.

JPG – Qual é que era o seu papel no movimento?
EP – A direcção do PCP encarregou-me de ser o elemento de ligação com o quartel instalado dentro do Castelo de S. Jorge, Caçadores 7. Tinha que fazer uma série de contactos e na tarde de 17 de Janeiro fui a Caçadores 7 com a intenção de dizer que o movimento revolucionário começaria naquela noite. Eu devia actuar na zona do Poço do Bispo, estava encarregado de cortar as linhas férreas e derrubar os cabos de alta tensão. Mas alguém denunciou o militar a quem era suposto passar a palavra, o Sargento Alfredo. Quando pedi para falar com ele fiquei logo preso. Mantive a versão que tinha combinado com os militares caso fôssemos descobertos, era o chamado “minuto conspirativo”. Libertaram-me, mas passados alguns dias. Torturados, alguns militares envolvidos revelaram tudo. Foram-me buscar outra vez.

JPG – Ficou preso quanto tempo?
EP – Fui condenado num tribunal militar especial a um ano de prisão e perda dos direitos políticos. Tinha 15 anos, o que face à Constituição que o Salazar elaborou em 1933 era ilegal. Isto chega para medir como é que aqueles coronéis de merda julgavam os presos políticos. Eu nunca podia ser julgado antes dos 16 anos no mínimo. Fui julgado aos 15 anos e mesmo que fosse julgado aos 16 não me podiam condenar à perda de direitos políticos. Face à Constituição do Salazar, só aos 21 anos é que se tinha direitos políticos, ainda que fosse apenas em termos formais. Agora é aos 18. Eles tiraram-me aquilo que ainda não me tinham dado. Um absurdo.

JPG – Quando saiu continuou as actividades conspirativas?
EP – Sim, fui eleito para a direcção da Juventude Comunista com o Álvaro Cunhal. Repare que eu pertencia a uma família de comunistas. O meu pai, Gabriel Pedro, e a minha mãe, eram comunistas, eram funcionários do PCP. A praça principal de Almada, a praça do tribunal, tem o nome dele. Morreu comunista, emigrado em Paris. Foi um dos fundadores da ARA, Acção Revolucionária Armada, o braço militar do PCP. Durou muito pouco tempo. Antes de morrer ainda veio por uma bomba no Cunene, o primeiro barco que foi sabotado contra a guerra colonial… Veio sozinho de Paris até Lisboa e voltou a Paris atravessando os Pirinéus… E tinha mais de setenta anos nessa altura! A minha mãe também pertencia ao partido… Chegámos a encontrar-nos, eu, o meu pai e a minha mãe no Governo Civil, os três presos. A minha mãe foi presa na fronteira. Tinha ido a Espanha ao serviço do PCP. No regresso foi detida por posse de documentação subversiva. Quando foi do 18 de Janeiro, ela já estava presa, nas Mónicas, há uns meses. Mas foi chamada à polícia, ao edifício ao lado do S. Carlos (era aí a Polícia de Informações, anterior à PIDE), para uma acareação qualquer. Como andavam cheios de trabalho, meteram-na no Governo Civil. Ora eu sou preso no dia 17 de Janeiro… apanhei uma cacetadas e puseram-me ali porque as esquadras estavam cheias. Fui lá encontrar a minha mãe. Ao fim de 17 dias libertaram-me. Estive apenas 8 dias em liberdade. Quando voltei ela ainda lá estava. Os tipos disseram-me: “qualquer dia está cá o teu pai”. Passado um mês e tal estava lá o meu pai. Foi lá parar também. Mas estávamos detidos por processos diferentes.

À esquerda, Margarida, a mãe de Edmundo Pedro

 

Na fila de cima, no meio, Gabriel Pedro.

JPG – E os seus irmãos?
EP – Era tudo comunista. A minha irmã morreu em Paris na emigração. Participou no Maio de 68. O meu irmão, João Tavares Pedro, era jovem comunista e foi assassinado numa manifestação organizada por mim, num daqueles comícios relâmpago que a JC fazia nos anos de 1930. Foi durante uma semana de agitação e propaganda, a tal agit-prop, organizada pelo partido e, nesse quadro, deram-nos instruções para fazer também uma série de manifestações. Eu organizei várias nas escolas industriais e comerciais. O meu irmão era aluno da Escola Fonseca Benevides, onde fizemos um comício. Como ele era aluno, disse-lhe para não se misturar, para não dar vivas, manter-se à parte. Aquilo metia sempre tiros… eu tinha um guarda-costas que puxou da pistola quando o contínuo que estava de serviço ao átrio da escola tentou tocar a sineta para não se ouvir o que eu dizia. Havia um certo aventureirismo… O meu irmão manteve-se à parte. Aquilo era feito muito rapidamente: desfraldava-se a bandeira vermelha e distribuíam-se uns panfletos. O esquema era sempre o mesmo, para dizer que existíamos, que estávamos vivos, que tínhamos uma missão a cumprir. Acabámos aquilo, saímos a correr. O meu irmão ficou à porta. Logo depois veio a Polícia de Informações, os tipos do 28 de Maio, que começaram a agredir alguns rapazes. O meu irmão quis ajudar um amigo e disse qualquer coisa desagradável para os tipos. Rebentáram-no aos pontapés. Foi dali para o hospital S. José e morreu 15 dias depois.

 


Aos 13 anos, com os aprendizes do Arsenal de Marinha. Na fila de cima, o segundo a contar da direita.

JPG – Conheceu então o PCP no início da sua implantação na sociedade portuguesa…
EP – Eu fui educado dentro da JC, fui criado dentro do PCP, convivi com os principais dirigentes, eram todos meus amigos. O Bento Gonçalves, o primeiro Secretário-Geral, foi meu companheiro de trabalho no Arsenal da Marinha, quando ainda era em Lisboa, naquele espaço que vai do Terreiro do Paço ao Cais-do-Sodré. Eu era aprendiz no Arsenal e estava a estudar na Escola Industrial Machado de Castro. Estava no 5º ano, o último, quando fui preso. Não terminei o curso. A oficina de máquinas, a que eu pertenci, ocupava todo aquele espaço que é hoje um parque de estacionamento, ao longo da Rua do Arsenal. Sou capaz de localizar o sítio onde estava o torno do Bento Gonçalves… era perto da actual empena que está no topo do parque, que é do Ministério da Marinha. Até sugeri ao António Abreu do PCP a ideia de porem lá um memorial, um pequeno memorial a dizer “aqui trabalhou Bento Gonçalves”. Era um tipo extraordinário, não tem nada que ver com os comunistas actuais. Continua a ser uma grande referência da minha vida.

 


Francisco Paula de Oliveira (Pável)

JPG – Também conheceu o Francisco Paula de Oliveira, mais conhecido por Pável?
EP – Foi operário comigo nas oficinas do Arsenal de Marinha, que era uma oficina de elite. Todos os operários eram obrigados a frequentar a Escola Industrial. Em nenhum outro estabelecimento fabril era assim. Havia todo um conjunto de pessoas de grande craveira intelectual. Lembro-me do Alfredo “Pasteleiro”, conheci-o quando era aprendiz numa oficina metalúrgica situada na rua do Salitre. Foi ele quem me deu a ler os primeiros manifestos comunistas. O Francisco Paula de Oliveira, que foi Secretário-Geral do PCP e Secretário-Geral da Juventude Comunista, tomou o pseudónimo de Pável, o nome de uma personagem de um romance do Máximo Gorki, A Mãe. Era conhecido pelos amigos como o “Viagens à Lua”. Era a alcunha que lhe davam no Arsenal, porque era um tipo que se interessava por ficção científica, viagens à lua, etc. Esteve preso no Aljube mas fugiu. Foi para Paris e fugiu depois para o México, onde se radicou com o passaporte de um combatente da Guerra Civil que tinha morrido, António Rodriguez. Tornou-se escritor e um grande crítico de arte. Foi uma grande figura da cultura mexicana. O México fez-lhe uma homenagem nacional pela contribuição que ele deu à cultura mexicana. Não é qualquer um. É um caso que dava um romance fabuloso. Depois do 25 de Abril, o Mário Soares convidou-o a vir cá. Tenho fotografias dessa visita.

 


Edmundo Pedro com 16 anos, à esquerda, com Carlos de Sevela, jovem comunista de Silves (1934).

JPG – Passados dois anos sobre o 18 de Janeiro foi novamente preso, foi inaugurar o Tarrafal…
EP – Quando saí da prisão, tinha 16 anos, fui eleito para a direcção da JC juntamente com o Cunhal, que tinha na altura 21. Fui o dirigente mais novo desde sempre. Voltei a ser preso por essa razão. Era um reincidente.

 


Na Fortaleza de Peniche, antes de ir para o Tarrafal

JPG – E o Tarrafal?
EP – Fui enviado para o Tarrafal sem qualquer julgamento. Entrei para lá com 17 anos, em Outubro de 1936, e saí com 27 anos, em 1945, com a amnistia do fim da guerra. Era o preso mais novo do Tarrafal. Deixei a minha juventude toda no Tarrafal. Fui com o meu pai no mesmo barco. Ele estava em Angra do Heroísmo, eu em Peniche. Foi uma leva daqui juntamente com aqueles marinheiros da Revolta da Armada de 8 de Setembro de 1936. Passámos nos Açores e depois seguimos para Cabo Verde.

 


JPG – Como passava o tempo na prisão?
EP – Para além de partir pedra, como em qualquer regime prisional, continuei a estudar. Estudei cálculo integral, electrónica, radiotécnia. Aprendi sozinho e ajudado principalmente pelo Bento Gonçalves. Costumava sentar-me junto à cama do Bento Gonçalves, a aprender marxismo e álgebra. O Bento Gonçalves morreu no Tarrafal, com uma biliosa anúrica. Também estava lá o Alberto Araújo, filólogo, deu-me aulas de português. Saiu de lá tuberculoso. E depois aprendi também línguas, francês, inglês, alemão… aprendi toda a gramática alemã na prisão. Mas não era fácil. Custou-me muito sacrifício, porque era tudo feito fora das horas de trabalho.

JPG – Tentou fugir?
EP – Tomei parte em duas fugas, uma colectiva, organizada pelo PCP, outra à margem do Partido. O PCP reservava-se o direito de escolher quem é que devia fugir. Como membro do partido, submetia-a à sua disciplina. Eu estava de acordo com esse princípio, porque achava que quem devia tentar fugir eram aqueles que faziam mais falta cá fora, os quadros mais importantes, mais experientes. A certa altura convenci-me que eles não fugiam nem deixavam fugir. Que a disciplina do partido era mais impeditiva da fuga que os guardas, o arame farpado, a vala, o talude, os sentinelas. Porque é que haveria de aceitar uma disciplina que era totalmente inoperante? Então pensei que a única maneira era calar-me, organizar uma fuga sem dizer nada. Juntámo-nos cinco, eu, o meu pai e mais três companheiros. Foi em 1943.

JPG – E dessa vez conseguiu finalmente escapar?
EP – Não. Não conseguímos fugir por um azar do caneco. Em pleno dia, sem ninguém dar por isso, 5 pessoas saíram do Tarrafal. Lá dentro, eu trabalhava numa oficina de electricidade e nesse dia estava encarregue de levar uma bateria à central de electricidade. O meu pai não tinha pretexto para sair, mas escondeu-se atrás de uns bidons grandes de água que estavam a ser descarregados. Os outros três estavam destacados para ir buscar lenha. Tínhamos à nossa frente 4 horas para chegar a um barco de cabotagem que passava de 15 em 15 dias. Tomávamos conta do barco e fugíamos. E só não aconteceu porque dois dos nossos fizeram tudo ao contrário. Passaram junto dos “rachados”, dos bufos do campo, porque havia lá a situação dos presos que se mantinham com dignidade, que não abdicavam de nada, e os chamados rachados, que tinham liberdade de sair, iam para as hortas, encontravam-se com as cabo-verdianas… E um desses gajos viu-os passar e denunciou-os. Nós já estávamos longe, eu, o meu pai e outro, estávamos numa serra à espera deles. Se eles tivessem feito como nós, que era dar a volta ao campo e tirar a farda, não eram vistos. Quiseram facilitar, passar junto das hortas, onde estavam os bufos. Estragaram tudo.

JPG – E vocês os três?
EP – Fomos apanhados nesse dia à tarde. Percebemos que havia um problema com os outros e fugimos. Apanhámos um barco pequeno para ver se chegávamos ao outro barco de cabotagem. Os pescadores a quem nós roubámos o barco correram a denunciar-nos e deram com os guardas que iam a correr atrás dos outros. Pensaram: “aqueles que vão no barco são mais perigosos”. Correram a direito até à praia, deixaram os outros. Isso permitiu que eles se internassem na ilha. Quando os guardas chegaram à praia, nós já íamos com uma certa distância. Apanharam outro barco, foram atrás de nós, viram onde é que tínhamos saído e, ao fim da tarde, quando já estávamos convencidos que nos tínhamos conseguido safar, foram descobrir-nos numa gruta.


Edmundo Pedro de visita ao Tarrafal, onde encontrou alguns angolanos que também lá tinham estado presos mas em alturas diferentes. Aqui, à porta da Frigideira.
JPG – O que é que vos fizeram?
EP – Fomos levados ao director do campo, um tipo terrível. Era conhecido como o “Abóbora”. Um dos que foi visto pelos bufos, o Nascimento Gomes, do Porto, morreu em consequência dos espancamentos. Rebentaram-lhe com os rins… Foi a coisa mais brutal que se fez no Tarrafal. Eu, o meu pai e os outros dois fomos parar à tal frigideira, a cela punitiva. Fecharam-nos ali durante 70 dias seguidos. Batemos o recorde. O castigo era de 60 dias, mas só nos começaram a contar o tempo a partir do momento da prisão do último fugitivo, que era o Rato. Como só foi apanhado ao fim de dez dias, nós cumprimos 70 dias de frigideira.

JPG – Como era a frigideira?
EP – Era uma cela em cimento armado, um cubo com uma porta em ferro, uma frestazinha em cima, o tecto em cimento e não tinha telhado. Era um forno autêntico, num clima tropical… era sufocante… havia dias em que a temperatura se devia aproximar dos 45 graus… passávamos os dias a suar, tínhamos de andar todos nús. À noite aquilo condensava e caía em cima de nós, parecia um chuveiro… Estivemos 3 dias sem beber água. Foi por intervenção do Cândido de Oliveira que nos levaram água. O Cândido também lá estava, mas tinha uma situação especial. Tinha sido preso no processo dos ingleses, ele e vários oficiais… Primeiro estiveram connosco, mas veio um telegrama do Salazar, ou da polícia, não queriam arranjar problemas com os ingleses, e puseram-nos numas barracas fora do campo. Mas arranjávamos maneira de nos correspondermos. O Cândido acompanhou esta tragédia toda… No livro dele sobre o Tarrafal dedicou um capítulo à nossa fuga, mas como ele morreu antes do 25 de Abril, o sobrinho, que era do PCP, cortou esse capítulo… Esse capítulo foi-nos lido, a mim e ao meu pai… até chegámos a fazer rectificações. O Cândido de Oliveira era muito meu amigo, gostava muito dele, foi meu sócio num viveiro em Corroios, eu, ele e o meu pai. O meu pai saiu do Tarrafal com a saúde arruinada, foi um dos mais perseguidos, no total esteve perto de 150 dias no forno. Tentou matar-se lá, abriu as veias…

 

Visita ao Tarrafal com os antigos Primeiro-Ministros de Portugal (António Guterres) e de Cabo Verde (Carlos Veiga). À direita de Guterres, Sérgio de Matos Vilarigues

JPG – Já voltou a Cabo Verde, ao Tarrafal?
EP – Umas 4 ou 5 vezes. Gosto de visitar aquilo, lembrar-me.

 


Depois de sair do Tarrafal.

JPG – E o PCP, como é que reagiu à vossa fuga não autorizada?
EP – Quando saí do Tarrafal não voltei ao PCP. Fui castigado a 2 anos de suspensão e não quis voltar. Fui elogiado pela coragem demonstrada frente ao inimigo e castigado por desobedecer às directrizes partidárias. O meu pai saiu do PCP quando ainda estava no Tarrafal, por causa do Pacto Germano-Soviético. Por isso não foi castigado. Mas quando saiu do Tarrafal, o Cunhal meteu-o logo no partido. Foi um trauma do caneco sair do PCP, porque a minha vida estava ligada ao partido. Um tipo que é educado dentro do partido e sai é como perder uma perna ou um braço. Fiquei com um grande desgosto por me terem tratado como trataram. Eu tinha-me dado completamente, desde miúdo, desde os 13 anos, tinha 24 quando isto aconteceu, estava no partido há 11 anos. Depois passou-me. A minha saída permitiu-me ver coisas que se calhar não tinha visto se não saísse. O PCP distorce sempre as histórias, todas as situações, sistematicamente, como é sabido… Passaram na RTP um documentário sobre o Tarrafal feito por dois militantes do PCP. Dizem uma série de mentiras, uma abordagem meramente política, do herói, que eles é que faziam e aconteciam, que eram os mais eficazes… Tenho muito a dizer sobre o PCP, até em relação ao Cunhal, à sua ascensão ao cargo de Secretário-Geral. Como é que um intelectual ascendeu tão rapidamente num partido operário. Porque naquele tempo havia um grande preconceito em relação aos intelectuais. O Bento Gonçalves era operário, o Pável era operário. Havia aquela ideia de que o comunismo era essencialmente um movimento operário, da classe operária. Até havia uma directriz, que ainda hoje se mantém, mas que não é cumprida, segundo a qual a maioria da direcção do partido tem de ser operária… Hoje é tudo uma aldrabice. Os que se dizem operários, como por exemplo o Sérgio de Matos Vilarigues, que foi o nº 2 do PCP durante muitos anos. Eu conheci-o como marçano de uma mercearia, depois foi empregado num talho. Agora aparece como operário da indústria de carnes verdes… Dá vontade de rir… Eles fabricam operários de qualquer maneira.

JPG – E como é que se dá a ascensão fulgurante do Cunhal?
EP – Não conto. Não contei ao Pacheco Pereira, para a biografia do Cunhal… ele conta a ascensão do Cunhal à maneira dele, mas há coisas que só eu sei…

JPG – Não contou porquê?
EP – Não quis entrar em certos pormenores, não quis fazer chicana. Nas minhas memórias, em que estou finalmente a trabalhar, vão aparecer coisas que nunca foram contadas. Porque eu acompanhei, a partir do Tarrafal, todo esse processo. Ele não esteve lá, mas tudo começou no Tarrafal…

JPG – Qual é a sua opinião sobre este processo dos renovadores no PCP?
EP – Era inevitável. Há um desfasamento muito grande entre a realidade e os actuais dirigentes… Foram expulsos mas isso não vai adiantar nada. Isto é a história do Leste Europeu. Eles também colaboraram na expulsão de outros, como o Barros Moura ou o Vital Moreira, estiveram todos de acordo… é muito complicado… No Leste Europeu também foi assim: mataram-se uns aos outros sucessivamente, acusados de crimes imaginários. Aqui não se mataram porque não se podiam matar. Se assim não fosse tinham-se assassinado mutuamente. A lógica é a mesma. Eu fui educado lá dentro, sei como é. Tenho 16 anos de cadeia, não tenho complexos, a mim não me podem acusar de nada, larguei sempre tudo, os meus interesses mais elementares, dei tudo à luta contra o antigo regime. Alinhei em quase tudo, o Delgado, o Golpe de Beja, estive presente em quase todas. E não precisei de estar no PCP.

JPG – Quando saiu do Tarrafal, ao fim de cerca de 10 anos, como foi?
EP – Ainda fiquei dois dias na Cidade da Praia, à espera do barco. Numa das noites, era sábado, fui a um baile na Achada de Santo António. Conheci uma cabo-verdiana, dancei com ela, contei-lhe a minha situação… foi muito simpática… saímos dali para a praia… Quando cheguei a Portugal meteram-me no Aljube. Cheguei um homem totalmente diferente. Vinha com cabelos brancos. Os meus melhores anos ficaram no Tarrafal. Só no regresso é que me levaram a julgamento. Fui condenado a 22 meses de prisão. O tribunal não encontrou matéria no processo para me dar mais de 22 meses. Tinha estado 10 anos preso à espera de julgamento. É incrível, não é? Depois de lida a sentença ainda me fizeram ficar 2 ou 3 dias na prisão antes de me libertarem. E vinha de lá tuberculoso. O Ludgero Pinto Basto, que é médico, era da direcção do PCP na altura, ele é que me salvou. Ainda está vivo, é um grande amigo meu.

 


Com a equipa nacional de futebol, em 1948. Edmundo Pedro é o segundo a contar da esquerda, em pé, com uma mala na mão. No grupo estão, entre outros, Travassos, Jesus Correia, Peyroteu, guarda-redes Azevedo e Francisco Ferreira

JPG – E o recomeço da vida em Portugal?
EP – Comecei a ganhar a vida como tradutor correspondente. Quando saí do Tarrafal já sabia bem o inglês, o francês e algum alemão. Foi a minha profissão. A minha verdadeira profissão é tradutor correspondente. Fui correspondente de grandes casas comerciais. Comecei na Federação de Futebol… o facto de o Cândido de Oliveira também ter estado no Tarrafal ajudou… A primeira vez que fui a Paris foi para acompanhar a selecção, tenho fotografias com o Jesus Correia, um dos avançados daquele grupo dos violinos do Sporting. Fui a Paris como tradutor correspondente. E à noite trabalhava como revisor de provas no jornal A Bola. Depois saí da Federação quando entendi que podia ganhar mais numa empresa comercial. Estive na Sociedade Oceânica do Sul e nos laboratórios Lusofarmaco, que nessa altura ainda eram uma farmácia.

JPG – E os seus amigos, quem eram nessa altura?
EP – As minhas companhias eram todas da oposição. Frequentava um círculo de amigos na Costa de Caparica, em casa do Manuel Rodrigues de Oliveira, o fundador das edições Cosmos, e mulher, a Ana Isabel, a Bé. Costumavam estar lá o Tito de Moraes, a mulher dele, a Maria Emília, o Bento de Jesus Caraça, que lançou a Cosmos com o Oliveira. Éramos marxistas. Eu ainda me dizia comunista, apesar de não estar no PCP. Tinha deixado de ser leninista mas continuava marxista. A literatura que se discutia era a literatura francesa, o l’Humanité, o André Gide, o Malraux, o Roger Vailland, toda essa gente, o Henri Barbusse, o Romain Rolland, que eram compagnons de route. Rompi definitivamente com o comunismo quando se deu a invasão da Checoslováquia, em Agosto de 1968.

 


Quando foi preso devido à participação no Golpe do Quartel de Beja.


JPG – Mas as suas actividades conspirativas não se ficavam por aí?
EP – Antes já tinha tomado parte da campanha do Norton de Matos. Alinhei no 12 de Março de 1959 e participei no assalto ao Quartel de Beja na noite de 31 de Dezembro de 1961. Eu entrei fardado de capitão, deram-me a farda, estava combinado que eu entrava como oficial. Ainda há dias fui ao funeral de um amigo meu, o Jaime Carvalho da Silva, um dos oficiais do Golpe, foi condenado a 4 anos de prisão. Foi o que acompanhou o Varela Gomes quando iam prender o Calapez. O Varela foi ferido e o Carvalho da Silva, coitado, quis socorrer o Varela, achou mais importante salvar a vida do Varela que prender o Calapez. A coisa deu para o torto, mas alguns de nós conseguimos fugir para o Algarve. Fomos apanhados em Tavira, eu, o Manuel Serra, o então capitão Eugénio de Oliveira e mais três. O Manuel Serra era um dos homens que o Humberto Delgado mandou do Brasil para contactar com alguns oficiais superiores. Ele era o chefe civil, digamos assim. O chefe militar era o próprio Delgado. Chegou nessa noite e levaram-no para Beja. Eu nem sabia que ele lá estava. Em vez de o meterem no quartel pensaram que era melhor aguardar que tudo corresse bem. Depois o Delgado aparecia à frente daquilo. Se ele tivesse entrado no quartel connosco, talvez as coisas tivessem corrido bem.

JPG – Esteve preso quanto tempo?
EP – Fui condenado a 3 anos e 8 meses. Saí com 47 anos. Tinha 43. Foram os melhores anos da idade madura.

JPG – Também fez contrabando com o seu pai, não foi?
EP – Sim. Fiz contrabando mas não era contrabandista. Contrabandista é aquele que vive do contrabando. Eu nunca vivi, tive sempre o meu emprego. Fui desafiado para essas coisas pelo meu pai, porque o meu pai fazia contrabando para o PC. Foi influenciado por aquela história da Sierra Maestra do Che Guevara e do Fidel Castro. Todos nos apaixonámos. É nessa altura que o meu pai vem com a ideia da guerrilha urbana e de arranjar dinheiro para ela. Organizámos então um sistema de contrabando. Durante anos, o PCP viveu, em parte, do contrabando do meu pai. O Avante dirigiu-me algumas piadas a esse respeito. Ora eles deviam era estar calados com essa história do contrabando, porque os maiores beneficiados foram eles…

JPG – Contrabando de quê?
EP – Aquelas coisas que são normais… as que pagam mais direitos... Quando fui à televisão por causa do processo das armas, o Joaquim Letria levou dois mariolas com ele para me enterrarem. Um deles disse que os processos que eu tinha em tribunal militar eram de contrabando de droga. Eu devia ter dado um murro no gajo, devia ter-me levantado…

JPG – Mas já vamos a esse caso do processo das armas e à sua passagem pela RTP. Teve um processo de contrabando e foi preso?
EP – Não. Eu deixei essa história quando vi que o projecto do meu pai não tinha pés para andar. Mas por causa disso ainda levei com um processo alfandegário. Uns tempos depois, chamaram-me à polícia. Porque eu tinha um barco de recreio que julgavam que tinha sido utilizado numa operação de contrabando. Era mentira, por acaso não foi. Eu tinha estado em Paris com a minha mulher, o meu passaporte tinha o carimbo. Foi fácil de provar. De maneira que estive preso uns dias e mandaram-me embora. Foi nessa ocasião que conheci o escritor Luiz Pacheco no Limoeiro.

JPG – Já o conhecia, sabia quem era?
EP – Conhecia de nome. Como escritor. Quando o conheci pessoalmente já tinha lido algumas coisas dele. Eu achava-lhe piada. Tem uma maneira de ser muito própria. É um tipo giríssimo. Quando soube que eu era da oposição tornámo-nos amigos.

JPG – Como é que passavam o tempo no Limoeiro?
EP – Lembro-me que jogávamos muito ao xadrez. O Pacheco ganhava quase sempre, nunca fui grande jogador de xadrez. E conversávamos. Eu contei-lhe a minha história, ele contava-me a vida dele. Não fazia segredo de nada. As histórias dele na cama com a mulher e os filhos nas gavetas dos armários. O Pacheco faz gala da miséria dele, é um bocado assim. É um tipo completamente descontraído, é um tipo que não guarda nada nem se resguarda de nada. Ele ostenta a sua miséria, no fundo especializou-se em ostentar o que há de pior na vida dele. Porque ele tem lados muito bons, muito bonitos. E é um companheiro. Eu pessoalmente gosto muito dele. De maneira que ficámos amigos. De vez em quando escrevia-me uns postais dos CTT a dizer que ia mandar um livro, que custa tanto, para lhe mandar umas massas. Mandava-lhe sempre mais, e foi assim, tem sido assim ao longo do tempo. Agora quero ir visitá-lo ao Príncipe Real…

 


Com Manuel Alegre, no aeroporto de Lisboa, em 1976.

JPG – Entretanto entrou para o PS…
EP – Aderi a seguir ao 25 de Abril, em Outubro de 1974. Em termos informais aderi em Setembro de 1973, numa conversa que tive com o Mário Soares no aeroporto de Madrid. Em termos formais foi depois. Entrei com o Manuel Alegre, no mesmo dia. Fomos os dois ter com o Mário Soares ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Assumi o controlo da parte operacional do PS, particularmente ao nível da região de Lisboa.

 
JPG – Qual é que foi a sua participação no chamado PREC?
EP – Tive uma participação activa no 25 de Novembro. Essa é uma história que me trouxe muitos dissabores. Eu fui responsável, no PS, pela recepção e subsequente distribuição de um lote de 150 armas. As armas foram entregues por representantes do exército. Muito antes do 25 de Novembro estava prevista, caso a crise no país se agravasse, a entrega dessas armas ao sector de segurança do PS. O país vivia ameaçado pelos ataques da esquerda radical, do MFA. Foi o 11 de Março, o caso do jornal República, as sucessivas manipulações das assembleias do MFA, o V Governo Provisório, o documento definindo o “poder popular” escrito pelo Otelo Saraiva de Carvalho, o cerco da Assembleia Constituinte… Foi nesse contexto que me encontrei com alguns oficiais, entre eles o então tenente-coronel Ramalho Eanes. O Eanes identificava-se com o PS. Recebi em minha casa, na companhia do Manuel Alegre, o Eanes e outro oficial que não se identificou. Contámos ao Eanes as dificuldades que tínhamos em defender as sedes do partido. Todos os partidos e grupos de extrema-esquerda estavam armados. E alguns grupos de civis ligados à “vanguarda revolucionária” recebiam treino militar. Ora o PS estava à mercê desses ataques. Pedimos ao Eanes que nos fornecesse algumas armas para garantir uma protecção mínima.

JPG – O que é que o general Eanes fez?
EP – Elaborou o plano destinado à resistência caso houvesse um golpe, aquelas coisas, sabotar emissores, cortar as comunicações… e, na noite do 25 de Novembro, mandou distribuir as armas. Fomos buscá-las perto de Bicesse, numa carrinha. Deixámos umas quantas em Cascais, outras na sede nacional do partido, na rua da Emenda. No meu livro conto tudo (O Processo das Armas, Editorial Inquérito, 1987), reproduzo nomeadamente o esquema operacional escrito pela mão do general Eanes, onde descreve as acções que teríamos de desenvolver em colaboração com alguns militares no caso da extrema-esquerda tentar assumir o poder, como tentou, no 25 de Novembro.


Edmundo Pedro, em casa, sentado na mesa em que ficou combinada, com o General Ramalho Eanes e com Manuel Alegre, a entrega das armas. Fotografia tirada recentemente.

JPG – Por causa disso voltou a ser preso mais tarde, em 1978?
EP – Esse é um assunto melindroso. Porque se especulou muito comigo. Sabe o que é a política… As armas foram mandadas distribuir para defender a democracia. Não a mim, mas ao PS. Mais de um ano depois do 25 de Novembro o Exército pediu ao PS para devolver as armas. As armas seriam devolvidas ao exército pela “porta do cavalo”, de acordo com o seu pedido. Eu achava muito bem. As armas não deviam estar nas mãos de civis. Tinham sido distribuídas numa conjuntura muito especial, mas deviam ser devolvidas. Envolvi-me naquela tarefa com grande empenho. Devolvi a maior parte, mas aquilo não era fácil, as armas estavam espalhadas, algumas, por exemplo, foram parar aos Açores, a pedido do Jaime Gama. Isto é um facto histórico. Quem as veio buscar, em mãos, foi o líder do PS nesse tempo nos Açores, o Goulard. Aquilo nos Açores esteve muito assanhado a seguir ao 25 de Novembro, com a extrema-direita a assaltar e queimar sedes do PS. As armas que o Jaime Gama me pediu não as podia recolher. Ora eu estava no desempenho da operação de as devolver quando fui apanhado.

JPG – E por que é que foi preso?
EP – Repare que eu era Presidente da RTP quando o processo das armas se dá. Fui presidente da RTP durante um ano. Entre o início de 1977 e o início de 1978. O escândalo à minha volta seria necessariamente um facto político de enorme repercussão. Eu era membro do Secretariado Nacional do PS com o Zenha, o Manuel Alegre, o Soares, o Guterres e outros. Era deputado com mandato suspenso. Não era brincadeira nenhuma. Tinha muitas responsabilidades institucionais. Foi um escândalo enorme. Durante dias a fio fui a primeira páginas dos jornais. Foi uma conspiração para atingir o PS. Toda a especulação em torno do pretenso contrabando teve origem no conhecimento do antigo processo alfandegário. As insinuações a esse respeito partiram, como refiro no meu livro, de uma fonte da Polícia Judiciária. Tudo começou com um artigo no Expresso, que foi buscar esse processo antigo. Repare que a apreensão das armas coincidiu com a crise do I Governo Constitucional, quando estava iminente a queda do governo PS. As armas saíram da sede do PS quinze dias antes de ser preso. Fui detido no dia 11 de Janeiro de 1978 sob a acusação de armazenamento e transporte de material de guerra. Eram 36 espigandas G3, do lote das 150. Toda a gente no PS estava aterrorizada. Então resolvi levar as armas para um armazém que era da firma de electrónica a que pertencera, mas da qual já me tinha desvinculado há muito tempo. Não tinha nada que ver com aquilo. Quando fui eleito para a direcção do PS cortei com tudo. Entendi que um dirigente socialista não deveria estar ligado a negócio nenhum. Fui eleito pela Comissão Nacional do PS, no seu 1º Congresso. Mas resolvi guardar nesse armazém, situado na Via Rápida, as armas que tinha conseguido reunir para depois as devolver. A devolução deveria ser efectuada dias depois da minha apreensão. Pensaram que eu queria as armas para uso pessoal, assaltar bancos, etc. Senti-me maltratado. Humilhado. Porque foram buscar a tal história do contrabando, os processos. Eu fiquei maluco. Estava desesperado.

JPG – Ficou preso quanto tempo?
EP – Ainda foram seis meses. Pouco depois da minha detenção, o Estado-Maior do Exército veio confirmar que me tinha entregue as armas. Mas lá veio mais uma aldrabice. Disseram que eu já devia ter devolvido as armas há muito tempo, quando eu, assim que me pediram comecei logo a trabalhar para as devolver. O único homem que se portou bem como militar foi o General Galvão de Figueiredo. Foi minha testemunha através de uma carta percatória. Não quis ir ao tribunal, mas o testemunho dele foi fundamental. O juiz do meu processo era do MDP/CDE, um indivíduo sem personalidade nenhuma. Deixou-se condicionar pela campanha da imprensa e não teve coragem de tomar decisões. O parecer da Relação era que eu não podia ficar preso, visto que não havia nenhuma sintoma de dolo. Devia ter sido logo posto em liberdade, mas o juiz não quis saber disso para nada. Quando o processo mudou de mãos, o novo juiz mandou-me logo libertar. Os meus advogados eram o Francisco Sousa Tavares e o Proença de Carvalho, indicados pelo PS.

JPG – E o PS no meio de tudo isso?
EP – Toda a gente ficou calada. Eu assumi a responsabilidade toda. Calei-me. Em vez de dizer que aquilo era um assunto do PS, disse que era meu. Bastava eu ter falado no papel do Eanes naquela operação para ser imediatamente libertado. Ou dizer que aquilo tinha sido feito dentro do PS. Mas não quis falar em ninguém. O escândalo foi também provocado em parte por mim, porque me calei, por uma questão de dignidade. Nunca tinha falado na polícia. Mas também lhe digo, fiz isso convencido que cada um ia falar. Fui apanhado numa ratoeira.

JPG – Se soubesse que ninguém ia falar, contava tudo?
EP – Ah, se calhar tinha falado, mas eu não quis ser denunciante, pensei que cada um devia assumir as suas responsabilidades no caso. Mas ninguém se assumiu. Quem devia assumir as responsabilidades era o General Eanes e o PS. O PS ficou com uma certa má consciência. Teve sempre dificuldade em abordar o assunto de frente. Se o Mário Soares soubesse de tudo o que se tinha passado naquele contexto, eu não ficava preso, mas o mal que me fizeram não tem remédio.

JPG – E o general Eanes?
EP – Nunca falei no nome do general Eanes nem em quaisquer outros nomes. Só oito anos depois é que resolvi falar, no meu livro. E explico porquê: esperei que o Eanes saísse da Presidência para se poder defender, porque eu no livro faço uma grande crítica à sua conduta naquele processo. Já concordámos marcar um encontro para esclarecer alguns aspectos.

JPG – Para quê?
EP – Não quero discutir com ele. Isso agora já passou. Quero conversar numa atmosfera de amizade e descontracção. Mas gostava, por exemplo, que o general Eanes me dissesse por que é que não me concedeu a Ordem da Liberdade. Fui posto à cabeça numa lista elaborada pelo PS e ele recusou. Ora ele sabe que o protegi com o meu silêncio. Se eu não merecia a Ordem da Liberdade quem é que a merecia? Fui preso aos 15 anos, estive no Tarrafal dos 17 aos 27, passei a minha juventude toda na cadeia, participei no Golpe do Quartel de Beja, fui dos 4 ou 5 que andaram aos tiros lá dentro, não morri por uma sorte do caneco, podia ter ficado logo ali, combati a minha vida inteira, estive disposto a morrer depois do 25 de Abril em defesa da liberdade. Então quem é que merecia a Ordem da Liberdade? Só recebi a Ordem da Liberdade quando o Mário Soares foi Presidente da República.

JPG – Pode falar da RTP, quando foi presidente?
EP – Creio que não houve, nem haverá, nenhum tipo sem licenciatura que tenha sido presidente da RTP. Quando entrei fiz reunir toda a redacção no Lumiar. Disse-lhes que não queria saber o que é que cada um era, o que é que cada um pensava. Não queria saber se eram comunistas, socialistas ou social-democratas. Queria apenas que me ajudassem a fazer uma televisão isenta, ao serviço do povo português. Tenho muito orgulho desse tempo que passei na RTP. Quando aquela coisa das armas aconteceu fiquei com um desgosto enorme.

JPG – E a oposição, como é que avaliou a sua gestão?
EP – No meu tempo não havia nenhum órgão independente capaz de tutelar a televisão e de assegurar o pluralismo. Nós, para assegurarmos o pluralismo, quisemos que todos os partidos, menos o PCP (tínhamos acabado de sair daquele período do PREC), participassem no Conselho de Gestão, para se controlarem mutuamente. Ora não havendo um organismo separado capaz de controlar o conteúdo da informação, só o pluralismo interno, a presença de todos os partidos, é que podia garantir esse pluralismo. Eu partidarizei, pois, no melhor sentido. Democratizei. Na administração entraram pessoas do CDS, um representante do Presidente da República, o capitão Águas. O PSD não quis entrar, mas o Adriano Cerqueira, que foi director de informação, era assumidamente do PSD. Dos cinco da administração, éramos apenas dois do PS: eu e o Raul Junqueiro. Ficámos em minoria de propósito. Penso que isto é uma prova de democracia, ou não é? Quando me despedi do Parlamento, caí na asneira de evocar a minha passagem pela RTP.

JPG – Porquê?
EP – Porque o José Eduardo Moniz, no comentário do noticiário da noite, disse: “Afinal de contas, o Edmundo Pedro confessou que tinha partidarizado a televisão”. Ora eu partidarizei-a no melhor sentido, para garantir a democracia. O Moniz quis meter veneno. Fui eu quem o levou para a RTP. Apareceu-me com um livrinho sobre comunicação social debaixo do braço. O Guterres bem me tinha dito, “não fales na televisão”. Achava que eu, no discurso de despedida da Assembleia, não deveria referir a RTP. Mas eu tinha a minha consciência tranquila, não fui nenhum comissário do PS. Actuei lá com independência. Tenho a confirmação disso, de muita gente. O meu período foi um período pluralista. O edifício da 5 de Outubro foi comprado no meu tempo. Fui eu quem assinou o cheque de compra daquele edifício…

 


Entrega da Ordem da Liberdade a Edmundo Pedro. Mário Soares, Aníbal Cavaco Silva e, de costas, o escritor António Alçada Baptista.

JPG – Tem uma história de vida invulgar.
EP – A minha vida está ligada ao Conde de Monte Cristo. Para começar, o meu nome vem daí. A minha tia-madrinha, irmã do meu pai, apaixonou-se pela figura do Edmund Dantes e queria à força que eu fosse Edmundo. Foi como se a minha tia, ao atribuir-me aquele nome, estivesse a atribuir-me o destino daquela personagem. Ele esteve preso 10 anos numa ilha, eu também estive. Ele tentou fugir para o mar, eu também (embora ele se tenha safado e eu não). Ele foi denunciado por um tipo que gostava da namorada dele, a Mercedes, com quem veio a casar, eu fui denunciado por um tipo que veio a casar com uma namorada minha. Há coisas do caneco, não é?

JPG – Quando é que saem as suas memórias?
EP – Já tenho centenas de páginas escritas… Vão ser dois volumes. O primeiro vai até à minha saída do Tarrafal, o segundo será desde a minha saída do Tarrafal até ao presente. Espero entregar o primeiro manuscrito até ao final do ano. Estou na fase de revisão. Vou por no livro toda a minha sinceridade, toda a minha emoção… Há coisas que eu tenho que contar com emoção… Quando às vezes me lembro delas vêm-me as lágrimas aos olhos. Sou um bocado sentimental. Às vezes estou a escrever e estou a chorar ao mesmo tempo. Vou por no livro muito da minha maneira de ser e de sentir…

sábado, abril 16, 2005

 

Conhece-te a ti mesmo



Pascal disse que só há duas classes de pessoas: os justos que se crêem pecadores e os pecadores que se crêem justos. E tu? A que classe pertences?

quarta-feira, abril 13, 2005

 

Fernando Savater: Entrevista




Uma entrevista em movimento. Às 8h e 27m, o Sud-Express sacudia a estação de Coimbra-B. Fernando Savater estava na carruagem 141, vindo de San Sebastián. Não queria dar nas vistas. Afinal, a ETA já o tentou matar por duas vezes! Para este professor de filosofia nascido em 1947, passear na rua ou sentar-se num bar é oferecer-se como refém dos separatistas bascos. Fui à procura do escritor e encontrei-o sentado no bar do comboio, a tomar o pequeno-almoço. A conversa durou perto de duas horas, numa atmosfera de atentado terrorista.
Entre romances, peças de teatro e ensaios filosóficos, literários e políticos, são mais de quarenta e cinco os títulos onde Savater nos faz reencontrar as emoções fortes da filosofia. Contrário às pátrias e ao endeusamento das identidades nacionais, tem-se distinguido na luta contra a violência e contra a lógica militar dos Estados. Como Demócrito, acredita que a “pátria do sábio é o mundo inteiro”. Sinal de que a inteligência humana não envelheceu.


JPG – Já alguma vez deu uma entrevista num comboio?
Fernando Savater – Não, é a primeira vez (risos). Em todos os dias da vida faz-se algo de novo…

JPG – Em Espanha sabem que veio?
FS – Bom, há uma série de pessoas que sabem, a minha editora, a minha família. Suponho que as pessoas do El País. Eu não disse nada a ninguém. Além disso, por razões ligadas à política no país Basco… Não tenho muito interesse que saibam onde estou.

JPG – Qual a sua opinião sobre o reacender do conflito no País Basco?
FS – Estou numa plataforma de cidadãos que se chama “Basta ya”. Durante quase todo o Verão estivemos a preparar uma grande manifestação em San Sebastián que juntou cerca de cem mil pessoas. Estamos contra o estatuto da ETA na Constituição. O importante não é reprovar moralmente a ETA mas sim combatê-la politicamente. Por isso, a principal novidade que introduzimos foi propor um combate político e não simplesmente dizer que moralmente é mau matar um vizinho.

JPG – É anti-nacionalista?
FS – Decididamente. Sou absolutamente anti-nacionalista, contra todos os nacionalismos, começando no espanhol e terminando no chinês. Há um escritor basco, Pio Arroja, que diz que o nacionalismo é uma doença que se cura viajando. O que eu quis dizer com essa frase é um pouco o mesmo. Quando viajas, quando tens que cruzar as tuas fronteiras, deixar o teu lugar, o teu país, e se tens uma certa sensibilidade, dás-te conta que na maioria dos casos a ideia de nacionalismo é absurda. Os seres humanos foram feitos para se misturarem uns com os outros. As pessoas que viajam muito dão-se conta do parecido que são os seres humanos e os seus problemas em toda a parte do mundo. Creio que isso sim é que é a verdadeira lição para uma pessoa nacionalista. Um ser humano pode viver em qualquer sítio, sempre que esteja rodeado de outros seres humanos capazes de o compreender e de o ajudar.

JPG – Essa ideia lembra-me Montesquieu e as Cartas Persas…
FS – Todas as Cartas Persas são uma parábola acerca da universalidade humana e das referências culturais. Foi a primeira vez que alguém decide olhar para a sua civilização com os olhos de uma pessoa de outra cultura… Os persas que chegam a Paris surpreendem-se muito com as coisas pequenas mas reconhecem-se nas coisas importantes. O grande avanço dos ilustrados foi ter mostrado que, no acessório, os seres humanos são imensamente diversos, nas línguas, nas culturas, nas gastronomias, nas religiões, mas que nos pontos essenciais são muitos parecidos, porque os pontos essenciais estão determinados pela necessidade, não pela liberdade. Naquilo em que a liberdade intervém, os seres humanos são muito distintos, porque nós não sabemos o queremos com a nossa liberdade. Mas onde a necessidade intervém, somos muito parecidos, porque nós não escolhemos as nossas necessidades.

JPG – E, no entanto, disse numa entrevista anterior que não gosta de viajar…
FS – Eu não gosto de viajar mas passo a vida a viajar. A sensação de desenraizamento não tem que ser física. Uma pessoa, como eu, que tem um pai andaluz, uma mãe de Madrid, avós da Argentina e da Catalunha, não precisa de mover-se fisicamente. Eu já provenho de uma viagem, de uma viagem genética…

JPG – Num dos seus livros afirma que “as nações falam de si mesmas como qualquer indivíduo conta as suas peripécias eróticas…”
FS – Todos os nacionalismos são masturbatórios. São sempre uma espécie de massagem permanente ao ego colectivo. O problema é que todos os nacionalismos são contra outros, as nacionalidades formam-se contra outras. E, claro, num mundo de mestiçagens, de misturas, isso é muito perigoso.

JPG – O seu livro Contra las Patrias é um tanto polémico. Qual é que foi a reacção em Espanha?
FS – Foi um livro bastante escandaloso na sua época, quando foi publicado nos anos 80. Creio que foi a primeira vez que alguém considerado de esquerda em Espanha escreveu um livro contra os nacionalismos, contra a obsessão nacional. Porque até então, os nacionalismos era sempre vistos como algo de progressista. Franco lutou contra as nacionalidades, por isso as nacionalidades tinham prestígio… quando havia um acto público e alguém cantava em catalão ou basco… Nos anos 70, e mesmo no começo dos 80, o nacionalismo estava conotado com a resistência anti-franquista. Durante muito tempo confundiu-se em Espanha a esquerda com o anti-franquismo, ou mesmo a democracia com o anti-franquismo. Mas havia anti-franquistas que não eram democratas.

JPG - “Não nasci para a contemplação, não me interesso por nada em que eu não possa intervir imediatamente”. A função do filósofo compromete-o perante os outros seres humanos?
FS – A mim sim, aos outros não sei (risos). Penso que a filosofia é uma forma de acompanhar os outros…

JPG – É portanto um homem comprometido com a sua época?
FS – Com a minha época porque não posso estar comprometido com outra (risos).

JPG – Defende a despenalização das drogas. Porquê?
FS – Desde há muitos anos que defendo a despenalização das drogas. Os seres humanos sempre conviveram com a droga, e isso desde o começo da Humanidade. Todas as culturas conheceram as drogas, excepto talvez os esquimós que não têm vegetação, por isso é difícil terem acesso a substâncias aditivas (risos). É absurdo pensar que agora, na grande época da química, em que qualquer pessoa com um pequeno laboratório caseiro pode fazer substâncias sintéticas, as drogas vão desaparecer. Temos é que aprender a conviver com as drogas, como aprendemos a conviver com os outros problemas da Humanidade. Há que ensinar a temperança. A temperança significa utilizar os prazeres sem ser destruído por eles. Creio que a proibição é a fonte de todos os males, do tráfico das drogas, dos delitos, da adulteração das substâncias…

JPG – Já consumiu drogas?
FS – Eu…? Muitas… todas… acho que todas… pelo menos as da minha época… agora devem ter aparecido umas novas (risos).

JPG – Uma pessoa deve ter direito a drogar-se?
FS – O que me chateia é quando coisas como a droga se convertem numa forma de vida. São coisas que ocorrem na vida de um indivíduo, são etapas, formas de ir conhecendo coisas, formas de ir apalpando, de ir explorando. Agora, é bom tomar drogas? Não, não é bom nem mau. É uma coisa que podes fazer e da qual podes tirar proveito ou que pode levar-te à destruição. Com a política é o mesmo, com o amor é o mesmo… Irritam-me os missionários, seja da droga seja da abstinência das drogas.

JPG – Quando é que é necessário obedecer? Quando é que é preciso criticar?
FS – Temos que estudar cada caso. Há duas atitudes que dependem sempre do estabelecido: a que obedece sempre e a que se opõe sistematicamente a tudo o que se diz. A crítica, em sentido etimológico, vem de discernimento, de distinguir. Criticar é ser capaz de distinguir entre umas coisas e outras. Portanto, quem obedece sempre e quem se opõe sempre ao estabelecido não distingue. Vivem dependentes do que existe. Há que viver um pouco autonomamente.

JPG – Quem define o que é preciso para viver em sociedade?
FS – A paciência. A companhia dos outros é sempre difícil de suportar. O homem moderno vive um pouco o complexo da criança mimada, que pensa ser o centro do universo, a criança que quer tudo, quer tudo agora, e todas as sociedades querem tudo imediatamente, não admitem as contrariedades. O sonho infantil por excelência é essa omnipotência. Quando crescemos continuamos a sonhar um pouco com isso. Mas a sociedade é o contrário, é admitir que cada um é importante por si mesmo e que nós somos apenas mais um dentro de um mundo de pessoas que têm os seus próprios fins… ora isso é difícil de suportar. Temos que ter uma certa paciência e uma certa humildade. A sociedade é imprescindível, não há que pedir que sejamos permanentemente felizes, que seja um êxtase permanente… um orgasmo perpétuo por viver em sociedade. A dor, por exemplo… o mundo moderno toma 50 pastilhas por dia para que lhe deixe de doer. É importante aprender a conviver com a dor, porque muitas vezes quer lembrar-te as coisas importantes. Há que aprender a viver com o insuficiente. O filósofo é alguém que aprende a viver com o insuficiente, sabe que vamos conviver sempre com o insuficiente.

JPG – O que é a ética?
FS – A ética, em primeiro lugar, não é um código. É uma perspectiva, uma forma de olhar para as coisas. É uma tentativa de dar sentido à liberdade. Somos livres, somos capazes de optar mas o importante é saber que sentido dar a essa opção, se um sentido meramente instrumental se um sentido mais social… Por isso a ética significa também acção. Desconfio muito de uma ética meramente teórica. A ética tem que aplicar-se a cada situação e cada situação é diferente…

JPG – A estética triunfou sobre a ética?
FS – Um dos problemas da modernidade foi precisamente tentar substituir a ética pela estética. A estética está ligada à novidade e o nosso século está ávido de novidades. A ética é o contrário, é a memória do que não muda, a ideia de que o ser humano deve ser o mais importante para outro ser humano, o direito de o ser humano não poder ser utilizado como uma ferramenta, um instrumento. Todas essas coisas não variam, não mudam. Por isso o discurso ético é muito aborrecido, é sempre sobre o mesmo. Não há novidades no mundo da ética. Às vezes perguntam-me qual é a ética do século XXI. E eu respondo: é a mesma do século XX.

JPG – Mas cada época coloca problemas novos. Quais são as tarefas da ética nos dias de hoje?
FS – Sim, claro, a globalização, a ecologia, a desflorestação do mundo, a poluição dos mares, a fome das massas que não se poderá nunca resolver a não ser à escala mundial, a educação dos jovens, os problemas das mulheres… São tarefas concretas, mas os valores que estão por trás dessas tarefas são os mesmos de sempre. Se me sinto preocupado com a fome das crianças é pelos mesmos princípios que valiam no século XVI e XVII. Os problemas da solidariedade humana não mudaram, os princípios básicos são os mesmos. O professor de ética não pode fazer mais do que recordar os problemas de sempre, enquanto que a estética pode mudar completamente os seus conteúdos.

JPG – Disse que o nascimento da filosofia marca a verdadeira origem da era a que pertencemos. Porquê?
FS – Na nossa civilização, a filosofia está ligada ao fenómeno básico, politica e socialmente, que é a democracia. Sem democracia a filosofia morre. Não poderia existir filosofia sem existir algo parecido com a democracia. Por isso acho um absurdo quando se fala da filosofia na China ou da filosofia hindu. Na China, na Índia, houve sabedorias... Muito importantes, claro, mas não filosofia, porque a filosofia exige o mecanismo democrático. Não pode haver filosofia sem democracia.

JPG – Há dilemas insolúveis?
FS – Sim, muitos, encontro pelo menos um ou dois todos os dias.

JPG – O que é que pensa da morte?
FS – Uma das poucas originalidades do meu trabalho é ter falado muito da morte. Procuro reflectir muito sobre o tema da morte. Quando percebi, em criança, que mais tarde ou mais cedo iria morrer, foi quando pela primeira vez me pus a pensar por mim próprio. Nos diálogos do Fédon, de Platão, Sócrates diz que filosofar “é preparar-se para morrer”.

JPG – Deus faz falta?
FS – Um amigo meu, um escritor catalão de origem indiana, Salvador Pániker, escreveu recentemente um livro, Cuaderno Amarillo, onde me dedica um capítulo em que diz que eu sou a pessoa mais incapaz de concepções transcendentes, metafísicas. Diz que eu nunca tive problemas teológicos, nem vivi a agonia da ruptura da fé. Eu não tenho, digamos, o terceiro sentido para a transcendência, para a metafísica… Apesar de ter sido educado numa família muito católica, em colégios marianistas, nunca tive essa necessidade, nem uma agressividade especial, salvo contra os clérigos porque me parece que em países como Espanha tiveram consequências muito negativas… sou contra as acção política da clericanalha.

JPG – A religião pode ajudar à vida boa?
FS – A religião é um pouco como o vinho. Há pessoas a quem cai bem, outras a quem cai mal. Há pessoas que bebem e ficam muito simpáticas, muito generosas, que repartem o seu dinheiro com os outros, como naquele filme do Charlot, não sei se era As Luzes da Cidade se O Miúdo, em que aquele milionário quando estava bêbedo e se encontrava com Charlot lhe dava dinheiro e quando estava sóbrio batia-lhe. Com a religião passa-se o mesmo. Há pessoas que por causa da religião vão ao fim de África cuidar do próximo, fazer coisas que ninguém faria por outros motivos. Essa gente pode sentir-se bem, muito feliz pensando noutro mundo.

JPG – O que é que lhe agrada realmente na vida?
FS – O que mais gosto no mundo são as corridas de cavalos. Estou a escrever agora um livro que é o ano 2000 visto através das grandes corridas de cavalos do mundo, por isso tenho viajado muito. As pessoas também foram sempre muito importantes para mim. Não gosto dos objectos. Gosto da materialidade dos outros seres humanos, de tocar numa mulher. Agora fazer colecção de objectos… Gosto das coisas muito simples, a comida, o vestir e, no entanto, gosto da sofisticação intelectual. O meu sonho é converter-me em alguém de gostos muito simples e mente muito complexa.

JPG – Acha que o ser humano é hoje mais feliz que no passado?
FS – Não estive no passado para poder dize-lo. Gostava de ter vivido no século XVII ou XVIII para agora o poder dizer.

JPG – No seu dicionário de filosofia aparecem entradas para Casanova, Robert Louis Stevenson, Peter Cushing…
FS – São gosto pessoais. O filósofo não tem que coincidir com as ideias que se atribuem ao filósofo, uma pessoa séria, grave… o importante é que o filósofo, ou um aficcionado da filosofia como eu, possa mostrar a sua vida. Ora da minha vida fazem parte Cushing, os monstros dos filmes americanos dos anos cinquenta. E tudo o que faz parte da minha vida eu tento converter em reflexão. O importante não é que haja temas filosóficos e temas não filosóficos. Não existem temas filosóficos. A filosofia reflecte filosoficamente sobre tudo. Portanto, podemos fazer filosofia a partir de qualquer coisa, e cada um deve fazê-lo a partir da sua vida. Eu procurei fazê-lo a partir da minha.

JPG – O que é que aprecia num escritor?
FS – Gosto da falta de ênfase. Não gosto de escritores enfáticos, parece que cada frase que escrevem foi pensada para ser uma máxima.

JPG – O paradoxo é uma das figuras literárias de que mais gosta. Qual é o maior paradoxo da nossa época?
FS – Bom, eu efectivamente gosto do paradoxo porque os escritores que mais gosto, que são Chesterton e Unamuno, são dois criadores de paradoxos. O paradoxo é algo, digamos, óbvio e que, ao mesmo tempo, sacode as nossas certezas. Hoje em dia assistimos ao contraste que é uma sociedade humana cada vez mais universal, mais global, e indivíduos a defenderem como nunca a sua individualidade. A tribo pequena admite muito menos individualidade que a sociedade global. Quando todos estivermos num mundo homogéneo, pelo menos em termos políticos, é quando seremos mais individuais. Esse é o momento precisamente em que a individualidade não vem do grupo mas em que terás que a buscar tu próprio. Esse é um dos paradoxos da modernidade. Curiosamente, todos os que lutam contra a globalização o que querem é tribos mais pequenas onde possam sentir-se acolhidos.

JPG – Já encontrou o que procura?
FS – Seria mau sinal se eu já tivesse encontrado. E depois, o que é que fazia?

JPG – Se tivesse que escrever um epitáfio para si, o que punha lá?
FS – Gosto do epitáfio de Groucho Marx: “Senhora, perdoe que não me levante”.


terça-feira, abril 12, 2005

 

Conhece-te a ti mesmo

Byron dizia que a sociedade é composta de dois grupos: os enfadados e os enfadonhos. E tu? A que grupo pertences?

 

A Mafia Senta-se À Mesa IV





No ano de 1963, Frank Sinatra pediu audiência a Genco Russo. Sinatra viajou até à Sícilia na condição de embaixador da Cosa Nostra, a mafia americana. Em causa estava a sucessão de Lucky Luciano, envenenado com cianeto no ano anterior. O encontro estava marcado para as 11 horas no átrio do Hotel Sole, em Palermo. Às 13 horas, Sinatra continuava à espera, movimentando-se de um lado para o outro com as mãos atrás das costas. O nervosismo do cantor de My Way divertiu o magote de jornalistas e fotógrafos presentes. Don Genco Russo, quase analfabeto, queria mostrar à estrela de Hollywood que era ele quem ditava a lei dos chefes das famílias da Cosa Nostra. A demora prolongou-se mais meia hora. Às 13h e 35m, Don Genco começou a subir a escadaria do hotel. Levava o casaco debaixo do braço, um chapéu de coco estilo anos 30 e suspensórios a prender umas calças excessivamente subidas nas costas. Sinatra ajoelhou-se aos pés do soberano e agarrou-lhe a mão direita, que beijou em sinal de vassalagem: “Baccio i mani, Don Genco”.
Giuseppe Genco Russo era um dos homens mais ricos da ilha. Tinha uma fortuna pessoal avaliada em mais de cento e dez mil milhões de liras, aos quais devem ser acrescentados cento e quarenta e sete mil hectares de vinhas, citrineiras e searas, rebanhos e o rendimento de quatrocentos imóveis ou propriedades. Anos antes, em 1954, fora coroado sucessor de Don Calogero Vizzini, um dos chefes históricos da organização. A cerimónia decorreu no funeral deste último e foi testemunhada por todos os chefes das famílias: Navarra, Celeste, Albano, Di Peri, entre outros. Parecia um “soberano bárbaro no coração da sua tribo”.
Don Genco ordenou a Sinatra: “Alzate! Non sei rifardu!”, levanta-te, não és um estranho. E quando o cantor fez tenção de lhe falar, despediu-o com um gesto imperioso da mão. Publicamente humilhado, Sinatra teve de esperar mais dois dias até ser recebido pela Mafia siciliana, por ocasião do almoço oferecido por Genco Russo na sua residência de Agrigento. O ídolo da América entrou no pátio da casa, onde algumas mulheres de preto, sentadas em cadeira de palha, depenavam galináceos. Foi-lhe dito que Don Genco estava a cuidar das vinhas e que não demorava. Pela segunda vez em três dias, a vedeta era deixada à espera.
Uma hora mais tarde, Sinatra foi conduzido à sala de jantar onde já se encontravam à mesa uma dezena de chefes mafiosos, todos eles de camisa, suspensórios e bigode. Durante o almoço, ninguém ligou ao cantor. As atenções estavam todas voltadas para o anfitrião, que se mostrou jovial e espirituoso. De entrada, os convidados comeram dois petiscos da cozinha mafiosa: pasta-cicci, uma sopa siciliana feita com carne cozida, macarrão e grão-de-bico misturados no suco da carne e no azeite; e bollito-misto, carnes acompanhadas de legumes cozidos, como cebolas, alhos franceses, espargos, cenouras e nabos. As criadas serviram depois cordeiro assado à moda de Agrigento com fundos de alcachofras e espinafres gratinados.

Jarrete de Cordeiro à Moda de Agrigento

Segundo Martine Bartolomei, o segredo desta receita reside no molho de anchovas. Enquanto o cordeiro está a cozinhar na assadeira, escorra dois filetes de anchovas, descasque um dente de alho e desfolhe um ramo de rosmaninho. Pise tudo num almofariz e adicione cinco colheres de azeite e outras tantas de vinagre de vinho. Quando a carne estiver pronta, regue-a com o molho e leve a reduzir a fogo lento. Retire o excesso para uma molheira.

Fundos de Alcachofras com Espinafres (6 pessoas)

1 kg de espinafres 4 filetes de anchovas
8 alcachofras pequenas 1 dente de alho
muito tenras 1 cebola
50 g de parmesão ralado azeite
50 g de pão ralado sal e pimenta
25 g de farinha

“Refogue no azeite o alho esmagado, a cebola picada e as anchovas demolhadas e cortadas finamente. Junte os espinafres abundantemente lavados, bem escorridos e cortados finamente. Deixe reduzir a fogo lento durante dois minutos, depois salpique de farinha, tempere de sal e pimenta, cubra e deixe estufar por mais cinco minutos.
Tire das alcachofras as folhas e a barba e disponha os fundos num prato de ir ao forno untado de azeite. Tempere de sal e pimenta e cubra com os espinafres, o azeite, o pão ralado, o parmesão.
Leve a forno forte durante vinte minutos. Sirva muito quente”.

Durante a refeição não se pronunciou palavra, ouvindo-se apenas os ruídos dos talheres e da mastigação. A conversa foi recuperada à sobremesa, com os marmelos no forno e o flan de castanhas.

Flan de Castanhas (8 pessoas)

150 g de farinha peneirada 60 de açúcar
10 cl de leite 2 gemas de ovo
75 g de manteiga

Guarnição:
350 g de castanhas grandes 3 claras de ovo
40 cl de leite um pouco de manteiga
vagem de baunilha um pouco de açúcar baunilhado
2 colheres de açúcar
4 colheres de nata líquida
muito untuosa

Faça um buraco na farinha para aí introduzir o açúcar, a manteiga, as gemas, uma pitada de sal e o leite. Misture sem bater e faça uma bola. Deixe a repousar durante duas horas em local fresco. Faça uma incisão na casca das castanhas e deite-as num tacho com água a ferver durante cinco minutos. Já sem pele, junte-as num tacho com o leite, a baunilha, o açúcar e uma pitada de sal. Deixe a cozer em lume brando durante quarenta e cinco minutos. Tire do fogo e junte a vagem de baunilha e as natas. Misture tudo muito bem e inclua as claras em castelo.
Estenda com um rolo a massa, cuja espessura não deve ultrapassar meio centrímento. Introduza-a numa forma de pudim bem untada de manteiga, retire a massa que extravasa e dobre os rebordos para dentro. Pique o fundo com um garfo. Despeje o preparado de castanhas e espalhe-o uniformemente. Coza em calor moderado durante quarenta minutos. Deixe o flan arrefecer e polvilhe com açúcar baunilhado.

Sinatra viu-se sempre excluído da conversa, limitando-se a sorrir e a ouvir as infindáveis histórias de assassinatos e de compras de terrenos que marcavam o final das refeições sicilianas. A seguir aos cafés e à grappa, Genco Russo fez sinal ao cantor para que o seguisse. No seu gabinete, “o anfitrião jovial que momentos antes dava os seus ditos de espírito em bandeja a um auditório servil tinha dado lugar ao impiedoso tubarão de quem há quarenta anos falavam os relatórios de polícia”. Quando regressou à sala de jantar, Don Giuseppe disse para que todos o ouvissem: “Os States nunca passaram de uma terra que nós, Sicilianos, colonizámos e não vão ser os emigrantes que só existem graças a nós que hão-de vir mandar na nossa pátria.”
Quando se lê A Mafia Senta-se à Mesa é impossível não sentir um apetite voraz. As histórias e as receitas que aqui resumi são apenas alguns exemplos do que pode encontrar no livro. A si compete-lhe reconstituir a cozinha siciliana “com reverente exactidão histórica”, como dizia Eça a propósito da gastronomia greco-romana: “Eis aí um incomparável serviço feito ao estudo do passado. Já vastamente explorámos a Antiguidade nas suas letras: é tempo de a esquadrinharmos nos seus petiscos. Que os estudiosos, pois, fechem os livros — e preparem as caçarolas.”

domingo, abril 10, 2005

 

Bullet Proof Soul



Sade, Love deluxe

 

Conhece-te a ti mesmo

Louis-Ferdinand Céline costumava dizer que só há dois tipos de pessoas: os exibicionistas e os voyeurs. E tu? De que tipo és?

João Pedro

 

EU FICO




João Pedro

sexta-feira, abril 08, 2005

 

Toda a verdade sobre a questão que divide a humanidade: o combate de João Pedro George, O Impoluto, contra o jornal A Capital

Sim, o título do post é puro sensacionalismo. Quero apenas chamar a vossa atenção para dizer que também eu abandono esta esplanada – onde, por motivos vários, não fui um cliente tão habitual quanto isso. Daqui a uns dias, fundarei uma novíssima casa, onde poderei espalhar a minha tralha à vontade. Sim, nisto dos blogs, chegou a altura de ir viver sozinho. Termino com uma citação de Confúcio ou de Horácio (não sei bem), que me parece apropriada ao espaço e ao momento: “Olhe, era a continha, se faz favor”. Nuno

quinta-feira, abril 07, 2005

 

O último que feche a porta

Ao contrário do que eu esperava, a minha participação no Esplanar não acabou por falta de posts, mas por excesso. Lamento desiludir o Pedro Mexia e o Pula Pulga, mas não é aqui que vou continuar a escrever. A partir de amanhã, estarei no Olha que não a discordar de uma feminista moderna. Filipe

 

Ainda o caso de A Capital

Para aqueles que mal conseguiram acreditar (se estivesse na vossa posição também eu ficaria banzado) no caso da roubalheira do jornal A Capital (penso em particular no Paulo Pinto Mascarenhas , no O Insurgente e no Núcleo Duro ) estou à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais, nomeadamente cedência de fotocópias, digitalizações, datas do jornal e respectivas páginas para consulta na hemeroteca, etc, etc, etc.


João Pedro

 

A Mafia Senta-se À Mesa III

Quando Benito Mussolini decidiu visitar a povoação de Piana dei Greci (mais tarde conhecida como Piana degli Albanesi) no ano de 1924, os tempos eram outros mas a cozinha e a adega sicilianas continuavam a cuidar honestamente do estômago dos maffiosi. A uma hora de carro de Palermo, Piana era o feudo de Don Cuccio Cuscia, autarca e chefe incontestado da Mafia local. Segundo Jacques Kermoal, era o “arquétipo da povoação siciliana, com as suas casas baixas e ocres, as suas portadas de cor, o seu folclore particular e mesmo o seu culto católico-ortodoxo”.
Quando o Bugatti branco do Duce assomou às portas de Piana estava-se então no início do mês de Maio. Don Cuccio recebeu-o com uma camisa negra fascista sobre a qual reluzia a cruz de cavaleiro da Coroa de Itália, condecoração atribuída por Vittorio Emanuelle III. Depois dos discursos, durante os quais se fez a saudação romana, os convidados dirigiram-se para as mesas ao som dos vivas da população: “Viva il Duce, viva Don Cuccia!”
Logo que o bispo católico-ortodoxo da minoria albanesa da Sicília benzeu a refeição, começaram a desfilar pernis de mula, chouriços de burro, enrolados de carne com folhas de louro e guisados de carneiro. Os homens de Cuccio Cuscia comiam como autênticos bárbaros, levando à boca pedaços gigantescos de carne e bebendo de um trago os copos do tinto áspero e xaroposo da região.
Mussolini, que estimava as boas maneiras e era homem de boa mesa, sossegou a cólera com a chegada da sobremesa: fruta fresca, ovos em neve e cuccia, um doce de herança árabe que leva trigo, queijo ricotta fresco e mel. Mas por pouco tempo. Logo que regressou a Roma, Mussolini mandou prender Cuccio Cuscia. Começava a perseguição do fascismo à Mafia, que viu muitos dos seus chefes encarcerados na “Villa Mori”, o outro nome que os Palermitanos davam à prisão do Ucciardone. Vinte anos mais tarde, a onorata società vingava-se, apadrinhando o desembarque americano na Sicília.
João Pedro

quarta-feira, abril 06, 2005

 

end of the second chapter

Será um problema da blogosfera: é tão simples escrever a primeira palavra como colocar o ponto final.
Não era suposto ser assim, tal como não o foi no DESEJO CASAR. É o rumo que as coisas tomam. Também eu deixo hoje o ESPLANAR e dou razão ao Rui (embora não consiga que o meu ADEUS seja tão breve como o dele, sempre será bem mais pequeno que aquele com que terminei o período casadoiro).
Existem razões concretas para este abandono, mas o cansaço do final de um dia de trabalho já nem me deixa a paciência suficiente de as EXPLANAR.
De qualquer modo, está, desde há uns 10 minutos, um novo blogue on-line. Ainda não anuncio a sua localização porque o BLOGGER me insiste em aparecer em Chinês (literalmente), pelo que o que existe, para já, é apenas um rascunho. A html já é o que é - imaginem naqueles caracteres. Mas, em poucos dias, estará em ordem e, então, aqui regressarei para vos dar essa notícia.
Até já, pois.

(último mandamento da lei de Borges: "Se não te sabes despedir, diz que já voltas.")
Alexandre Borges

terça-feira, abril 05, 2005

 

Assim também eu faço jornais...


Há alguns meses, o jornal A Capital publicou textos meus sem aviso prévio. Alguns tiveram mesmo honra de página inteira e um outro – “Editoras e Publicidade” – foi mesmo acompanhado de fotografia ilustrativa. Não houve um telefonema, um mail, um sms, um telegrama, nada! Avisar o autor dos textos seria o mínimo. É assim, aliás, que procedem as pessoas bem formadas. Agora vejam só o cúmulo do descaramento: hoje fui ao site da Capital e, no final da página, encontrei este aviso que põe qualquer um em sentido: “A Capital é um produto da Editorial Prensa Ibérica. Fica expressamente proibida a reprodução total ou parcial dos conteúdos oferecidos através deste meio, salvo autorização expressa de A Capital”. Se o caso não fosse de polícia até era capaz de me rir. Se a justiça fosse rápida e se estivéssemos nos Estados Unidos a coisa piava doutra maneira. Os directores do jornal já estariam provavelmente no banco dos réus acusados de roubar textos e de com eles fazerem negócio. Valerá a pena lembrar que estou a falar de um jornal que está à venda e que, por conseguinte, está a fazer negócio com textos roubados nos blogues? Shame on you Mr. Luís Osório.

João Pedro

 

Como dizia o outro, all farewells should be sudden

A minha colaboração com o Esplanar termina aqui. Vemo-nos por aqui ou por aí. Muito obrigado a todos, os aqui da mesa, os das outras mesas e os de visita, por estes meses de esplanada.
Rui

 

Um Novo Talento Na Esfera dos Blogues

Os textos da Patrícia H., no Não Sei Brincar, são uma rajada de ar fresco no circuito bloguístico. Leiam, vale a pena.
João Pedro

 

A Mafia Senta-se À Mesa II


A segunda refeição passa-se em 1909, na Palermo das festas sumptuosas dos novos-ricos e dos aristocratas que sobreviveram à derrota dos Bourbons de Nápoles. No dia 12 de Março, Don Vito Cascio-Ferro, patrão incontestado em mais de metade da Sicília, foi almoçar a casa do deputado Onorevole Petrani, seu amigo e intermediário entre a onorata società e o governo italiano. Dois dias antes, Don Vito fora avisado da chegada de um tenente do FBI, Jack Petrosino, temível perseguidor dos mafiosos do Novo Mundo. O polícia americano acreditava que o aumento da criminalidade nos E.U.A. estava intimamente ligado à crescente emigração dos sicilianos. Entre 1901 e 1914, chegaram aos Estados Unidos mais de oitocentos mil sicilianos. Petrosino tinha sido responsável pelo repatriamento de diversos imigrantes ilegais. Entre eles contava-se Don Vito, que pertencia ao grupo de falsificadores detidos em 1903.
A chegada do americano coincidiu com a hora do almoço de Cascio-Ferro, entre o queijo de cabra de Caltanissetta e a cassata siciliana. Don Vito pediu licença a Petrani: teria de se ausentar por 20 minutos. Dirigiu-se para a Piazza Marina, no centro de Palermo, a cinco minutos a pé da residência do parlamentar. Quinze minutos volvidos, Don Vito afundava já a colher de sobremesa na cassata. Os dias de Petrosino tinham chegado ao fim com uma bala de pistola de cavalaria em pleno rosto. Recostado na cadeira do deputado, saboreou o café com pensativa lentidão e acendeu um charuto húngaro, manufacturado especialmente numa fábrica de tabacos de Budapeste. Nas cintas, o seu nome impresso: Don Vito.
Da ementa que presidiu a esse almoço privado constam algumas iguarias que nem o próprio Deus se permite comer. A arrancar a cavaqueira, dois antipasti caseiros: azeitonas no forno e feijões com hortelã. Seguiram-se os salmonetes com sementes de funcho e o borrego recém-nascido em molho com ervas das encostas vulcânicas, cujo sabor desliza suavemente para dentro da alma. Para culminar esta autêntica fisiologia do paladar, dois vinhos produzidos nas encostas do Etna, uma garrafa de Chianti e outra de Frascari. Como diz um velho ditado siciliano: “Provar uma gota de vinho do Etna é tão agradável ao coração do homem de bem como uma gota do sangue que corre nas veias do seu inimigo”.

Eis uma das receitas:

Salmonetes com sementes de funcho (6 pessoas)

12 salmonetes grandes das rochas
1 colher de semente de funcho
1 colher de salsa picada
150 g de toucinho
azeite
sumo de limão
sal
pimenta

Para saber como executá-la, prestemos atenção a Martine Batolomei:

“Depois de amanhados e lavados, tempere os peixes com o azeite, o sumo de limão, sal e pimenta, mais as sementes de funcho pisadas, a salsa e o toucinho cortado aos cubinhos. Prepare folhas de papel untado e, em cada folha, disponha dois salmonetes assim temperados, com a gordura do toucinho. Feche o papelote e leve à chapa ou à brasa durante cerca de 20 minutos”.
João Pedro

segunda-feira, abril 04, 2005

 

A Mafia Senta-se À Mesa

Don Genco Russo beijou a testa, o peito e os dois ombros do jovem Luciano Liggio, assassino dilecto da onorata società. Ao mesmo tempo, pronunciou as palavras sacrificiais: “Dou-te a vida do traidor, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amen”. O traidor era Dottore Navarra, chefe da família de Corleone, com o qual Genco Russo tinha contas a acertar. Sentou Liggio à mesa, onde estavam dispostos pão, sal, alho e vinho. Partiu o pão em seis bocados e esfregou-os no alho. Estendeu-os a Liggio e aos quatro guarda-costas presentes, guardando um bocado para si. Seis mãos mergulharam o pão num prato cheio de sal. Cada um comeu metade do seu pedaço de pão e bebeu metade do copo de vinho que tinha à frente. Dirigindo-se ao assassino, disse: “Vai, ficamos à tua espera para acabarmos esta refeição”.
No dia 10 de Agosto de 1958, Dottore Navarro vergou-se às balas de Luciano Liggio, que na noite desse mesmo dia regressou a Agrigento, o feudo mafioso de Genco Russo, para terminar a refeição iniciada na véspera. Segundo a terminologia da Mafia, o pão significa a união, o sal a coragem, o vinho o sangue e o alho o silêncio. A história é contada por Jacques Kermoal na introdução de A Mafia Senta-se à Mesa, uma antologia da cozinha siciliana recentemente publicada pela Teorema.
Para Kermoal, perceber a Mafia é conhecer o sabor do bife do lombo à napolitana que Lucky Luciano ofereceu a um jornalista ou reconstituir, com todos os seus condimentos, o cordeiro afogado em molho de anchovas do almoço de Frank Sinatra com Genco Russo. Sempre que é chamada a tomar decisões importantes ou a receber convidados ilustres, a Mafia reúne-se em torno de um guisado ou de um prato de macarrão.
1860, pleno Risorgimento, Garibaldi desembarca nas praias da Sicília. A memória dos sicilianos ainda hoje lembra o festim e os petiscos que celebraram a vitória do exército garibaldino sobre os soldados de farda azul celeste do rei de Nápoles, Francesco II. Nem no tempo dos Fenícios ou da ocupação árabe assistira a ilha a semelhante banquete. Havia muito, a Mafia preparava um golpe com o intuito de estender a sua influência a toda a Sicília. Pretendia acabar com o poder dos proprietários de latifúndios, os nobres que juravam obediência ao rei de Nápoles. A solução encontrada foi uma aliança com o rei do Piemonte, Vittorio Emmanuele, a braços com a unificação de Itália. À testa dos exércitos nacionalistas estava Garibaldi. Por que razão este interesse da Mafia pelo Piemonte? A resposta é simples: ficava distante da Sicília e era uma monarquia parlamentar. “Eleições?, isso fabrica-se!”, referiu então um padrinho.
No final do mês de Janeiro, os chefes mafiosos enviaram a Turim alguns “liberais sicilianos”. Foram recebidos pelo conde de Cavour, primeiro-ministro dos piemonteses, a quem ofereceram colaboração. Nesse encontro ficou delineado o desembarque dos exércitos de Garibaldi. O dia: 11 de Maio de 1860. O Libertador largou âncora na praia de Marsala, a ponta ocidental da Sicília, com perto de novecentos garibaldinos, todos de barba como o seu general e envergando camisas vermelhas e lenços verdes. A marcha sobre Palermo foi saudada pela população, no meio da qual se podiam distinguir algumas das velhas raposas da Mafia. Os palácios dos príncipes e dos barões tiveram de abrir as suas portas aos oficiais garibaldinos, que logo trataram de comemorar a vitória com as jovens sicilianas... Mas enquanto Palermo bebia champanhe, os capi apoderavam-se dos municípios e expropriavam a aristocracia. “Era todo um mundo que desaparecia”, escreveria Tomasi de Lampedusa em Il Gattopardo.
Garibaldi era um nacionalista ferveroso. Queria oferecer Roma, a cidade dos Césares, a Vittorio Emmanuele. Na opinião de Cavour, o entusiasmo do general começava a incomodar: “À custa das vitórias, esse cretino do Garibaldi ainda vai deixar a Itália na merda”. A conquista da Cidade Eterna podia coligar a Áustria, a Espanha, Portugal e a França de Napoleão III contra o Piemonte. Uma vez mais, a Mafia seria chamada a entrar em acção, preparando um almoço de digestão lenta aos soldados garibaldinos. A pândega foi tal que o Libertador aceitou prolongar em uma semana a sua presença na Sicília. O tempo suficiente para Bixio, outro general do exército piemontês, posicionar os seus homens ao longo da estrada de Roma e impedir a passagem de Garibaldi.
A refeição, servida ao ar livre perto das muralhas de Messina, no território siciliano onde o Liberatore havia iniciado a marcha vitoriosa, juntou mais de mil e duzentos convidados. A ementa é rabelaisiana: depois dos queijos de cabra e do pernil fumado, os comensais provaram as especialidades da região, peixe-espada “agghiotta”, pescada à moda de Messina, galinha-da-índia estufada recheada de trufas, perna de cabrito-montês faisandé com aguardente de ameixas de Agrigento e, por fim, borrego assado com azeite virgem de Caltanissetta. Tudo acompanhado de muita couve-flor, alcachofras e aipos cozidos a vapor.
Aqui fica uma das receitas:

Peixe-Espada «Agghiota» (6 pessoas)

1 kg de pescada branca 100 g de azeitonas brancas
1 kg de batatas 50 g de alcaparras
100 g de aipo picado 1 cebola finamente picada
500 g tomates pelados

Leve a dourar a cebola em meio copo de azeite. Junte os tomates sem grainhas, as azeitonas descaroçadas, as alcaparras e o aipo picado. Depois de tudo bem alourado, adicione um litro de água, onde deve mergulhar a pescada, as batatas às rodelas e cerca de 30 g de aipo picado. Deite sal e pimenta a gosto e junte um pouco de colorau. Deixe a cozinhar em fogo lento durante duas horas. Sirva numa travessa e, como dizia Eça, “louve Neptuno, deus dos peixes”.

Porque o peixe não deve ser deixado em doca seca, foi servido vinho branco muito fresco: Bazia e Gebbia. A acompanhar as carnes, dois tintos secos, Faro e Corvo. Para a sobremesa, gelados, soufflés, bolos armados, maçãs esventradas e a imortal “Pignolata”, um doce que merecia ser cantado por poetas:

Execução

Espalhe 1 kg de farinha e faça uma abertura no meio. Deite para lá 12 gemas de ovo batidas e um pouco de pingue. Misture tudo até obter uma massa consistente. Corte pequenos palitos da grossura de um dedo e 12 cm de comprimento. Leve a dourar no pingue, faça-os escorrer sobre papel absorvente e empilhe-os. Derreta lentamente 600 g de açúcar e 300 g de chocolate. Entorne a mistura morna sobre a pignolata.
Depois do penoso banquete, o general foi vencido no Aspromonte. É caso para se dizer, como a propósito do Império Romano, que Garibaldi “pereceu pela barriga”.

João Pedro



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