JPG – Como passava o tempo na prisão?
EP – Para além de partir pedra, como em qualquer regime prisional, continuei a estudar. Estudei cálculo integral, electrónica, radiotécnia. Aprendi sozinho e ajudado principalmente pelo Bento Gonçalves. Costumava sentar-me junto à cama do Bento Gonçalves, a aprender marxismo e álgebra. O Bento Gonçalves morreu no Tarrafal, com uma biliosa anúrica. Também estava lá o Alberto Araújo, filólogo, deu-me aulas de português. Saiu de lá tuberculoso. E depois aprendi também línguas, francês, inglês, alemão… aprendi toda a gramática alemã na prisão. Mas não era fácil. Custou-me muito sacrifício, porque era tudo feito fora das horas de trabalho.
JPG – Tentou fugir?
EP – Tomei parte em duas fugas, uma colectiva, organizada pelo PCP, outra à margem do Partido. O PCP reservava-se o direito de escolher quem é que devia fugir. Como membro do partido, submetia-a à sua disciplina. Eu estava de acordo com esse princípio, porque achava que quem devia tentar fugir eram aqueles que faziam mais falta cá fora, os quadros mais importantes, mais experientes. A certa altura convenci-me que eles não fugiam nem deixavam fugir. Que a disciplina do partido era mais impeditiva da fuga que os guardas, o arame farpado, a vala, o talude, os sentinelas. Porque é que haveria de aceitar uma disciplina que era totalmente inoperante? Então pensei que a única maneira era calar-me, organizar uma fuga sem dizer nada. Juntámo-nos cinco, eu, o meu pai e mais três companheiros. Foi em 1943.
JPG – E dessa vez conseguiu finalmente escapar?
EP – Não. Não conseguímos fugir por um azar do caneco. Em pleno dia, sem ninguém dar por isso, 5 pessoas saíram do Tarrafal. Lá dentro, eu trabalhava numa oficina de electricidade e nesse dia estava encarregue de levar uma bateria à central de electricidade. O meu pai não tinha pretexto para sair, mas escondeu-se atrás de uns bidons grandes de água que estavam a ser descarregados. Os outros três estavam destacados para ir buscar lenha. Tínhamos à nossa frente 4 horas para chegar a um barco de cabotagem que passava de 15 em 15 dias. Tomávamos conta do barco e fugíamos. E só não aconteceu porque dois dos nossos fizeram tudo ao contrário. Passaram junto dos “rachados”, dos bufos do campo, porque havia lá a situação dos presos que se mantinham com dignidade, que não abdicavam de nada, e os chamados rachados, que tinham liberdade de sair, iam para as hortas, encontravam-se com as cabo-verdianas… E um desses gajos viu-os passar e denunciou-os. Nós já estávamos longe, eu, o meu pai e outro, estávamos numa serra à espera deles. Se eles tivessem feito como nós, que era dar a volta ao campo e tirar a farda, não eram vistos. Quiseram facilitar, passar junto das hortas, onde estavam os bufos. Estragaram tudo.
JPG – E vocês os três?
EP – Fomos apanhados nesse dia à tarde. Percebemos que havia um problema com os outros e fugimos. Apanhámos um barco pequeno para ver se chegávamos ao outro barco de cabotagem. Os pescadores a quem nós roubámos o barco correram a denunciar-nos e deram com os guardas que iam a correr atrás dos outros. Pensaram: “aqueles que vão no barco são mais perigosos”. Correram a direito até à praia, deixaram os outros. Isso permitiu que eles se internassem na ilha. Quando os guardas chegaram à praia, nós já íamos com uma certa distância. Apanharam outro barco, foram atrás de nós, viram onde é que tínhamos saído e, ao fim da tarde, quando já estávamos convencidos que nos tínhamos conseguido safar, foram descobrir-nos numa gruta.
Edmundo Pedro de visita ao Tarrafal, onde encontrou alguns angolanos que também lá tinham estado presos mas em alturas diferentes. Aqui, à porta da Frigideira.
JPG – O que é que vos fizeram?
EP – Fomos levados ao director do campo, um tipo terrível. Era conhecido como o “Abóbora”. Um dos que foi visto pelos bufos, o Nascimento Gomes, do Porto, morreu em consequência dos espancamentos. Rebentaram-lhe com os rins… Foi a coisa mais brutal que se fez no Tarrafal. Eu, o meu pai e os outros dois fomos parar à tal frigideira, a cela punitiva. Fecharam-nos ali durante 70 dias seguidos. Batemos o recorde. O castigo era de 60 dias, mas só nos começaram a contar o tempo a partir do momento da prisão do último fugitivo, que era o Rato. Como só foi apanhado ao fim de dez dias, nós cumprimos 70 dias de frigideira.
JPG – Como era a frigideira?
EP – Era uma cela em cimento armado, um cubo com uma porta em ferro, uma frestazinha em cima, o tecto em cimento e não tinha telhado. Era um forno autêntico, num clima tropical… era sufocante… havia dias em que a temperatura se devia aproximar dos 45 graus… passávamos os dias a suar, tínhamos de andar todos nús. À noite aquilo condensava e caía em cima de nós, parecia um chuveiro… Estivemos 3 dias sem beber água. Foi por intervenção do Cândido de Oliveira que nos levaram água. O Cândido também lá estava, mas tinha uma situação especial. Tinha sido preso no processo dos ingleses, ele e vários oficiais… Primeiro estiveram connosco, mas veio um telegrama do Salazar, ou da polícia, não queriam arranjar problemas com os ingleses, e puseram-nos numas barracas fora do campo. Mas arranjávamos maneira de nos correspondermos. O Cândido acompanhou esta tragédia toda… No livro dele sobre o Tarrafal dedicou um capítulo à nossa fuga, mas como ele morreu antes do 25 de Abril, o sobrinho, que era do PCP, cortou esse capítulo… Esse capítulo foi-nos lido, a mim e ao meu pai… até chegámos a fazer rectificações. O Cândido de Oliveira era muito meu amigo, gostava muito dele, foi meu sócio num viveiro em Corroios, eu, ele e o meu pai. O meu pai saiu do Tarrafal com a saúde arruinada, foi um dos mais perseguidos, no total esteve perto de 150 dias no forno. Tentou matar-se lá, abriu as veias…