Uma entrevista em movimento. Às 8h e 27m, o Sud-Express sacudia a estação de Coimbra-B. Fernando Savater estava na carruagem 141, vindo de San Sebastián. Não queria dar nas vistas. Afinal, a ETA já o tentou matar por duas vezes! Para este professor de filosofia nascido em 1947, passear na rua ou sentar-se num bar é oferecer-se como refém dos separatistas bascos. Fui à procura do escritor e encontrei-o sentado no bar do comboio, a tomar o pequeno-almoço. A conversa durou perto de duas horas, numa atmosfera de atentado terrorista.
Entre romances, peças de teatro e ensaios filosóficos, literários e políticos, são mais de quarenta e cinco os títulos onde Savater nos faz reencontrar as emoções fortes da filosofia. Contrário às pátrias e ao endeusamento das identidades nacionais, tem-se distinguido na luta contra a violência e contra a lógica militar dos Estados. Como Demócrito, acredita que a “pátria do sábio é o mundo inteiro”. Sinal de que a inteligência humana não envelheceu.
JPG – Já alguma vez deu uma entrevista num comboio?
Fernando Savater – Não, é a primeira vez (risos). Em todos os dias da vida faz-se algo de novo…
JPG – Em Espanha sabem que veio?
FS – Bom, há uma série de pessoas que sabem, a minha editora, a minha família. Suponho que as pessoas do El País. Eu não disse nada a ninguém. Além disso, por razões ligadas à política no país Basco… Não tenho muito interesse que saibam onde estou.
JPG – Qual a sua opinião sobre o reacender do conflito no País Basco?
FS – Estou numa plataforma de cidadãos que se chama “Basta ya”. Durante quase todo o Verão estivemos a preparar uma grande manifestação em San Sebastián que juntou cerca de cem mil pessoas. Estamos contra o estatuto da ETA na Constituição. O importante não é reprovar moralmente a ETA mas sim combatê-la politicamente. Por isso, a principal novidade que introduzimos foi propor um combate político e não simplesmente dizer que moralmente é mau matar um vizinho.
JPG – É anti-nacionalista?
FS – Decididamente. Sou absolutamente anti-nacionalista, contra todos os nacionalismos, começando no espanhol e terminando no chinês. Há um escritor basco, Pio Arroja, que diz que o nacionalismo é uma doença que se cura viajando. O que eu quis dizer com essa frase é um pouco o mesmo. Quando viajas, quando tens que cruzar as tuas fronteiras, deixar o teu lugar, o teu país, e se tens uma certa sensibilidade, dás-te conta que na maioria dos casos a ideia de nacionalismo é absurda. Os seres humanos foram feitos para se misturarem uns com os outros. As pessoas que viajam muito dão-se conta do parecido que são os seres humanos e os seus problemas em toda a parte do mundo. Creio que isso sim é que é a verdadeira lição para uma pessoa nacionalista. Um ser humano pode viver em qualquer sítio, sempre que esteja rodeado de outros seres humanos capazes de o compreender e de o ajudar.
JPG – Essa ideia lembra-me Montesquieu e as Cartas Persas…
FS – Todas as Cartas Persas são uma parábola acerca da universalidade humana e das referências culturais. Foi a primeira vez que alguém decide olhar para a sua civilização com os olhos de uma pessoa de outra cultura… Os persas que chegam a Paris surpreendem-se muito com as coisas pequenas mas reconhecem-se nas coisas importantes. O grande avanço dos ilustrados foi ter mostrado que, no acessório, os seres humanos são imensamente diversos, nas línguas, nas culturas, nas gastronomias, nas religiões, mas que nos pontos essenciais são muitos parecidos, porque os pontos essenciais estão determinados pela necessidade, não pela liberdade. Naquilo em que a liberdade intervém, os seres humanos são muito distintos, porque nós não sabemos o queremos com a nossa liberdade. Mas onde a necessidade intervém, somos muito parecidos, porque nós não escolhemos as nossas necessidades.
JPG – E, no entanto, disse numa entrevista anterior que não gosta de viajar…
FS – Eu não gosto de viajar mas passo a vida a viajar. A sensação de desenraizamento não tem que ser física. Uma pessoa, como eu, que tem um pai andaluz, uma mãe de Madrid, avós da Argentina e da Catalunha, não precisa de mover-se fisicamente. Eu já provenho de uma viagem, de uma viagem genética…
JPG – Num dos seus livros afirma que “as nações falam de si mesmas como qualquer indivíduo conta as suas peripécias eróticas…”
FS – Todos os nacionalismos são masturbatórios. São sempre uma espécie de massagem permanente ao ego colectivo. O problema é que todos os nacionalismos são contra outros, as nacionalidades formam-se contra outras. E, claro, num mundo de mestiçagens, de misturas, isso é muito perigoso.
JPG – O seu livro Contra las Patrias é um tanto polémico. Qual é que foi a reacção em Espanha?
FS – Foi um livro bastante escandaloso na sua época, quando foi publicado nos anos 80. Creio que foi a primeira vez que alguém considerado de esquerda em Espanha escreveu um livro contra os nacionalismos, contra a obsessão nacional. Porque até então, os nacionalismos era sempre vistos como algo de progressista. Franco lutou contra as nacionalidades, por isso as nacionalidades tinham prestígio… quando havia um acto público e alguém cantava em catalão ou basco… Nos anos 70, e mesmo no começo dos 80, o nacionalismo estava conotado com a resistência anti-franquista. Durante muito tempo confundiu-se em Espanha a esquerda com o anti-franquismo, ou mesmo a democracia com o anti-franquismo. Mas havia anti-franquistas que não eram democratas.
JPG - “Não nasci para a contemplação, não me interesso por nada em que eu não possa intervir imediatamente”. A função do filósofo compromete-o perante os outros seres humanos?
FS – A mim sim, aos outros não sei (risos). Penso que a filosofia é uma forma de acompanhar os outros…
JPG – É portanto um homem comprometido com a sua época?
FS – Com a minha época porque não posso estar comprometido com outra (risos).
JPG – Defende a despenalização das drogas. Porquê?
FS – Desde há muitos anos que defendo a despenalização das drogas. Os seres humanos sempre conviveram com a droga, e isso desde o começo da Humanidade. Todas as culturas conheceram as drogas, excepto talvez os esquimós que não têm vegetação, por isso é difícil terem acesso a substâncias aditivas (risos). É absurdo pensar que agora, na grande época da química, em que qualquer pessoa com um pequeno laboratório caseiro pode fazer substâncias sintéticas, as drogas vão desaparecer. Temos é que aprender a conviver com as drogas, como aprendemos a conviver com os outros problemas da Humanidade. Há que ensinar a temperança. A temperança significa utilizar os prazeres sem ser destruído por eles. Creio que a proibição é a fonte de todos os males, do tráfico das drogas, dos delitos, da adulteração das substâncias…
JPG – Já consumiu drogas?
FS – Eu…? Muitas… todas… acho que todas… pelo menos as da minha época… agora devem ter aparecido umas novas (risos).
JPG – Uma pessoa deve ter direito a drogar-se?
FS – O que me chateia é quando coisas como a droga se convertem numa forma de vida. São coisas que ocorrem na vida de um indivíduo, são etapas, formas de ir conhecendo coisas, formas de ir apalpando, de ir explorando. Agora, é bom tomar drogas? Não, não é bom nem mau. É uma coisa que podes fazer e da qual podes tirar proveito ou que pode levar-te à destruição. Com a política é o mesmo, com o amor é o mesmo… Irritam-me os missionários, seja da droga seja da abstinência das drogas.
JPG – Quando é que é necessário obedecer? Quando é que é preciso criticar?
FS – Temos que estudar cada caso. Há duas atitudes que dependem sempre do estabelecido: a que obedece sempre e a que se opõe sistematicamente a tudo o que se diz. A crítica, em sentido etimológico, vem de discernimento, de distinguir. Criticar é ser capaz de distinguir entre umas coisas e outras. Portanto, quem obedece sempre e quem se opõe sempre ao estabelecido não distingue. Vivem dependentes do que existe. Há que viver um pouco autonomamente.
JPG – Quem define o que é preciso para viver em sociedade?
FS – A paciência. A companhia dos outros é sempre difícil de suportar. O homem moderno vive um pouco o complexo da criança mimada, que pensa ser o centro do universo, a criança que quer tudo, quer tudo agora, e todas as sociedades querem tudo imediatamente, não admitem as contrariedades. O sonho infantil por excelência é essa omnipotência. Quando crescemos continuamos a sonhar um pouco com isso. Mas a sociedade é o contrário, é admitir que cada um é importante por si mesmo e que nós somos apenas mais um dentro de um mundo de pessoas que têm os seus próprios fins… ora isso é difícil de suportar. Temos que ter uma certa paciência e uma certa humildade. A sociedade é imprescindível, não há que pedir que sejamos permanentemente felizes, que seja um êxtase permanente… um orgasmo perpétuo por viver em sociedade. A dor, por exemplo… o mundo moderno toma 50 pastilhas por dia para que lhe deixe de doer. É importante aprender a conviver com a dor, porque muitas vezes quer lembrar-te as coisas importantes. Há que aprender a viver com o insuficiente. O filósofo é alguém que aprende a viver com o insuficiente, sabe que vamos conviver sempre com o insuficiente.
JPG – O que é a ética?
FS – A ética, em primeiro lugar, não é um código. É uma perspectiva, uma forma de olhar para as coisas. É uma tentativa de dar sentido à liberdade. Somos livres, somos capazes de optar mas o importante é saber que sentido dar a essa opção, se um sentido meramente instrumental se um sentido mais social… Por isso a ética significa também acção. Desconfio muito de uma ética meramente teórica. A ética tem que aplicar-se a cada situação e cada situação é diferente…
JPG – A estética triunfou sobre a ética?
FS – Um dos problemas da modernidade foi precisamente tentar substituir a ética pela estética. A estética está ligada à novidade e o nosso século está ávido de novidades. A ética é o contrário, é a memória do que não muda, a ideia de que o ser humano deve ser o mais importante para outro ser humano, o direito de o ser humano não poder ser utilizado como uma ferramenta, um instrumento. Todas essas coisas não variam, não mudam. Por isso o discurso ético é muito aborrecido, é sempre sobre o mesmo. Não há novidades no mundo da ética. Às vezes perguntam-me qual é a ética do século XXI. E eu respondo: é a mesma do século XX.
JPG – Mas cada época coloca problemas novos. Quais são as tarefas da ética nos dias de hoje?
FS – Sim, claro, a globalização, a ecologia, a desflorestação do mundo, a poluição dos mares, a fome das massas que não se poderá nunca resolver a não ser à escala mundial, a educação dos jovens, os problemas das mulheres… São tarefas concretas, mas os valores que estão por trás dessas tarefas são os mesmos de sempre. Se me sinto preocupado com a fome das crianças é pelos mesmos princípios que valiam no século XVI e XVII. Os problemas da solidariedade humana não mudaram, os princípios básicos são os mesmos. O professor de ética não pode fazer mais do que recordar os problemas de sempre, enquanto que a estética pode mudar completamente os seus conteúdos.
JPG – Disse que o nascimento da filosofia marca a verdadeira origem da era a que pertencemos. Porquê?
FS – Na nossa civilização, a filosofia está ligada ao fenómeno básico, politica e socialmente, que é a democracia. Sem democracia a filosofia morre. Não poderia existir filosofia sem existir algo parecido com a democracia. Por isso acho um absurdo quando se fala da filosofia na China ou da filosofia hindu. Na China, na Índia, houve sabedorias... Muito importantes, claro, mas não filosofia, porque a filosofia exige o mecanismo democrático. Não pode haver filosofia sem democracia.
JPG – Há dilemas insolúveis?
FS – Sim, muitos, encontro pelo menos um ou dois todos os dias.
JPG – O que é que pensa da morte?
FS – Uma das poucas originalidades do meu trabalho é ter falado muito da morte. Procuro reflectir muito sobre o tema da morte. Quando percebi, em criança, que mais tarde ou mais cedo iria morrer, foi quando pela primeira vez me pus a pensar por mim próprio. Nos diálogos do Fédon, de Platão, Sócrates diz que filosofar “é preparar-se para morrer”.
JPG – Deus faz falta?
FS – Um amigo meu, um escritor catalão de origem indiana, Salvador Pániker, escreveu recentemente um livro, Cuaderno Amarillo, onde me dedica um capítulo em que diz que eu sou a pessoa mais incapaz de concepções transcendentes, metafísicas. Diz que eu nunca tive problemas teológicos, nem vivi a agonia da ruptura da fé. Eu não tenho, digamos, o terceiro sentido para a transcendência, para a metafísica… Apesar de ter sido educado numa família muito católica, em colégios marianistas, nunca tive essa necessidade, nem uma agressividade especial, salvo contra os clérigos porque me parece que em países como Espanha tiveram consequências muito negativas… sou contra as acção política da clericanalha.
JPG – A religião pode ajudar à vida boa?
FS – A religião é um pouco como o vinho. Há pessoas a quem cai bem, outras a quem cai mal. Há pessoas que bebem e ficam muito simpáticas, muito generosas, que repartem o seu dinheiro com os outros, como naquele filme do Charlot, não sei se era As Luzes da Cidade se O Miúdo, em que aquele milionário quando estava bêbedo e se encontrava com Charlot lhe dava dinheiro e quando estava sóbrio batia-lhe. Com a religião passa-se o mesmo. Há pessoas que por causa da religião vão ao fim de África cuidar do próximo, fazer coisas que ninguém faria por outros motivos. Essa gente pode sentir-se bem, muito feliz pensando noutro mundo.
JPG – O que é que lhe agrada realmente na vida?
FS – O que mais gosto no mundo são as corridas de cavalos. Estou a escrever agora um livro que é o ano 2000 visto através das grandes corridas de cavalos do mundo, por isso tenho viajado muito. As pessoas também foram sempre muito importantes para mim. Não gosto dos objectos. Gosto da materialidade dos outros seres humanos, de tocar numa mulher. Agora fazer colecção de objectos… Gosto das coisas muito simples, a comida, o vestir e, no entanto, gosto da sofisticação intelectual. O meu sonho é converter-me em alguém de gostos muito simples e mente muito complexa.
JPG – Acha que o ser humano é hoje mais feliz que no passado?
FS – Não estive no passado para poder dize-lo. Gostava de ter vivido no século XVII ou XVIII para agora o poder dizer.
JPG – No seu dicionário de filosofia aparecem entradas para Casanova, Robert Louis Stevenson, Peter Cushing…
FS – São gosto pessoais. O filósofo não tem que coincidir com as ideias que se atribuem ao filósofo, uma pessoa séria, grave… o importante é que o filósofo, ou um aficcionado da filosofia como eu, possa mostrar a sua vida. Ora da minha vida fazem parte Cushing, os monstros dos filmes americanos dos anos cinquenta. E tudo o que faz parte da minha vida eu tento converter em reflexão. O importante não é que haja temas filosóficos e temas não filosóficos. Não existem temas filosóficos. A filosofia reflecte filosoficamente sobre tudo. Portanto, podemos fazer filosofia a partir de qualquer coisa, e cada um deve fazê-lo a partir da sua vida. Eu procurei fazê-lo a partir da minha.
JPG – O que é que aprecia num escritor?
FS – Gosto da falta de ênfase. Não gosto de escritores enfáticos, parece que cada frase que escrevem foi pensada para ser uma máxima.
JPG – O paradoxo é uma das figuras literárias de que mais gosta. Qual é o maior paradoxo da nossa época?
FS – Bom, eu efectivamente gosto do paradoxo porque os escritores que mais gosto, que são Chesterton e Unamuno, são dois criadores de paradoxos. O paradoxo é algo, digamos, óbvio e que, ao mesmo tempo, sacode as nossas certezas. Hoje em dia assistimos ao contraste que é uma sociedade humana cada vez mais universal, mais global, e indivíduos a defenderem como nunca a sua individualidade. A tribo pequena admite muito menos individualidade que a sociedade global. Quando todos estivermos num mundo homogéneo, pelo menos em termos políticos, é quando seremos mais individuais. Esse é o momento precisamente em que a individualidade não vem do grupo mas em que terás que a buscar tu próprio. Esse é um dos paradoxos da modernidade. Curiosamente, todos os que lutam contra a globalização o que querem é tribos mais pequenas onde possam sentir-se acolhidos.
JPG – Já encontrou o que procura?
FS – Seria mau sinal se eu já tivesse encontrado. E depois, o que é que fazia?
JPG – Se tivesse que escrever um epitáfio para si, o que punha lá?
FS – Gosto do epitáfio de Groucho Marx: “Senhora, perdoe que não me levante”.