ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

segunda-feira, abril 18, 2005

 
JPG – Qual é que foi a sua participação no chamado PREC?
EP – Tive uma participação activa no 25 de Novembro. Essa é uma história que me trouxe muitos dissabores. Eu fui responsável, no PS, pela recepção e subsequente distribuição de um lote de 150 armas. As armas foram entregues por representantes do exército. Muito antes do 25 de Novembro estava prevista, caso a crise no país se agravasse, a entrega dessas armas ao sector de segurança do PS. O país vivia ameaçado pelos ataques da esquerda radical, do MFA. Foi o 11 de Março, o caso do jornal República, as sucessivas manipulações das assembleias do MFA, o V Governo Provisório, o documento definindo o “poder popular” escrito pelo Otelo Saraiva de Carvalho, o cerco da Assembleia Constituinte… Foi nesse contexto que me encontrei com alguns oficiais, entre eles o então tenente-coronel Ramalho Eanes. O Eanes identificava-se com o PS. Recebi em minha casa, na companhia do Manuel Alegre, o Eanes e outro oficial que não se identificou. Contámos ao Eanes as dificuldades que tínhamos em defender as sedes do partido. Todos os partidos e grupos de extrema-esquerda estavam armados. E alguns grupos de civis ligados à “vanguarda revolucionária” recebiam treino militar. Ora o PS estava à mercê desses ataques. Pedimos ao Eanes que nos fornecesse algumas armas para garantir uma protecção mínima.

JPG – O que é que o general Eanes fez?
EP – Elaborou o plano destinado à resistência caso houvesse um golpe, aquelas coisas, sabotar emissores, cortar as comunicações… e, na noite do 25 de Novembro, mandou distribuir as armas. Fomos buscá-las perto de Bicesse, numa carrinha. Deixámos umas quantas em Cascais, outras na sede nacional do partido, na rua da Emenda. No meu livro conto tudo (O Processo das Armas, Editorial Inquérito, 1987), reproduzo nomeadamente o esquema operacional escrito pela mão do general Eanes, onde descreve as acções que teríamos de desenvolver em colaboração com alguns militares no caso da extrema-esquerda tentar assumir o poder, como tentou, no 25 de Novembro.


Edmundo Pedro, em casa, sentado na mesa em que ficou combinada, com o General Ramalho Eanes e com Manuel Alegre, a entrega das armas. Fotografia tirada recentemente.

JPG – Por causa disso voltou a ser preso mais tarde, em 1978?
EP – Esse é um assunto melindroso. Porque se especulou muito comigo. Sabe o que é a política… As armas foram mandadas distribuir para defender a democracia. Não a mim, mas ao PS. Mais de um ano depois do 25 de Novembro o Exército pediu ao PS para devolver as armas. As armas seriam devolvidas ao exército pela “porta do cavalo”, de acordo com o seu pedido. Eu achava muito bem. As armas não deviam estar nas mãos de civis. Tinham sido distribuídas numa conjuntura muito especial, mas deviam ser devolvidas. Envolvi-me naquela tarefa com grande empenho. Devolvi a maior parte, mas aquilo não era fácil, as armas estavam espalhadas, algumas, por exemplo, foram parar aos Açores, a pedido do Jaime Gama. Isto é um facto histórico. Quem as veio buscar, em mãos, foi o líder do PS nesse tempo nos Açores, o Goulard. Aquilo nos Açores esteve muito assanhado a seguir ao 25 de Novembro, com a extrema-direita a assaltar e queimar sedes do PS. As armas que o Jaime Gama me pediu não as podia recolher. Ora eu estava no desempenho da operação de as devolver quando fui apanhado.

JPG – E por que é que foi preso?
EP – Repare que eu era Presidente da RTP quando o processo das armas se dá. Fui presidente da RTP durante um ano. Entre o início de 1977 e o início de 1978. O escândalo à minha volta seria necessariamente um facto político de enorme repercussão. Eu era membro do Secretariado Nacional do PS com o Zenha, o Manuel Alegre, o Soares, o Guterres e outros. Era deputado com mandato suspenso. Não era brincadeira nenhuma. Tinha muitas responsabilidades institucionais. Foi um escândalo enorme. Durante dias a fio fui a primeira páginas dos jornais. Foi uma conspiração para atingir o PS. Toda a especulação em torno do pretenso contrabando teve origem no conhecimento do antigo processo alfandegário. As insinuações a esse respeito partiram, como refiro no meu livro, de uma fonte da Polícia Judiciária. Tudo começou com um artigo no Expresso, que foi buscar esse processo antigo. Repare que a apreensão das armas coincidiu com a crise do I Governo Constitucional, quando estava iminente a queda do governo PS. As armas saíram da sede do PS quinze dias antes de ser preso. Fui detido no dia 11 de Janeiro de 1978 sob a acusação de armazenamento e transporte de material de guerra. Eram 36 espigandas G3, do lote das 150. Toda a gente no PS estava aterrorizada. Então resolvi levar as armas para um armazém que era da firma de electrónica a que pertencera, mas da qual já me tinha desvinculado há muito tempo. Não tinha nada que ver com aquilo. Quando fui eleito para a direcção do PS cortei com tudo. Entendi que um dirigente socialista não deveria estar ligado a negócio nenhum. Fui eleito pela Comissão Nacional do PS, no seu 1º Congresso. Mas resolvi guardar nesse armazém, situado na Via Rápida, as armas que tinha conseguido reunir para depois as devolver. A devolução deveria ser efectuada dias depois da minha apreensão. Pensaram que eu queria as armas para uso pessoal, assaltar bancos, etc. Senti-me maltratado. Humilhado. Porque foram buscar a tal história do contrabando, os processos. Eu fiquei maluco. Estava desesperado.

JPG – Ficou preso quanto tempo?
EP – Ainda foram seis meses. Pouco depois da minha detenção, o Estado-Maior do Exército veio confirmar que me tinha entregue as armas. Mas lá veio mais uma aldrabice. Disseram que eu já devia ter devolvido as armas há muito tempo, quando eu, assim que me pediram comecei logo a trabalhar para as devolver. O único homem que se portou bem como militar foi o General Galvão de Figueiredo. Foi minha testemunha através de uma carta percatória. Não quis ir ao tribunal, mas o testemunho dele foi fundamental. O juiz do meu processo era do MDP/CDE, um indivíduo sem personalidade nenhuma. Deixou-se condicionar pela campanha da imprensa e não teve coragem de tomar decisões. O parecer da Relação era que eu não podia ficar preso, visto que não havia nenhuma sintoma de dolo. Devia ter sido logo posto em liberdade, mas o juiz não quis saber disso para nada. Quando o processo mudou de mãos, o novo juiz mandou-me logo libertar. Os meus advogados eram o Francisco Sousa Tavares e o Proença de Carvalho, indicados pelo PS.

JPG – E o PS no meio de tudo isso?
EP – Toda a gente ficou calada. Eu assumi a responsabilidade toda. Calei-me. Em vez de dizer que aquilo era um assunto do PS, disse que era meu. Bastava eu ter falado no papel do Eanes naquela operação para ser imediatamente libertado. Ou dizer que aquilo tinha sido feito dentro do PS. Mas não quis falar em ninguém. O escândalo foi também provocado em parte por mim, porque me calei, por uma questão de dignidade. Nunca tinha falado na polícia. Mas também lhe digo, fiz isso convencido que cada um ia falar. Fui apanhado numa ratoeira.

JPG – Se soubesse que ninguém ia falar, contava tudo?
EP – Ah, se calhar tinha falado, mas eu não quis ser denunciante, pensei que cada um devia assumir as suas responsabilidades no caso. Mas ninguém se assumiu. Quem devia assumir as responsabilidades era o General Eanes e o PS. O PS ficou com uma certa má consciência. Teve sempre dificuldade em abordar o assunto de frente. Se o Mário Soares soubesse de tudo o que se tinha passado naquele contexto, eu não ficava preso, mas o mal que me fizeram não tem remédio.

JPG – E o general Eanes?
EP – Nunca falei no nome do general Eanes nem em quaisquer outros nomes. Só oito anos depois é que resolvi falar, no meu livro. E explico porquê: esperei que o Eanes saísse da Presidência para se poder defender, porque eu no livro faço uma grande crítica à sua conduta naquele processo. Já concordámos marcar um encontro para esclarecer alguns aspectos.

JPG – Para quê?
EP – Não quero discutir com ele. Isso agora já passou. Quero conversar numa atmosfera de amizade e descontracção. Mas gostava, por exemplo, que o general Eanes me dissesse por que é que não me concedeu a Ordem da Liberdade. Fui posto à cabeça numa lista elaborada pelo PS e ele recusou. Ora ele sabe que o protegi com o meu silêncio. Se eu não merecia a Ordem da Liberdade quem é que a merecia? Fui preso aos 15 anos, estive no Tarrafal dos 17 aos 27, passei a minha juventude toda na cadeia, participei no Golpe do Quartel de Beja, fui dos 4 ou 5 que andaram aos tiros lá dentro, não morri por uma sorte do caneco, podia ter ficado logo ali, combati a minha vida inteira, estive disposto a morrer depois do 25 de Abril em defesa da liberdade. Então quem é que merecia a Ordem da Liberdade? Só recebi a Ordem da Liberdade quando o Mário Soares foi Presidente da República.

JPG – Pode falar da RTP, quando foi presidente?
EP – Creio que não houve, nem haverá, nenhum tipo sem licenciatura que tenha sido presidente da RTP. Quando entrei fiz reunir toda a redacção no Lumiar. Disse-lhes que não queria saber o que é que cada um era, o que é que cada um pensava. Não queria saber se eram comunistas, socialistas ou social-democratas. Queria apenas que me ajudassem a fazer uma televisão isenta, ao serviço do povo português. Tenho muito orgulho desse tempo que passei na RTP. Quando aquela coisa das armas aconteceu fiquei com um desgosto enorme.

JPG – E a oposição, como é que avaliou a sua gestão?
EP – No meu tempo não havia nenhum órgão independente capaz de tutelar a televisão e de assegurar o pluralismo. Nós, para assegurarmos o pluralismo, quisemos que todos os partidos, menos o PCP (tínhamos acabado de sair daquele período do PREC), participassem no Conselho de Gestão, para se controlarem mutuamente. Ora não havendo um organismo separado capaz de controlar o conteúdo da informação, só o pluralismo interno, a presença de todos os partidos, é que podia garantir esse pluralismo. Eu partidarizei, pois, no melhor sentido. Democratizei. Na administração entraram pessoas do CDS, um representante do Presidente da República, o capitão Águas. O PSD não quis entrar, mas o Adriano Cerqueira, que foi director de informação, era assumidamente do PSD. Dos cinco da administração, éramos apenas dois do PS: eu e o Raul Junqueiro. Ficámos em minoria de propósito. Penso que isto é uma prova de democracia, ou não é? Quando me despedi do Parlamento, caí na asneira de evocar a minha passagem pela RTP.

JPG – Porquê?
EP – Porque o José Eduardo Moniz, no comentário do noticiário da noite, disse: “Afinal de contas, o Edmundo Pedro confessou que tinha partidarizado a televisão”. Ora eu partidarizei-a no melhor sentido, para garantir a democracia. O Moniz quis meter veneno. Fui eu quem o levou para a RTP. Apareceu-me com um livrinho sobre comunicação social debaixo do braço. O Guterres bem me tinha dito, “não fales na televisão”. Achava que eu, no discurso de despedida da Assembleia, não deveria referir a RTP. Mas eu tinha a minha consciência tranquila, não fui nenhum comissário do PS. Actuei lá com independência. Tenho a confirmação disso, de muita gente. O meu período foi um período pluralista. O edifício da 5 de Outubro foi comprado no meu tempo. Fui eu quem assinou o cheque de compra daquele edifício…



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