ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

terça-feira, abril 12, 2005

 

A Mafia Senta-se À Mesa IV





No ano de 1963, Frank Sinatra pediu audiência a Genco Russo. Sinatra viajou até à Sícilia na condição de embaixador da Cosa Nostra, a mafia americana. Em causa estava a sucessão de Lucky Luciano, envenenado com cianeto no ano anterior. O encontro estava marcado para as 11 horas no átrio do Hotel Sole, em Palermo. Às 13 horas, Sinatra continuava à espera, movimentando-se de um lado para o outro com as mãos atrás das costas. O nervosismo do cantor de My Way divertiu o magote de jornalistas e fotógrafos presentes. Don Genco Russo, quase analfabeto, queria mostrar à estrela de Hollywood que era ele quem ditava a lei dos chefes das famílias da Cosa Nostra. A demora prolongou-se mais meia hora. Às 13h e 35m, Don Genco começou a subir a escadaria do hotel. Levava o casaco debaixo do braço, um chapéu de coco estilo anos 30 e suspensórios a prender umas calças excessivamente subidas nas costas. Sinatra ajoelhou-se aos pés do soberano e agarrou-lhe a mão direita, que beijou em sinal de vassalagem: “Baccio i mani, Don Genco”.
Giuseppe Genco Russo era um dos homens mais ricos da ilha. Tinha uma fortuna pessoal avaliada em mais de cento e dez mil milhões de liras, aos quais devem ser acrescentados cento e quarenta e sete mil hectares de vinhas, citrineiras e searas, rebanhos e o rendimento de quatrocentos imóveis ou propriedades. Anos antes, em 1954, fora coroado sucessor de Don Calogero Vizzini, um dos chefes históricos da organização. A cerimónia decorreu no funeral deste último e foi testemunhada por todos os chefes das famílias: Navarra, Celeste, Albano, Di Peri, entre outros. Parecia um “soberano bárbaro no coração da sua tribo”.
Don Genco ordenou a Sinatra: “Alzate! Non sei rifardu!”, levanta-te, não és um estranho. E quando o cantor fez tenção de lhe falar, despediu-o com um gesto imperioso da mão. Publicamente humilhado, Sinatra teve de esperar mais dois dias até ser recebido pela Mafia siciliana, por ocasião do almoço oferecido por Genco Russo na sua residência de Agrigento. O ídolo da América entrou no pátio da casa, onde algumas mulheres de preto, sentadas em cadeira de palha, depenavam galináceos. Foi-lhe dito que Don Genco estava a cuidar das vinhas e que não demorava. Pela segunda vez em três dias, a vedeta era deixada à espera.
Uma hora mais tarde, Sinatra foi conduzido à sala de jantar onde já se encontravam à mesa uma dezena de chefes mafiosos, todos eles de camisa, suspensórios e bigode. Durante o almoço, ninguém ligou ao cantor. As atenções estavam todas voltadas para o anfitrião, que se mostrou jovial e espirituoso. De entrada, os convidados comeram dois petiscos da cozinha mafiosa: pasta-cicci, uma sopa siciliana feita com carne cozida, macarrão e grão-de-bico misturados no suco da carne e no azeite; e bollito-misto, carnes acompanhadas de legumes cozidos, como cebolas, alhos franceses, espargos, cenouras e nabos. As criadas serviram depois cordeiro assado à moda de Agrigento com fundos de alcachofras e espinafres gratinados.

Jarrete de Cordeiro à Moda de Agrigento

Segundo Martine Bartolomei, o segredo desta receita reside no molho de anchovas. Enquanto o cordeiro está a cozinhar na assadeira, escorra dois filetes de anchovas, descasque um dente de alho e desfolhe um ramo de rosmaninho. Pise tudo num almofariz e adicione cinco colheres de azeite e outras tantas de vinagre de vinho. Quando a carne estiver pronta, regue-a com o molho e leve a reduzir a fogo lento. Retire o excesso para uma molheira.

Fundos de Alcachofras com Espinafres (6 pessoas)

1 kg de espinafres 4 filetes de anchovas
8 alcachofras pequenas 1 dente de alho
muito tenras 1 cebola
50 g de parmesão ralado azeite
50 g de pão ralado sal e pimenta
25 g de farinha

“Refogue no azeite o alho esmagado, a cebola picada e as anchovas demolhadas e cortadas finamente. Junte os espinafres abundantemente lavados, bem escorridos e cortados finamente. Deixe reduzir a fogo lento durante dois minutos, depois salpique de farinha, tempere de sal e pimenta, cubra e deixe estufar por mais cinco minutos.
Tire das alcachofras as folhas e a barba e disponha os fundos num prato de ir ao forno untado de azeite. Tempere de sal e pimenta e cubra com os espinafres, o azeite, o pão ralado, o parmesão.
Leve a forno forte durante vinte minutos. Sirva muito quente”.

Durante a refeição não se pronunciou palavra, ouvindo-se apenas os ruídos dos talheres e da mastigação. A conversa foi recuperada à sobremesa, com os marmelos no forno e o flan de castanhas.

Flan de Castanhas (8 pessoas)

150 g de farinha peneirada 60 de açúcar
10 cl de leite 2 gemas de ovo
75 g de manteiga

Guarnição:
350 g de castanhas grandes 3 claras de ovo
40 cl de leite um pouco de manteiga
vagem de baunilha um pouco de açúcar baunilhado
2 colheres de açúcar
4 colheres de nata líquida
muito untuosa

Faça um buraco na farinha para aí introduzir o açúcar, a manteiga, as gemas, uma pitada de sal e o leite. Misture sem bater e faça uma bola. Deixe a repousar durante duas horas em local fresco. Faça uma incisão na casca das castanhas e deite-as num tacho com água a ferver durante cinco minutos. Já sem pele, junte-as num tacho com o leite, a baunilha, o açúcar e uma pitada de sal. Deixe a cozer em lume brando durante quarenta e cinco minutos. Tire do fogo e junte a vagem de baunilha e as natas. Misture tudo muito bem e inclua as claras em castelo.
Estenda com um rolo a massa, cuja espessura não deve ultrapassar meio centrímento. Introduza-a numa forma de pudim bem untada de manteiga, retire a massa que extravasa e dobre os rebordos para dentro. Pique o fundo com um garfo. Despeje o preparado de castanhas e espalhe-o uniformemente. Coza em calor moderado durante quarenta minutos. Deixe o flan arrefecer e polvilhe com açúcar baunilhado.

Sinatra viu-se sempre excluído da conversa, limitando-se a sorrir e a ouvir as infindáveis histórias de assassinatos e de compras de terrenos que marcavam o final das refeições sicilianas. A seguir aos cafés e à grappa, Genco Russo fez sinal ao cantor para que o seguisse. No seu gabinete, “o anfitrião jovial que momentos antes dava os seus ditos de espírito em bandeja a um auditório servil tinha dado lugar ao impiedoso tubarão de quem há quarenta anos falavam os relatórios de polícia”. Quando regressou à sala de jantar, Don Giuseppe disse para que todos o ouvissem: “Os States nunca passaram de uma terra que nós, Sicilianos, colonizámos e não vão ser os emigrantes que só existem graças a nós que hão-de vir mandar na nossa pátria.”
Quando se lê A Mafia Senta-se à Mesa é impossível não sentir um apetite voraz. As histórias e as receitas que aqui resumi são apenas alguns exemplos do que pode encontrar no livro. A si compete-lhe reconstituir a cozinha siciliana “com reverente exactidão histórica”, como dizia Eça a propósito da gastronomia greco-romana: “Eis aí um incomparável serviço feito ao estudo do passado. Já vastamente explorámos a Antiguidade nas suas letras: é tempo de a esquadrinharmos nos seus petiscos. Que os estudiosos, pois, fechem os livros — e preparem as caçarolas.”



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