Don Genco Russo beijou a testa, o peito e os dois ombros do jovem Luciano Liggio, assassino dilecto da onorata società. Ao mesmo tempo, pronunciou as palavras sacrificiais: “Dou-te a vida do traidor, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amen”. O traidor era Dottore Navarra, chefe da família de Corleone, com o qual Genco Russo tinha contas a acertar. Sentou Liggio à mesa, onde estavam dispostos pão, sal, alho e vinho. Partiu o pão em seis bocados e esfregou-os no alho. Estendeu-os a Liggio e aos quatro guarda-costas presentes, guardando um bocado para si. Seis mãos mergulharam o pão num prato cheio de sal. Cada um comeu metade do seu pedaço de pão e bebeu metade do copo de vinho que tinha à frente. Dirigindo-se ao assassino, disse: “Vai, ficamos à tua espera para acabarmos esta refeição”.
No dia 10 de Agosto de 1958, Dottore Navarro vergou-se às balas de Luciano Liggio, que na noite desse mesmo dia regressou a Agrigento, o feudo mafioso de Genco Russo, para terminar a refeição iniciada na véspera. Segundo a terminologia da Mafia, o pão significa a união, o sal a coragem, o vinho o sangue e o alho o silêncio. A história é contada por Jacques Kermoal na introdução de A Mafia Senta-se à Mesa, uma antologia da cozinha siciliana recentemente publicada pela Teorema.
Para Kermoal, perceber a Mafia é conhecer o sabor do bife do lombo à napolitana que Lucky Luciano ofereceu a um jornalista ou reconstituir, com todos os seus condimentos, o cordeiro afogado em molho de anchovas do almoço de Frank Sinatra com Genco Russo. Sempre que é chamada a tomar decisões importantes ou a receber convidados ilustres, a Mafia reúne-se em torno de um guisado ou de um prato de macarrão.
1860, pleno Risorgimento, Garibaldi desembarca nas praias da Sicília. A memória dos sicilianos ainda hoje lembra o festim e os petiscos que celebraram a vitória do exército garibaldino sobre os soldados de farda azul celeste do rei de Nápoles, Francesco II. Nem no tempo dos Fenícios ou da ocupação árabe assistira a ilha a semelhante banquete. Havia muito, a Mafia preparava um golpe com o intuito de estender a sua influência a toda a Sicília. Pretendia acabar com o poder dos proprietários de latifúndios, os nobres que juravam obediência ao rei de Nápoles. A solução encontrada foi uma aliança com o rei do Piemonte, Vittorio Emmanuele, a braços com a unificação de Itália. À testa dos exércitos nacionalistas estava Garibaldi. Por que razão este interesse da Mafia pelo Piemonte? A resposta é simples: ficava distante da Sicília e era uma monarquia parlamentar. “Eleições?, isso fabrica-se!”, referiu então um padrinho.
No final do mês de Janeiro, os chefes mafiosos enviaram a Turim alguns “liberais sicilianos”. Foram recebidos pelo conde de Cavour, primeiro-ministro dos piemonteses, a quem ofereceram colaboração. Nesse encontro ficou delineado o desembarque dos exércitos de Garibaldi. O dia: 11 de Maio de 1860. O Libertador largou âncora na praia de Marsala, a ponta ocidental da Sicília, com perto de novecentos garibaldinos, todos de barba como o seu general e envergando camisas vermelhas e lenços verdes. A marcha sobre Palermo foi saudada pela população, no meio da qual se podiam distinguir algumas das velhas raposas da Mafia. Os palácios dos príncipes e dos barões tiveram de abrir as suas portas aos oficiais garibaldinos, que logo trataram de comemorar a vitória com as jovens sicilianas... Mas enquanto Palermo bebia champanhe, os capi apoderavam-se dos municípios e expropriavam a aristocracia. “Era todo um mundo que desaparecia”, escreveria Tomasi de Lampedusa em Il Gattopardo.
Garibaldi era um nacionalista ferveroso. Queria oferecer Roma, a cidade dos Césares, a Vittorio Emmanuele. Na opinião de Cavour, o entusiasmo do general começava a incomodar: “À custa das vitórias, esse cretino do Garibaldi ainda vai deixar a Itália na merda”. A conquista da Cidade Eterna podia coligar a Áustria, a Espanha, Portugal e a França de Napoleão III contra o Piemonte. Uma vez mais, a Mafia seria chamada a entrar em acção, preparando um almoço de digestão lenta aos soldados garibaldinos. A pândega foi tal que o Libertador aceitou prolongar em uma semana a sua presença na Sicília. O tempo suficiente para Bixio, outro general do exército piemontês, posicionar os seus homens ao longo da estrada de Roma e impedir a passagem de Garibaldi.
A refeição, servida ao ar livre perto das muralhas de Messina, no território siciliano onde o Liberatore havia iniciado a marcha vitoriosa, juntou mais de mil e duzentos convidados. A ementa é rabelaisiana: depois dos queijos de cabra e do pernil fumado, os comensais provaram as especialidades da região, peixe-espada “agghiotta”, pescada à moda de Messina, galinha-da-índia estufada recheada de trufas, perna de cabrito-montês faisandé com aguardente de ameixas de Agrigento e, por fim, borrego assado com azeite virgem de Caltanissetta. Tudo acompanhado de muita couve-flor, alcachofras e aipos cozidos a vapor.
Aqui fica uma das receitas:
Peixe-Espada «Agghiota» (6 pessoas)
1 kg de pescada branca 100 g de azeitonas brancas
1 kg de batatas 50 g de alcaparras
100 g de aipo picado 1 cebola finamente picada
500 g tomates pelados
Leve a dourar a cebola em meio copo de azeite. Junte os tomates sem grainhas, as azeitonas descaroçadas, as alcaparras e o aipo picado. Depois de tudo bem alourado, adicione um litro de água, onde deve mergulhar a pescada, as batatas às rodelas e cerca de 30 g de aipo picado. Deite sal e pimenta a gosto e junte um pouco de colorau. Deixe a cozinhar em fogo lento durante duas horas. Sirva numa travessa e, como dizia Eça, “louve Neptuno, deus dos peixes”.
Porque o peixe não deve ser deixado em doca seca, foi servido vinho branco muito fresco: Bazia e Gebbia. A acompanhar as carnes, dois tintos secos, Faro e Corvo. Para a sobremesa, gelados, soufflés, bolos armados, maçãs esventradas e a imortal “Pignolata”, um doce que merecia ser cantado por poetas:
Execução
Espalhe 1 kg de farinha e faça uma abertura no meio. Deite para lá 12 gemas de ovo batidas e um pouco de pingue. Misture tudo até obter uma massa consistente. Corte pequenos palitos da grossura de um dedo e 12 cm de comprimento. Leve a dourar no pingue, faça-os escorrer sobre papel absorvente e empilhe-os. Derreta lentamente 600 g de açúcar e 300 g de chocolate. Entorne a mistura morna sobre a pignolata.
Depois do penoso banquete, o general foi vencido no Aspromonte. É caso para se dizer, como a propósito do Império Romano, que Garibaldi “pereceu pela barriga”.
João Pedro