No mês de Março sairá, entre outros, Couves & Alforrecas: Os segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto, o texto revisto e ampliado, com posfácio, que publiquei aqui no blogue faz uns meses. Com a minha colaboração sairá também, ainda sem data, uma selecção de entrevistas ao Luiz Pacheco, publicadas nos últimos anos. Título: O Crocodilo Que Voa. Para outros livros, consultem o site da editora.
(não consegui identificar o autor desta maravilha)
Na semana passada, devido a problemas técnicos (como o bom senso, o sentido das responsabilidades e «para quê atirar mais gasolina para a fogueira dos nossos cronistas?») a secção Os Cabelos Arrepiam-se foi censurada. O D. João III que há em mim falou mais alto e, ao correr da caneta, ditou-me: «Deus nos livre de tanta opinião, tanto desabafo, tanto mistifório». Acontece que o piedoso João me apanhou em momento vulnerável, atacado de súbita incompetência cervical, isto a somar a uma incontinência urinária mista resultado de uma anomalia estrutural do segundo cromossoma. Não tive outra saída senão obedecer, curvando a espinha. Mas hoje, recuperado, moita! Eis de volta, remoçado, o D. Pedro I que também em mim reside. Justiceiro, invulnerável a mandamentos, exigiu: «os cabelos arrepiam-se-me quando leio as primeiras frases das crónicas de António Vitorino». Ontem, sexta-feira, 10 de Fevereiro:
«Num ponto todos estão de acordo: as caricaturas foram apenas um pretexto para um movimento de afrontamento preparado e organizado de forma sistemática e utilizando os modernos meios comunicacionais com mestria».
Deixando de parte essa questão de somenos que é o Vitorino rimador em «movimento/afrontamento» e «preparado/organizado», há uma faceta em António Vitorino que não consigo afastar do pensamento. É ela a bizarria de iniciar as crónicas sempre da mesma maneira. Já a 27 de Janeiro, Vitorino dizia que
«Os vários comentários publicados sobre as eleições presidenciais convergem todos num ponto».
Vitorino, já se sabia, pertence àquele tipo de pessoas que nunca desconfia do próprio cérebro. Por isso consegue ver coisas onde mais ninguém vê. Como por exemplo esta, em Setembro ou Outubro do ano passado, na RTP: «num ponto todos estamos de acordo, a vitória de Mário Soares nas presidenciais está garantida». Pois bem, os opostos que em mim se digladiam convergem também eles num ponto: «assim que se começa a ler as crónicas de António Vitorino, os cabelos arrepiam-se».
Valentim Loureiro: Vá prá puta que o pariu! Pinto de Sousa: Caralho! Valentim Loureiro: Que se foda... Pinto de Sousa: Cona da prima Valentim Loureiro: Ahh, foda-se!!! Pinto de Sousa: Ouça... e o filho da puta... Valentim Loureiro: Oh que filho da puta... Pinto de Sousa: Caralho, não... Valentim Loureiro: Esse merdas é um filho de um porta-aviões de putas Pinto de Sousa: É um merdas do caralho! Valentim Loureiro: Filho de um cabaz de cornos Pinto de Sousa: Então o filho de um mangalho... Valentim Loureiro: Filho de um comboio de putas... Pinto de Sousa: É um artista do caralho, esse merdas Valentim Loureiro: Eu aperto-lhe os... Pinto de Sousa: Aquele piço não os tem no sítio... Valentim Loureiro: Que grande fideputa... Pinto de Sousa: Oh que caralho... Valentim Loureiro: Foda-se!... cona da tia... Putíssima que o pariu... Pinto de Sousa: Caralho!, não, foda-se... Valentim Loureiro: Oh que grande fodestalho...
Agora desculpe-me, mas também me chega a mostarda ao nariz, e agita-se-me na artéria o sangue viking. Eu compreendo alguma irritação inicial, uns impropérios, enfim. Mas isto de andarem a incendiar embaixadas nórdicas já me toca de perto. Cartoons a gozar com isto e aquilo? Pão nosso de cada dia. Uns têm mais piada, outros menos. Mas paus e pedras, tiros, bidões de gasolina? Barbudos em grande plano nas televisões, a mandarem-nos todos para o caralho lá na língua deles? Alto e pára o baile. Porque estamos afinal a falar dos puros que tapam a tromba às mulheres deles para beliscarem loiras europeias entre tapetes das ruelas do Magrebe. Angustiada com tamanho desacato, lá fui espreitar as caricaturas feitas pelos meus conterrâneos. Meu Deus. Umas coisinhas pífias, quase todas sem graça, excepção honrosa àquela em que o Profeta quer impedir mais suicidas à bomba porque tem o stock de virgens em baixo. Ou seja, se quer saber o que acho: se ia haver este chinfrim todo, mais valia terem feito cartoons a sério, tipo o Profeta que não consegue levantar o pau e as virgens todas a rir. Ou o Profeta dengoso, a fazer olhinhos ao eunuco: larilas e burro. Ou o Barbudo a rapar os pintelhos com adaga de ouro, com pequenada a assistir. O que é que podia acontecer? Desatarem a matar católicos ou a incendiar bandeiras, ou a ameaçarem-nos ainda, e ainda, e ainda, que vamos todos pelos ares? Não, desculpem lá, eu até tenho sido tolerante, como boa filha de Trondheim. Quando se babam e me tentam comprar por 200 camelos, regra geral, deixo-os ao menos apalparem-me a bilha, assim para não haver rancores. Mais: até me identifico muito com eles. É raro o dia em que não me vejo de joelhos no chão ou cu para o ar, à espera que me elevem ao cosmos. Andamos afinal todos ao mesmo.
Todas as noites, e antes de vos entregardes à masturbação, orai de joelhos.
Admirai a bondade de Deus, que deu a todas as meninas uma cona para nelas se enterrarem todas as pissas do mundo, e que, para vossos prazeres variar, vos permite substituir a pissa pela língua, a língua pelo dedo, a cona pelo cu, e o cu, ainda, pela boca.
Agradecei-Lhe o ter Ele criado para as meninas as cenouras, para as raparigas as bananas, as beringelas para as jovens mamãs, e as beterrabas para as senhoras maduras.
Se um amante desejardes, pedi-Lho, Ele vo-lo há-de oferecer. Se for uma fressureira de quem tiverdes precisão, dizei-Lho sem falsa vergonha. Porque Deus lê em vosso coração, e não podeis enganá-Lo.
Não deveis rezar completamente nua. Vesti uma camisa de noite, não a ergais pela frente nem por trás diante das pessoas presentes. Se na vossa rata trazeis uma pissa postiça em erecção, retirai-a. Retirai-a também se no cu a trouxerdes.
Dai graças a Deus por vos ter incutido o desejo de vos virdes, e por ter criado meios mil para o fazerdes.
Quando rezais de joelhos, se alguém dessa posição se aproveitar para lograr enrabar-vos, a tal inconveniência não deveis vós prestar-vos.
Antes de irdes comungar, se chupardes alguém, não engulais o esperma, pois assim deixaríeis de ficar em jejum.
Há raparigas que, por demais serem vigiadas, compram uma virgenzinha em marfim polido e dela se servem como pissa postiça. Trata-se, porém, de uma prática condenada pela Igreja. Podeis, isso sim, servir-vos para tal fim de um círio, com a condição de se não encontrar benzido.
Pierre Louÿs, Manual de Civilidade para Meninas, Lisboa, Fenda Edições, 1988 (tradução de Júlio Henriques)
O sucesso económico é um dos grandes objectivos que as sociedades ocidentais inculcam nos seus cidadãos. Para alcançar esse objectivo, as sociedades, naturalmente, colocam à disposição meios legítimos: o ensino e o trabalho árduo. Esta uma distinção fundamental para se perceber o problema do sonho americano da sociedade aberta, analisado no programa de Alain de Botton. A mobilidade social ascendente é possível para todos. Basta querer, basta lutar por isso (seguir os tais meios legítimos socialmente definidos) e nunca, mas nunca desistir. No final da década de 1950, o sociólogo americano Robert Merton defendeu uma teoria notável que abriu uma brecha na perfeição do modelo. «Social Structure and Anomie» (1957), o nome do artigo onde Merton apresenta a sua visão sociológica do desvio e da marginalidade social. Tradicionalmente, o crime é visto como um comportamento levado a cabo por alguém que transgride, logo rejeita as normas e os valores sociais. Merton veio afirmar o contrário. O que leva muita gente a cometer crimes - como roubar - é precisamente o desejo de cumprir esse objectivo de sucesso económico, mostrar que não se falhou. Viver numa boa casa, conduzir um carro topo de gama, vestir roupas de marca, em suma, consumir conspicuamente, são tudo formas de exibir esta coisa muito simples: eu cheguei lá, eu consegui realizar o objectivo. A sociedade cria uma apetência quase absoluta pelo sucesso e especifica um conjunto de meios normativamente legítimos para a satisfazer. Todavia, a estrutura de recursos económicos não permite que todos alcancem e cumpram esse objectivo. Ou seja, os meios são escassos. Por exemplo, não há trabalho para todos e, quando há, raramente corresponde às habilitações escolares de cada um. Isso cria frustrações, principalmente entre aqueles que se sentem postos de parte. O desejo continua lá, os instrumentos legítimos para o satisfazer é que falham. Apenas alguns conseguem aceder a eles. O desvio surge quando se verifica esse fosso entre os objectivos culturais e as capacidades oferecidas pela sociedade. A forma como muitos resolvem a situação é virando-se para diversas formas de desvio/crime. Nesta perspectiva, o desvio não é mais do que uma forma alternativa (ilegítima) de alcançar os mesmos objectivos (legítimos). A anomia é assim uma disjunção entre objectivos e meios, entre valores culturais e estruturas sociais/económicas. Em muitas formas de transgressão o que está em causa não é pois uma rejeição da sociedade e dos seus valores. Pelo contrário, é uma vontade indómita de se sentir integrado, de mostrar que se cumpriu os objectivos propostos. A questão torna-se ainda mais complexa se pensarmos que há profundas contradições entre os valores centrais definidos pelas sociedades: poupança vs. consumismo; trabalho vs. hedonismo; solidariedade vs. competição. Ansiedade, pois claro. Haverá alternativa? O programa de Alain de Botton continua na próxima semana, segunda-feira, às 22h e 30m. Veremos.
Permita-me só uma palavrinha final sobre aquelas grandes malucas que desafiaram a lei. Acho piada que por aqui ainda se veja e ouça tanto banzé só porque duas lésbicas querem dar o nó. Na Escandinávia, onde a discussão é chão que já deu uvas, também houve abespinhamentos vários. E devo dizer-lhe que nunca fui muito corporativa em matéria de sexo. Se se querem besuntar, é lá com elas. Não me peçam é para aplaudir. Fui, a propósito e em concordância, desencantar uma quadrinha de um autor sueco, pouco divulgado, que desafiou a moral e os costumes do início do século (as fufas suecas já espingardavam nessa altura). Tornava-se difícil traduzir à letra, mas penso que consegui captar a alma do versejar. Reza assim:
Ai meninas do meu país Porque insistis vocês nisso Porque ansiais pão com pão Quando ele é tão bom com chouriço.
Sábado passado, o DN (pp. 34-35) publicou uma entrevista realizada por Duarte Calvão a Benito Lamas, redactor-chefe do Guia Michelin. Reproduzo dois fragmentos:
«O método do trabalho do guia impede a especialização por país ou região. Ou seja, quem for numa semana ao Algarve pode na semana seguinte estar no País Basco. É para evitar que as preferências pessoais afectem o julgamento».
«Nós procuramos fazer uma grande rotação de inspectores. Nem queremos ter amizades com cozinheiros ou donos de restaurantes. Queremos ser os olhos do cliente normal»
Já me tinham avisado sobre o seu país. O José Rodrigues dos Santos é que põe o historiador Noronha a mamar-me o leite, mas eu é que sou a debochada. Já anda para aí um pé-de-vento. Porque a malta do blog é toda muita moderna, mas basta andar carvalhada pelo ar para se corarem faces de efebos e púdicas que só gostam de eufemismo nos lábios. Adiante. Fechemos então a polémica do momento. Não tendo preparação intelectual para meter demasiado a colher (reservo o gesto para outros Carnavais), fico-me pela experiência do swing de casais, que contém duas palavrinhas-base que muito serviriam à massa crítica do regime: mistério e desconhecimento. Não sei se se lembra: aqui há uns tempos uns bacanos armaram uma cilada a meio mundo literato. Mandaram para prestigiadas editoras textos do VS Naipaul e outro monstro sagrado cujo nome me escapa. Só que a prosa não ia assinada com as doutas letras. Anunciavam-se como caloiros à procura de oportunidade. Resultado? Ó mil vezes foda-se! As editoras recusaram, assegurando que os livros não valiam um chavo. Quando a farsa se deslindou, encaralhamento total. Pois. É exemplo para emoldurar e enfiar na parede, ao lado do poster assinado do Bergman ou da mamalhuda suja de óleo a afagar o mecânico. Conforme os casos. É o maior pesadelo do crítico. Ter de REALMENTE avaliar um texto, sem referências prévias, sem informação, às escuras. O caralho, portanto. E assim aterramos no swing, desde que seja coisa séria, à Kubrick do Eyes Wide Shut. A malta entra, fica em pelota e depois recebe umas capas pretas e umas máscaras. Todas absolutamente iguais. Depois anda por ali, em corredores esconsos que desaguam em salões grandes, de lustre no tecto e veludo no sofá, onde se geme e grita e gane, e onde um já intenso travo a alho e cebola nos confirma: aqui não se brinca. Coloca-se então o dilema. Quem é quem. E se um gajo com quem até antipatizo, por me rosnar, malcriado, no elevador do prédio, me dá um fodão de três em pipa? E pensar que se eu soubesse que era ele quem lá vinha, me teria afastado. E aquele em quem deposito tantas esperanças, um moreno dengoso com quem me rocei no yoga, me afasta a capa com mão trapalhona e, em vez de me levar à loucura com minete de arromba, fica para ali especado, hesitante (Mordo? Beijo? Lambo? Mordo? Beijo? Lambo?). Soubesse eu adivinhá-lo no meio da maralha contorcida e teria corrido para o seu tronco de ébano. Já viu, João? Os riscos que correria essa gente se não tem mais que o juízo do momento... Meu Deus, que riscos. E, no entanto, eis-nos perante a única verdadeira democracia, o único crivo fiável dessa cabra a que chamam objectividade, prima dessa virginal seriedade que todo, mas todo o crítico, quando interrogado, garante possuir desde a noite dos tempos. Não me lixem (repare que não digo “não me fodam”). É espantoso ver a conta em que se tem a maioria dos escrevinhadores de juízo final, incapazes de admitirem que estão encharcados em informação, pré-informação, impressões meramente visuais (Mas este gajo tem patilhas? Onde é que já se viu um escritor de patilhas? Espera lá que já te fodo…). E ainda relatos que lhes chegaram aos ouvidos, suspeitas de que fulano é amigo de sicrano, mais a editora onde publicam, mais o nome que já têm ou não têm na praça (Foda-se, este gajo é um consagrado, deixa-me cá lamber-lhe o cu….Foda-se, que já não há cu para este que tem a mania que é intocável, agora é que vais levar nas orelhas, dinossauro de merda). Queria vê-los, João Pedro. Queria vê-los pelos salões, às aranhas. É preciso tomates para fechar os olhos e abrir as pernas. Não interessa quem és ou de onde vens. Se sabes realmente montar, hás-de fazer-me um mar de corrimento. Exercício para crítica: livrinhos sem capa e assinatura. Olari. Ai o livro era seu, sr. Naipaul? Eu vi logo. Só disse que era uma merda porque estava a reinar consigo.
a) José Mário Silva disse que ele é um alvo errado mas que, genericamente, a situação que eu referi é prática frequente nos jornais e nas revistas. Mas ele, José Mário Silva, que pelos vistos conhece casos concretos, não se quer colocar na posição de os criticar.
b) Tenham importância ou não, sejam muito ou pouco lidas, sejam bem ou mal feitas, as páginas de cultura na imprensa exercem um poder. Se um livro não é reconhecido, comentado e integrado (repetido esta última palavra: integrado) numa comunidade, esse livro é esquecido. Não existe. Daí que a função do crítico ou do jornalista cultural seja decisiva: fazer entrar um livro no mundo social, ceder-lhe passagem. Ao escrever sobre ele, um crítico está a dar-lhe vida, mesmo que o faça de forma rebuscada e retórica.
c) José Mário Silva defende que o conteúdo do seu texto sobre o livro do Nuno Costa Santos não é um elogio. Em primeiro lugar, dizer que estamos perante «quase poemas», perante um «quase poeta», «capaz de versos completos» é não dizer nada. Em segundo lugar, «um lirismo por vezes ingénuo»: na minha opinião de leitor de poesia, a ingenuidade pode ser uma grande qualidade num poeta. E havia que clarificar o que se entende por ingenuidade, coisa que JMS não faz: o termo tanto pode significar «inexperiência» como «bondade», «franqueza», «inocência», «inteireza» ou «sinceridade». Finalmente, «escrita arriscada e desigual, no fio da navalha» é, de novo, muito vago. Porque escrever no fio da navalha, arriscando e expondo-se naquilo que se diz parecem-me atributos de alguns grandes escritores.
d) Se o livro de Nuno Costa Santos não merecia mais, se não é um livro maior que o autor, ou seja, se não é uma obra de arte fora de série e que está muito para além de todas as considerações fúteis ligadas a «favores» e a «gentilezas corporativas», como justificar, então, que uma autora como Eduarda Dionísio tenha sido remetida, na mesma página, para um canto tão exíguo? A Eduarda Dionísio não é uma «quase escritora», capaz de «quase livros». É uma mulher com obra importante publicada no domíno do romance e do ensaio, em particular sobre as questões da cultura portuguesa. Muito devo aos livros de Eduarda Dionísio, sugeriram-me caminhos quando estava a fazer o mestrado. Repare-se: a Eduarda Dionísio tem sido uma autora praticamente ignorada pelas páginas da imprensa. O mesmo se aplica à nota brevíssima sobre a tradução de Moby Dick, feita por Alfredo Margarido (juntamente com outro tradutor que não sei agora identificar). Alfredo Margarido, também ele esquecido e ignorado pelas páginas culturais, é um autor de primeira ordem de grandeza e que, pelo que tem produzido (uma olhadela à bibliografia, extensa, de Alfredo Margarido deixa qualquer pessoa em sentido), merece muito mais do que uma mera chamada de atenção. Além disso, traduções de Moby Dick não as há assim tantas e com a qualidade desta (lembro a tradução, miserável, incluída numa colecção de livros do jornal Público). Pergunto: que critérios justificam que um «quase poeta», capaz de «quase poemas», mereça uma relevância muito superior a Eduarda Dionísio ou a Alfredo Margarido?
e) A maior parte das pessoas defende - porque o país é pequeno - que um jornalista de cultura pode escrever sobre um amigo íntimo que é, simultaneamente, colega de trabalho sem prejuízo da imparcialidade e do nível de exigência crítica. É um caminho que nos separa.
Fernando Venâncio: «Cantavas? Pois dança agora!» (parte I)
Leiam isto de mestre Venâncio e depois vão ao Aspirina B, ao texto intitulado «Aviso (amigo) para Virginal George» (31/01). A lata destes tipos tem intuitos impenetráveis.
1. «Muito se salvaria se, uma vez por outra, arranjássemos uns nomes. Veja-se este caso. O crítico Manuel Frias Martins faz, numa Colóquio/Letras de 1991, a recensão dum livro de Maria de Fátima Marinho. É uma recensão arguta, onde é lamentado que a autora não vá ao fundo das suas intuições. Segundo Frias Martins, ela sucumbiu "ao peso das lamentáveis circunstâncias sociais que rodeiam actualmente o trabalho intelectual em Portugal". Isto, que já é críptico, não é ainda tudo. Sugere-se que, se Fátima Marinho se controlou, foi por assim se julgar "livre dos mimos com que a ignorância de trapaceiros diversos costuma brindar os ensaios críticos". Ora bem, a graça estava exactamente em dizer quem eles são. (...)» («O rumor público», pp. 21-25)
2. «Sejamos claros desde já. O mundo da nossa crítica literária é grandemente como tu, há um mês, aqui o descreveste. Não devia haver, pois, razão de festas. Mas tu pensas que sim, que a há. A tua visão da actividade crítica é, tiradas umas tantas chatices, pacífica, harmoniosa, e quase se acreditaria podermos entrar por ela no melhor dos mundos. Lamento ter de trazer-te hoje alguma desilusão. Esta discussão que vimos tendo (digo-o para algum leitor que só agora tenha ligado) nasceu de uma perplexidade minha, decerto ingénua, mas que não podia iludir. Achei eu que, quando se esperava ver críticas ou queixas acompanharem-se dos nomes dos prevaricadores, era quando mais se os silenciava. Estes casos, deveras frequentes, só podiam fundar-se numa de duas coisas: ou um pressuposto snob (do género: "as pessoas que interessa sabem de quem se trata") ou o receio de ver-se excluído de um qualquer fraternal grémio. (...) As coisas são, portanto, mais graves do que eu supunha. Os nossos ensaístas literários andam com bem fundamentados receios. E isso por causa não só (como eu julgava) dos "trapaceiros" que nos jornais fazem crítica do ensaísmo, mas igualmente dos "trapaceiros" que nas universidades decidem do futuro profissional dos indivíduos. (...) Se já havia razão para serem citados nomes, isso agora tornava-se imperioso. (...) O que estranhei foi isto: que, sendo a tua linguagem violenta (...) cuides, ainda assim, de manter-te invulnerável. Escreves, primeiro, com arrojo (...). Mas logo recuas. (...) Dos bonzos universitários parece-me, a julgar pelo que contas, não dever esperar-se salvação apreciável. Não são, em geral, más pessoas, mas o poder estraga muito. Vai um só passo da guarda da ortodoxia ao exercício da prepotência, e esse exercício ter-se-á institucionalizado mais vezes que o recomendável. Percebo finalmente porque é que a juvenil crítica universitária, ao transbordar nos jornais, mantém, ainda aí, mil cuidados para não perturbar os consensos. (...) Não, a salvação estaria num portentoso, num vasto e colectivo Não serviremos. Nenhum académico permitiria, a partir de hoje, que o seu trabalho, ou o de um colega, se dobrasse a pressões que não fossem as da liberdade intelectual.» ("Bichos à Solta", resposta a Manuel Frias Martins, pp. 37-42)
3. «As coisas estão longe de ser simples. Se Álvaro Guerra fornece pistas cómodas, João de Melo torna um tanto mais aturadas as buscas. Guerra cita, mas não identifica, uma recensão a um livro seu. O seu veículo tinha sido o Expresso, Fátima Maldonado a crítica. Ora, das duas uma: ou Guerra supõe este semanário um entretenimento universal, ou aqui faltou alguma frontalidade. Melo facilita ainda menos, mas leitores atentos, e lidos em suplementos hebdomadários, dirão: é o mesmo lobby. Pura leviandade. João de Melo, é certo, acabava de ser contundido no reputado semanário, mas a capacidade de reacção do JL também não é infinita. Coincidência, portanto. Não, conclamam os entendidos, exactamente, não é coincidência. As coisas estão, pois, piores do que se julgava. Houve um momento, há uns tempos, em que cri compreender tudo. O Independente dedicava o melhor das suas folhas à relação circunstanciada das "capelinhas" da cultura. Li avidamente. Havia ligações insuspeitadas, exclusões sintomáticas, agentes duplos. Deitei-me ao trabalho: desenhei gráficos, tracei genealogias, e acabei compondo o organigrama do país cultural. Foi curto o meu sossego. Quinze dias à justa, e Miguel Esteves Cardoso dava o dito por não dito e prometia ser essa a última gaffe do seu jornal. Enternecidos, os cavernosos centros de opinião curvaram as espaldas e reentraram no negrume. Mas o caso do Expresso é outro: tornou-se geral a fama sectária da sua redacção literária. Será ela, também, merecida? Lavrará fogo onde tanto asseveram ver fumo? Talvez. Mas, então, muito bem enganaram eles todos até hoje, da luminosa Inês à denodada Clara, do severo Guerreiro à perspícua Fátima, ao sólido Honório, ao virtuoso Belard, que guardo para o fim por ser o único meu conhecido. Nunca calhou falarmos em conspirações. Mais perdi. Mas os grupos de pressão existem e andam activos. Sou do tempo em que se fazia de Carlos de Oliveira o maior romancista vivo (foi sem dúvida um romancista capaz) e para poeta máximo se elegia José Gomes Ferreira (um poeta com interesse, o que não é pouco). Foi sempre missão dos bastidores promover e despromover indivíduos para lá do bom senso. Assim, fala-se hoje de Cesariny, ou de Herberto, como do novo maior poeta vivo (e os dois são, por fulgurações, poetas assinaláveis), enquanto de todo se ignora um, digamos, Joaquim Pessoa, poeta com qualidades, em nada inferior a uma mão-cheia de vates sigilosos, jovens e monótonos. Trata-se de pura medida de auto-afirmação de grupos. Tão precária sentem estes a sua subsistência, que admitem apenas dois modos de relacionamento: a canonização e a excomunhão. Os lobbies são associações de fracos. Por isso é tão desconfortável ouvir alguém queixar-se deles, sobretudo quando o faz a medo e em código. Foi o que fez Álvaro Guerra (...). Com tais mãos de veludo, apenas se consegue que os clãs, nas suas espeluncas, passem a beber também à nossa saúde. Sobretudo seja claro. (...) ou uma pessoa diz preto-no-branco os nomes todos, ou fará bem em ver se o intempestivo crítico não tinha algumas razões. (...) Porque o problema é esse. Boa parte dos nossos ficcionistas dorme, há dezena e meia de anos, numa cama de equívocos. A culpa só em parte é deles, evidentemente. Eles fazem o que podem, não é preguiça o seu mal. Maior culpa assiste a quem alimentou neles tão longas ilusões ou lhes permitiu que as acalentassem. Os críticos de mão mais segura - Óscar Lopes, Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, David Mourão-Ferreira - foram incansáveis no estudo de meritórios autores, e nisso fizeram obra que não irá ser fácil igualar. Mas deixaram à geração seguinte a amável ocupação de denunciar os atropelos. Mantiveram as mãos limpas, o que lhes favorece a aura, e permitiram, por omissão, que se desenvolvesse uma literatura intratável, a atravancar um já exíguo espaço. (...)» («Lobbies e Moralidade», pp. 135-140).
A VOSSA ATENÇÃO, EM PARTICULAR, PARA ESTE ÚLTIMO EXCERTO
4. «Não porque a traficância seja estranha nele [Eduardo Prado Coelho], mas porque nos habituámos a vê-lo traficar com outro brilho. (...) Numa mesa-redonda em que recentemente interveio, Eduardo Prado Coelho informou quantos o ouviam de que se havia dedicado à crítica literária (e outras, supõe-se) "pour faire des amis". E de que, a voltar a fazê-la, seria exactamente "pour faire des nouveaux amis". A crítica, explicou ele, inscreve-se no terreno da "complicité". Nesse exacto momento, os dois críticos literários estrangeiros que o ladeavam entreolharam-se, incrédulos. Para nós, a novidade não era grande. De modo que é assim. Enquanto este leviano e irresponsável crítico adeja por cúmplices salões, ficam para os verdadeiros críticos as tarefas ingratas, aquelas onde as mãos se sujam, onde a solidão, a dúvida e o desalento irão servir de único prémio. Indiferentes a fazerem ou não amigos, esses críticos ponderam da qualidade de autores já conhecidos, e vão farejá-la onde ela possa esconder-se ainda. Fazem decerto amigos, mas os inimigos nunca serão menos. (...) Mas eles sabem que a crítica não é para cumplicidades, e sim para viseira aberta. Alérgicos à crítica fofa e açucarada, estão prontos a dizer duas ou três verdades duras. (...) Enquanto isso, o poder literário está firme nas mãos dos que andam pela vida "fazendo amigos". Mundo cão, este? Nem por isso. O poder, os autênticos críticos não o querem. Francamente, não saberiam que fazer com ele. Seria sempre uma perda de tempo, já bastando as noitadas, e a atenção a dar aos amigos, que eles preferem ir fazendo de modos mais naturais. Desejos, eles têm este: o dum mínimo de respeito por uma actividade espinhosa. (...) (...) nós seremos sempre imprevisíveis, e sobretudo muito difíceis de contentar.» ("A Provação dos Novos", pp. 187-190)
Excertos do livro de Fernando Venâncio, Maquinações e Bons Sentimentos, Porto, Campo das Letras, 2002.
Fernando Venâncio: «Cantavas? Pois dança agora» (parte II)
Por defeito profissional, habituei-me a ler mais atentamente a secção de crítica literária do suplemento Actual (antigo Cartaz) do semanário Expresso. E notei sem esforço, divertidíssimo, aquilo que muita gente minimamente conhecedora já sabia: o meio literário português é pequenino, miudinho, feito de capelinhas e igrejinhas onde tudo fica em família e entre amigos. Será falta de pudor? Será ausência de espírito crítico? Ou será mera fatalidade sociológica?
Fernando Venâncio e Ernesto Rodrigues: o comunismo do elogio
O melhor deixei para o fim. É um caso de arrepiar os cabelos e torcer as orelhas. É um libreto de ópera cómica. “Fernando Venâncio, professor em Amesterdão” (ele cumprimenta assim, enquanto estende o bacalhau), declarava resolutamente, em 1992, na crónica “Lobbies e Moralidade”: “tornou-se geral a fama sectária da sua redacção literária” [leia-se do Expresso], chegava mesmo a falar de “clãs” e de “grupinhos”. Assim mesmo, pão pão, queijo queijo. Era de leão! Todavia, desengane-se o leitor. Não passavam de tiros de pólvora seca. Esperteza saloia. Alguns anos decorridos, o suficiente para Fernando Venâncio dar um golpe de rins e algumas cambalhotas, aconteceu o insólito: o professor, imperturbável, no maior dos descaros, sorreitaramente, ingressou no dito suplemento e, como em Roma, sê romano… Números, por ordem cronológica: Fernando Venâncio, tremendo de admiração, elogia Mágico Folhetim Brilhante de Ernesto Rodrigues (17 de Julho de 1999); Carlos Reis é convidado a escrever sobre Os Esquemas de Fradique, de Venâncio (11 de Dezembro de 1999); Venâncio, por sua vez, volta a coroar o sorridente Ernesto Rodrigues – Verso e Prosa de Novecentos – levando-o sobre os ombros (24 de Março de 2001). Penhorado reconhecido agradecido, com o coração nas mãos, Ernesto Rodrigues não foi de modas, vai de escrever três artigos sobre o amigo Venâncio: 2 de Junho de 2001, 14 de Setembro de 2002, 26 de Outubro de 2002. É o toma lá, dá cá do elogio. Resumindo e baralhando, tudo bons rapazes e a falarem uns dos outros. É preciso ter pachorra!
(excerto de um texto publicado na revista Periférica, nº 9)