ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

sexta-feira, maio 13, 2005

 

Ivo Ferreira, o Precedente

Sobre o caso Ivo Ferreira, a ler no Semiramis . O texto chama-se "O Desespero do Artista". Uma maravilha!

terça-feira, maio 10, 2005

 

À NORA





Duas notícias recentes trouxeram-me a Austrália ao pensamento. E pelas melhores razões. Para quem, como eu, só consegue ler deitado (na cama, na praia, na banheira; sim, sou um bárbaro, não tenho respeito nenhum pelos livros, risco-os – com lápis, caneta, feltro, tinta permanente, da China, o que tiver à mão – e borrifo-os com pingos grossos cheios de espuma), um estudo da Universidade de Camberra concluiu que os seres humanos pensam melhor deitados do que em pé. Depois de realizados alguns testes, o Prof. Don Byrne provou os efeitos nefastos da NORADRENALINA, uma hormona natural do cérebro que baralha a atenção e o raciocínio: quando estamos em pé e em stress a NORADRENALINA aumenta. Conclusão: o Aristóteles não percebia nada de filosofia.
A outra notícia, depois de ter visto os Sete Palmos de Terra (o que me ri hoje com o tupperware que o George recebeu pelo correio), vem mesmo a calhar: uma empresa australiana, a Palacom, vai começar a enterrar os mortos na vertical para economizar espaço e poupar o ambiente (?). A ideia é sepultar, na vertical e a três metros de profundidade, os cadáveres dentro de um saco mortuário. Conclusão: tudo indica que os responsáveis da empresa leram o Philip K. Dick do Relatório Minoritário.
Mas o mais importante destas notícias é que finalmente percebi por que é que o Nuno Júdice escreveu Felicidade na Austrália e a Luísa Costa Gomes A Minha Austrália. E eu que pensava, quando os li, que tinha enfiado o barrete...

quarta-feira, maio 04, 2005

 

Luiz Pacheco: entrevista

A entrevista que se segue é fruto de várias gravações realizadas em dias diferentes. Como a conversa fala por si, julgo que não vale muito a pena estar aqui com grandes introduções. O mais que tiver a dizer sobre a vida e a obra literária do Luiz Pacheco guardo para um futuro que espero não muito distante, quando publicar a Biografia do Pacheco, que estou a escrever e a preparar. Espero que gostem. Eu gosto.

 

LUIZ PACHECO



(fotografia de João Francisco Vilhena, publicada na revista Ler nº 31, Verão de 1995, p. 71)

O Luiz Pacheco é muito requisitado para entrevistas...
Opá, isso começou com a entrevista do Expresso, feita por aquela maluca, a Clara Ferreira Alves, e pelo outro mangas, o Torcato Sepúlveda, que assinou com outro nome... porque esses gajos é assim: quando um gajo lhes dá uma entrevista cai-nos tudo em cima. Eles não vão pedir entrevistas ao Cesariny porque sabem que ele nem liga... Agora, eu já tenho um balanço, um pé muito bem calçado de entrevistas... sabes como é que eles fazem? Vêm com o que leram das outras entrevistas e as perguntas são sempre as mesmas... eles têm lá no ficheiro... antes de virem falar comigo eles não vão ler as minhas obras completas... nem as encontravam... De entrevista em entrevista é a mesma chapa, vêm com perguntas de chapa. É como o outra: “o que é que você pensa da juventude de hoje?” Eu não penso nada, eu nem conheço os meus filhos... uma vez apareceu-me aqui um gajo da Focus... como é que era o nome dele? É como os pastéis... de Tentúgal... Rui Tentúgal... disse-me que era casado com a Cláudia Galhoz... depois é que eu percebi, então o gajo vinha com perguntas que ela já me tinha feito há 10 anos para o Blitz.

Como é que se tem dado aqui neste lar?
Há uns tempos andei com a ideia de fazer um trabalho sobre lares. A má fama dos lares é justificada... e não sabes tu da metade do que se passa aqui... há aqui casos humanos dramáticos, por exemplo, a senhora do quarto aqui ao lado... à noite têm de lhe mudar a fralda... passa horas a berrar “srª empregada, srª empregada...” Ninguém aparece... eu ainda lá fui uma vez... aqui não há campainha de alarme, não há telefone. Também, o que é que isso interessa, no lar de Palmela havia telefone mas tocava-se e não estava lá ninguém... Esse lar de Palmela era o lar nº 1, o melhor do país, segundo a Deco. Era um modelo. O projecto do lar deve ter sido gamado do estrangeiro. Era um lar invulgar, com todas as condições. Mas o ambiente era muito desumano, era uma espécie de aldeia turística. Falo disso no último texto do Isto de Estar Vivo, o “Memorial do Recolhimento”. Era um lar no meio de uma serra, com o ar puríssimo de Palmela, uma construção nova, em arco, sem vizinhança, sem casas à volta... Era muito bonito... Fui para lá logo quando aquilo começou... no início, a fase de promoção, serviam um bacalhau altíssimo, as torradas pareciam as das pastelarias da Baixa, dois andares de torradas, molhadas em manteiga, o café com leite vinha com dois pacotes de açúcar... depois, um dia, começou a aparecer só um pacote... vieram as economias... as torradas passaram a ter só um andar com uma lambidela de margarina... Agora este aqui, do Príncipe Real, já se aproxima mais da generalidade. Por exemplo, as giletes que eles dão aqui algumas já barbearam mortos. Tu não fazes ideia... Isto é um armazém de pré-cadaveres, é uma parada de monstros. Há um gajo que não tem uma perna, anda de cadeira de rodas empurrado por um velhinho de 88 anos, há outro que é cego, tem glaucoma, mais a namorada, que é horrorosa, mas como ele não vê também não faz mal... outro tem alzheimer, o sr. Américo, entra aqui, de boné e pijama, dá uma volta pelo quarto, às vezes vai à casa de banho, sai, não repara em ninguém, não diz nada... há outro que é o sr. Vergílio, anda pelos corredores a rir e a assobiar, são dois fantasmas... Há uma que anda aqui a passear de um lado para o outro, diz “ai, ai, ai”, depois vai bater na outra que está sempre sentada na cama, vai lá mexer... não têm mão nela... com estes gajos não se pode estar a discutir, é comprimido, água para o bucho, não vai um vão dois, fica a dormir dois dias seguintes... Isto agora aqui são os últimos dia do condenado. Aqui a lei é morrer devagar. Está uma a morrer ali, ou já morreu, não sei, estou eu a morrer aqui, está outra a morrer ali... A ver quem morre primeiro… “Já foi”, é o que dizem quando alguém morre. Agora já sei o que vão dizer quando eu morrer.

 



Como é que ocupa aqui o tempo?
Eu estou quase cego. Quase não consigo ler, só com muita dificuldade... O facto de não ler é um grande prejuízo... também já li muito... Passeio pelo quarto de bengala, nos corredores do lar, para mexer as pernas. Não me atrevo a ir lá fora. Praticamente já não saio do quarto. Nem vou ao telefone. Há uns tempos, ali no jardim, senti-me mal disposto. Mandei vir uma sandes de fiambre e uma água das pedras. Avariei. Vomitei. O criado veio buscar duas raparigas aqui ao lar. Foram com uma cadeira de rodas. Custou-me um bocadinho de massa. Levava 20 euros. Paguei, fiquei com uns trocos, dei um montão de moedas ao criado para telefonar para o lar. Para que é que me interessavam as moedas se morresse? A minha ligação com mundo, agora, é isto [aponta para um rádio Philips]. Oiço a Antena 1, o programa “O Prazer de Ler”, que passa às 13h 55m, repete às 21h 05m, é um programa da Isabel da Nóbrega. No Natal de 2002 leu a Comunidade. Está agora a ler A Cidade e as Serras. Às vezes também oiço a TSF, o fórum... Agora andam a chatear o Barroso por ir passear no iate. Por que é que não havia de ir? Já estão a inventar negócios malucos. Isso é inveja, é inveja, também queriam ir com o cu no barco... quando ele foi lá ao Brasil no fim-do-ano também ficaram invejosos... é preciso ter lata... o Santana Lopes era porque ia às discotecas... opá, não é fácil...

Já pensou em ser operado aos olhos?
Operado? Nem penses nisso. O que é que eu quero ver com 80 anos? Eu quando vou ali à sala, onde estão os velhos todos, tiro os óculos para ver tudo nublado, para não me ver ao espelho... Aquilo é um pavor! A Isabel da Nóbrega, o Artur Ramos e a Fernanda, cunhada do Manuel Alegre, queriam levar-me a Coimbra para ser operado as cataratas. Não quero. Eu é que sei. Isso é suicidário. Quando eu quiser morrer vou a Coimbra. Depois levaram-me a um oftalmologista na Av. da Liberdade. Diagnosticaram-me as cataratas. Tive que largar 1000 paus para umas gotas. Não servem de nada. Caem-me para o nariz. Já tenho o quarto todo o cor... e o quarto está reduzido ao essencial... É uma experiência nova, não ver é uma experiência nova.

 



O Luiz, com todas as suas doenças, parece que está sempre às portas da morte e, no entanto, vai-se aguentando...
Opá, eu tenho asma desde os 3 meses de idade... Ainda me levavam a comida à boca é já ia para as Caldas da Rainha, com o meu pai, por causa da asma dele e minha. Íamos para uma casa particular e depois tínhamos senhas para ir ao hospital das Termas. A piscina ficava num subterrâneo, tinha cadeiras à volta, ficavam todos sentados de nariz espetado para apanhar os vapores... Num aspecto este quarto é óptimo: tem um pé direito muito alto, isto já não se faz, o que é muito bom para mim... durante a tarde, quando está muito calor, desço as persianas e abro os vidros para entrar ar. Quando estou mais aflito durmo aqui na cadeira... ou sentado na cama... para um asmático é a posição melhor para dormir... a gente habitua-se... há muitos anos que adormeço sempre sentado, há muitos anos que faço isso... adormeço sentado e depois a pouco e pouco vou descaindo... se quando descaio fico aflito torno a sentar-me... Agora tenho aqui uma bomba nova, Serevent, tomo 4 vezes ao dia. Evita-me o Ventilan, que me faz taquicardia. Esta nova tem-me feito bem... Tenho sempre duas, uma de reserva, porque se de repente fico sem bomba... E tomo, todos os dias, 2 comprimidos de Filotempo... opá, a asma não mata mas mói muito...

 


Cresceu numa família de militares...
O meu avô materno era capitão-de-mar-e-guerra, era engenheiro maquinista, e o meu avô paterno era coronel de artilharia, foi director do Arquivo Histórico-Militar, que é em Santa Apolónia. Como era director e foi da Comissão ao Monumento dos mortos da grande guerra tinha uma grande biblioteca sobre a Grande Guerra, havia uma prateleira que era a História da Guerra Peninsular, do Luz Soriano... eram 9 volumes encadernados... esse meu avô fez uma espécie de testamento em que doava ao arquivo os livros que eles quisessem... eu já não conheci essa biblioteca... contava o meu pai que apareceu lá o funcionário do arquivo, este escolheu uma obra, dois volumes que deviam faltar lá na biblioteca do arquivo, ou seja, fodeu aquela merda toda...

Dessa biblioteca o que é que restou?
Livros de poesia, romances... ainda eram umas centenas de livros... e ia às bibliotecas públicas, havia uma biblioteca municipal que ficava ao cimo da Av. Duque de Loulé, ia ao Palácio das Galveias... Galveias era o fim de Lisboa... Depois é que comecei a comprar... Tinha uma coisa que era o meu livro do mês: só comprava um livro por mês... na altura custavam à volta de 20$00, 25$00...

 



E o seu pai?
O meu pai era funcionário público, trabalhava no Instituto Nacional de Estatística, era repórter mundano do Comércio do Porto, tenor na Sociedade Coral Duarte Lobo. E ainda tocava piano nas horas vagas. Não acabou o curso, estava a tirar o curso da Faculdade de Letras para diplomata, era um curso que metia um meste de espanhol, um mestre de italiano... Queria ser diplomata, simplesmente passou a grande guerra de 1914 e o movimento diplomático parou... ficámos sem os postos dos alemães, dos austríacos... resultado, não acabou o curso, nem ele nem eu...

O Luiz nasceu e cresceu na Estefânea...
Quando vim para aqui comprei o passe, então metia-me no autocarro sem saber para onde é que eles vão... não vejo nada, nem sequer os números e o caneco... metia-me no primeiro autocarro e ia até ao fim da linha... um dia apareci no Fonte Nova, julgava que era o Arco Íris... bom, mas numa dessas viagens fui parar ao Arco do Cego, Alameda, Praça do Chile... o Chile está na mesma… não está exactamente na mesma porque havia um lago no meio… o lago que depois estava no largo D. Estefânia…nos meus 14, no tempo do liceu, havia a rua de grande movimento e muito populosa que era a Moraes Soares, havia a Carvalho Araújo, que ia até à Alameda, e depois acabava... não havia a Alameda, não havia o Técnico, depois era o Areeiro e até à Av. do Brasil, ao aeroporto, eram terrenos, quintas aqui ou ali, pequenas quintas, depois eram zonas de despejo, onde as camionetas despejavam ali nos terrenos… Ao cimo da Rua D. Estefânia, onde eu nasci, no nº 91, 1º andar, havia a rua do Arco do Cego que tinha uma coisa que era o sobe e desce, depois puseram-se a fazer a Casa da Moeda, a Estatística, o Técnico… o Duarte Pacheco, que era presidente da Câmara de Lisboa e Ministro das Obras Públicas foi censuradíssimo por causa do Técnico, porque havia aulas onde só estavam seis estudantes… hoje o Técnico tem milhares de estudantes… O Duarte Pacheco era diabético e um trabalhador incansável… estava lá no ministério até às tantas, a beber leite, era um gajo de facto com uma visão do futuro… depois tinha o apoio do velho Salazar, que também não era tão mal como isso… não era tão mal como isso… era péssimo.. mas enfim… era péssimo, mas também não era como estes merdas que há agora… Disseram-me que o prédio da D. Estefânia tinha ido abaixo, parece que a casa do Jaime Salazar Sampaio, na rua Casal Ribeiro, também foi abaixo… quer dizer aquela zona da Estefânia mantém-se muito mais parecida com o que estava aqui há 70 anos do que a Casal Ribeiro ou o Saldanha… aí foi tudo abaixo, o Monumental, um dia passei lá e vi a imagem, a estátua do Saldanha com o dedo apontado, parecia um paliteiro... aquilo foi feito para um cerco de prédios muito mais baixo e hoje estão coisas brutais…de maneira que eu de repente estava em sítios que conheço de gingeira... Era a zona onde brincávamos, o Pires, o Salazar Sampaio, a malta da minha turma do Camões, andávamos por ali aos saltos a brincar, de repente aparecia um lago...

E o Liceu Camões?
Eu ficava sempre na carteira da frente, junto ao quadro, porque via mal. As janelas da sala davam para o jardim do Matadouro, onde é o Fórum Picoas... Sabes quem é foi meu professor? O A. do Prado Coelho, pai do Jacinto e avô deste Eduardinho, o almôndega peluda... era a alcunha dele... que culpa tenho eu que lhe chamem assim...?

O Eduardo Prado Coelho deu-lhe uma porrada muito grande no Diário de Lisboa, num texto que escreveu sobre Crítica de Circunstância, o primeiro livro do Luiz Pacheco...
O gajo disse que o livro tinha graça mas que não continha uma única ideia, ou seja, o Luiz Pacheco não tem ideias... Ora se isso é verdade então o problema, a culpa é da família dele... É que eu já aturei 3 gerações de Prados Coelho. O avô no Liceu Camões, por sinal fui o melhor aluno dele, mas pelos vistos não assimilei nenhuma ideia dele. Do que li do Jacinto encontrei algumas ideias mas não me devem ter entrado na pinha. Este, o novinho, tem ideias mas são francesas. O avô dele foi meu professor no 6º ano e à entrada da aula dizia: “recomenda-se o máximo de silêncio”. Não era o gajo, era o indefinido, o Jeová! A turma estava-se cagando para o gajo. Durante um ano, para não se chatear, e para nós não nos chatearmos também, pôs-nos a recitar “A Balada da Neve” do Augusto Gil: “bate leve levemente como quem chama por mim…” Esse rapazola (EPC), esse merdas, era um gajo terrível do partido. Não foi por acaso que o gajo veio de Paris para cá quando o Carrilho se tornou ministro. Está a mexer nos cordelinhos do Carrilho e da Bárbara...

Como foi a sua passagem pela Faculdade de Letras?
Quando acabei o liceu, em 1943, o meu pai disse que não tinha dinheiro para me por na Faculdade. Fui então falar com o João de Brito, o professor de latim, que me deixou ficar como aluno fantasma. A professora de português, Celeste Pereira Rodrigues (o Câmara Reys, que era o meu professor, reformou-se no meu último ano do liceu), deu-me explicações no último período, de Latim avançado (Cícero, Tito Lívio) e francês. Tinha 2 aulas por dia, às vezes menos. Nos intervalos ia para a Biblioteca. Li o Gil Vicente todo, em português e castelhano, o Fernão Lopes, o Garcia de Resende e outros. Nesse ano fantasma também dei explicações. Aprendia e ensinava. Foi um ano magnífico. Não me faziam perguntas, o que era óptimo, porque eu era um aluno muito nervoso, gaguejava quando me perguntavam alguma coisa. Nesse ano só registava e ouvia. Depois, como fiquei muito bem classificado no exame de admissão à Faculdade de Letras de Lisboa (Curso de Filologia Românica), não tive de pagar propinas, fiquei isento. A Faculdade foi um grande choque. Havia 10 alunos rapazes para 200 alunas. No liceu era só rapazes. Os professores faltavam muito, eram uns chatos, excepto do Vitorino Nemésio e o Delfim Santos. O Nemésio deu-me 18 valores. Nunca dei graxa ao Nemésio, como o David e o Urbano. Eram uma espécie de pagens dele. Montaram-se nele.

 


Quando é que começou a colaborar em jornais?
Comecei n’O Globo, em 1945, com uma coisa sobre os Jogos Florais e o centenário do nascimento do Eça. Fui à redacção falar com o Vasco Vidal e fiquei a trabalhar à borla. Depois levei o Cardoso Pires, que publicou lá um conto, e o Jaime Salazar Sampaio. Eu e o Pires dirigimos um suplemento universitário, Novos Horizontes. Fui aí que publiquei as minhas primeiras coisas. Saiu lá uma entrevista minha ao Mário Dionísio... ora aquela entrevista quem a escreveu foi o Mário Dionísio, a não ser a última pergunta. Telefonei-lhe a dizer que o queria entrevistar. Quando cheguei a casa dele a entrevista já estava toda feita. O que foi uma grande vantagem. Eu não sabia o que ia perguntar ao gajo... Depois, como o Vidal também tinha a Afinidades, levou-me para lá e eu depois levei também o Cardoso Pires, o Mário Dionísio, o Jorge Pelayo, o Joly Braga Santos, o Salazar Sampaio. Aí já comecei a receber, o primeiro pagamento foi 40$00. Também fiz duas traduções, uma delas sobre a Ocupação alemã em França. Tanto O Globo como a Afinidades eram publicações feitas pela resistência francesa, para manter o espírito francês. A Afinidades era uma revista de cultura luso-francesa e tinha como chefe de redacção o Lionel de Roulet, que era cunhado da Simone de Beauvoir, estava casado com a irmã as Simone, a Helene Beauvoir. Uma vez critiquei a Maria Figueiredo, chamei-lhe bas bleu, pretensiosa. Uns dias depois recebo um telefonema do António Maria Pereira pai a chamar-me à ordem. Disse-lhe: “esta conversa não me agrada” e desliguei o telefone. Mais tarde vim a saber que a Maria Figueiredo era amante do António Maria Pereira. A crítica ofendeu-lhe o caralho. Foi a primeira reacção que tive ao artigo...
Logo a seguir, juntamente com o Jaime Salazar Sampaio, aparece O Bloco, volume antológico de teatro, poesia e conto...
A literatura em Portugal não existia porque não existia liberdade. Então pensámos fazer uma pequena publicação para dizermos o que quiséssemos... O modelo foi copiado de uma publicação de direita, a Rumos, do Couto Viana, do Bigotte Chorão, etc. N' O Bloco colaboraram o Mário Ruivo, com poemas anti-colonialistas, o Ferro Rodrigues pai, a Rosa Araújo, o Cardoso Pires, o Salazar Sampaio, a Maria Natália, o Daniel de Moraes, que era do PCP e fez a capa, o Francisco Castro Rodrigues, arquitecto, também do PCP, fez um desenho. Meu saiu a História Antiga e Conhecida, que depois o Cesariny adaptou para o teatro (Um Auto para Jerusalém). Os exemplares foram quase todos apreendidos, nem chegaram a sair da tipografia.
E a Contraponto?
A Contraponto: Cadernos de Crítica e Arte saiu precisamente em Setembro de 1950. Era uma pequena intervenção, um caderninho no modelo de uns cadernos da Pathê Baby, que tinha um formato muito pequenino, era uma espécie de revistinha publicitária sobre cinema e fotografia. Eu vi que aquilo era feito na editora gráfica portuguesa, na Rua Nova do Loureiro, ali ao pé do Conservatório Nacional de Música, e fui lá. A tipografia era do Carlos Carvalho e dos irmãos, três ou dois, já não sei, um era meio patareco... fui lá e pedi um orçamento para dois mil exemplares e depois convidei quem?, convidei o Abelaira, o Jaime Salazar Sampaio, o Vasco Vidal, a Arlinda Franco Oliveira, uma engenheira agrónoma, e um tipo que tinha sido meu colega na Faculdade de Letras, o Eugénio Morais Cardigues, fumava cachimbo, era muito machista... foi director da Escola Comercial do Montijo, depois apagou-se por completo como figura intelectual que durante algum tempo chegou a ser... era uma revistinha de crítica assanhada, anti-salazarista... foi muito mal distribuída aqui em Lisboa e aquilo veio tudo devolvido porque a revista acho que foi acoimada de coisa reaccionária e fascista e não sei que mais... bem, o que é certo é que eu aí fiquei com uma grande desilusão, foi um bom choque que eu tive... O número 2 saiu em 1952 e o 3, só metade porque não havia dinheiro, só saíram as páginas 1, 2, 7 e 8. Quase ninguém soube que aquele número saiu, foi feito na Sertã, em 1962, dez anos depois do segundo número. A revista acabou ali, porque eu convenci-me que fazer uma revisteca a pagar aos colaboradores 200 escudos, o que na época era um dinheirão, era muito mais que 20 contos hoje, e publicar coisas que não me interessavam muito, porque a gente convidava um fulano para fazer um trabalho ou prestar colaboração e depois o tipo escrevia coisas que não nos agradava nada... então resolvi começar a fazer edições pessoais...

... e cria a editora Contraponto...
Não, a editora começou a funcionar em 1951, logo a seguir ao primeiro número da revista. A primeira edição Contraponto foi o Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, do Mário Cesariny de Vasconcelos. A editora tem origem na tentativa de uma terceira via, não neo-realismo, não surrealismo, mas uma terceira via. A Contraponto vivia um bocadinho da minha amizade com o Jaime Salazar Sampaio... o autor da Contraponto era o Jaime, dramaturgo, poeta, contista. Depois, quando apareceu o Cesariny, ele ficou muito lixado porque eu fiquei um bocado deslumbrado com o Mário… e estes gajos, que só querem um gajo para si, o que é uma estupidez, um gajo com uma ligação amorosa, carnal, com uma mulher ou com um homem, que tenha ciúmes é uma coisa, agora dois amigos, um amigo tem um 3º, um 4º, um 5º amigo, pois ainda bem, é bom sinal, é sinal que é estimado, não sou só eu que o aprecio, mas não, era uma inveja, uma ciumeira, a mesma coisa aconteceu depois com o Cesariny e o Herberto Helder, ora o Cesariny não tinha que ter ciúmes do Herberto… ficou fodido, de repente o Cesariny supunha que o Contraponto era só para ele... O Gaspar Simões chamava-me «o Sacristão do Surrealismo», por ter a editora, por publicar aqueles gajos...
E o António Maria Lisboa?
O Lisboa era um espírito insubmisso. Eu dei-me mais com o Lisboa foi em Benfica, na Villa Anna, no Verão de 1950, antes dele ir para Paris a primeira vez. Ele foi dormir lá a Benfica uma ou duas vezes. Lembro-me que íamos a pé às tantas da amanhã, quando perdíamos o último carro do Arco do Cego para Benfica, que era à uma e meia... então íamos a pé por aí fora. A minha mulher, a Maria Helena, e os miúdos estavam em casa dos meus pais, em Bucelas, ao pé do Moinho, e eu ia dormir a Lisboa, em Benfica, por causa do clima húmido de Bucelas, que me provocava grandes ataques de asma. Em Benfica era assim: de um lado a Villa Ventura e, do outro, a Villa Anna, o nº 674, que era a casa dos meus avós, onde depois também foi viver, para o andar de cima, o meu tio e padrinho, o coronel Fernando António Gomes. Ainda lá estão as casas, eu julgava que não estavam mas ainda lá estão. Ali mesmo ao lado havia a família Lobo Antunes, viviam numa vivenda formidável, tapada por um muro muito alto... porque os Lobo Antunes de repente tiveram... foi um gajo que me contou... eles não falam nisso... o pai destes Antunes todos, o médico, morava numa travessa muito pequenina, num prédio antigo... comprou um bilhete no Natal e saiu-lhe a sorte grande... na altura era uma coisa enorme... e depois ele comprou a vivenda... eu soube isto por um tipo que também morava lá... a vivenda deles foi abaixo, abriram uma avenida... Bom, mas voltando ao Lisboa. Eu depois perdi com o contacto com o Lisboa, que só venho a retomar em Cabeço de Montachique estava ele internado numa casa de saúde. É aí que ele me entrega o Ossóptico e Erro Próprio, edições dele, feitas em Coimbra, quando ele esteve internado no Sanatório dos Covões. Distribuí aquilo em Lisboa, ofereci, vendi, vendi muito pouco, lembro-me que havia uma gralha no Erro Próprio, que eu emendei até com tinta verde, que era uma tinta que eu usava na altura. Depois editei-lhe Isso Ontem Único, três livros-plaquetes. Quando ele morreu tive muita pena… ninguém sabe o que é que daria o Lisboa 50 anos depois… a vantagem de morrer cedo e com uma obra que foi para o lixo... o que se aproveitou não é nada…

E que história era essa da “equipa do terror”?
Opá, isso não interessa para nada. A equipa do terror eram três gajos que viviam perto uns dos outros, eu, o Manuel de Lima e o Cesariny, a magicarmos projectos de cartas, de panfletos, de coisas assim... O Cesariny morava na Rua Basílio Teles, entre a Estada de Benfica e a Columbano, o Lima morava na Rua Dr. António Martins, que era também para ali, muito próximo de nós, eu estava na Palhavã, na Estrada de Benfica, com a mulher e os miúdos. Depois nunca se fazia nada... nunca houve terror... a gente não tinha dinheiro, não havia dinheiro... lembro-me que as nossas refeições era puré de feijão... o Cesariny em casa era um ovo para três, ele, a mãe e a irmã... Foi aí nesse quarto da Estada de Benfica que eu fiz o Contraponto 2, que se editou o Malaquias ou a história de um homem barbaramente agredido, do Lima, julgo que se publicou também o Carlos Wallenstein. O Isso Ontem Único também já estava publicado, esse ainda foi publicado no Bairro Tacha, na Buraca... Opá, não é fácil de repente reconstituir a vida de uma pessoa que tem andado numa vida de saltimbanco... eu já morei em quase toda a Lisboa...

Como é que o Luiz e o Cesariny aparecem a escrever num jornal de automobilismo como O Volante?
O Volante era um jornal maluco, era a publicação mais antiga de automobilismo em Portugal. Era dirigido pelo Campos Júnior, que também tinha o Átomo, com o Gaspas [Gaspar Simões] como crítico literário, e o Pedro da Silveira a mexer lá por trás. A minha vantagem em relação ao Cesariny era que eu sabia andar de bicicleta. Num artigo sobre turismo, o Cesariny disse: “da Serra de Sintra vêem-se os montes do Alentejo”. Era a Arrábida... Fizemos, por exemplo, a cobertura do circuito de Monsanto, com o Fangio... depois traduzíamos artigos do L’Equipe. Depois o Pedro da Silveira arranjou-me um emprego no Mundo Motor ou Mundo Motorizado, que ficava na rua do Alecrim, era uma imitação d’O Volante. Só lá estive um mês, nunca me pagaram. Aí também fazia traduções do L’Equipe, punha-se a riscar o jornal e o editor dizia: “não faça isso que o jornal é do homem do quiosque, que nos empresta”. O Volante ainda assinava o L’Equipe, esses nem isso...

 



Também colaborou na Seara Nova...
Com dois textos, um deles chamava-se “A Lição”, quando foi da candidatura do Humberto Delgado. Mandei o artigo ao Câmara Reys, que disse: “é escusado mandar compor o texto porque a censura corta tudo”. Mas houve alguém, já não me lembro quem, que disse: “mande! Pode ser que passe”. Resultado: foi todo cortado. Nessa altura o ministro da Presidência era o Marcello Caetano e eu trabalhava na Inspecção dos Espectáculos. Só para chatear fui para casa, preparar um texto a reclamar do corte. Tinha que se fazer um requerimento em papel selado, o máximo eram 4 páginas. Citava textos do Marcello, do Torcato de Sousa Soares (professor de Direito em Coimbra), do Herculano e do Oliveira Martins. Na minha exposição defendia que, como autor do artigo, o meu ponto de vista era igual ao dos citados. Demorei semanas a fazer a exposição, fui à Biblioteca... Entreguei ou enviei para a Presidência do Conselho, já não sei. E aguardei. Daí a tempos escreveram para a Seara Nova a permitir a publicação. Veio a aceitação mas ainda demorou. Já era um artigo cauteloso. Mas saindo na Seara Nova (que ficava na rua da Rosa, nº 23, onde nasceu o Camilo Castelo Branco), já depois das eleições, tinha menos força, era mais inócuo, menos agressivo. O que o Marcello gostou foi que o tivesse citado a ele. A intenção do artigo era mostrar que a censura não era tão cega quanto isso. O Câmara Reys é que ficou com uma grande cachola. O Câmara Reys foi meu professor no liceu Camões. Era um gajo espantoso... e um grande mineteiro. Dava aulas de literatura espantosas.

O seu primeiro livro como escritor foi a Carta-Sincera a José Gomes Ferreira?
Isso era uma carta, um panfleto, não era um livro. O meu primeiro livro foi a Crítica de Circunstância, edição Ulisseia e do Vítor Silva Tavares. Foi o gajo que de facto começou comigo e começou com coragem porque eles sabiam que o livro ia ser apreendido. E foi! Agora, a carta ao Gomes Ferreira, escrita em 1953, foi o meu primeiro texto com alguma dimensão, com alguma pontaria. Eu mandei-lhe o texto numa carta registada com aviso de recepção. Recebi o aviso de recepção assinado pelo José Gomes Ferreira mas ele nunca deu resposta. O Gomes Ferreira não percebeu aquela carta. Aquilo era uma irritação e uma homenagem, uma irritação porque ele estava a abandalhar-se como escritor e uma homenagem porque o Gomes Ferreira tinha sido um dos meus ídolos de juventude. Esse texto foi escrito para um projecto meu, do Cesariny e do Lisboa, que era “Duas gerações, Três cartas”. Eu escrevia uma carta ao Gomes Ferreira, o Cesariny ao Gaspar Simões e o Lisboa ao Casais Monteiro. A carta do Lisboa (“Carta Aberta ao Srº. Dr. Adolfo Casais Monteiro”) está naquela edição da Assírio & Alvim, o tijolo cor-de-rosa, organizada pelo Cesariny. Lembro-me perfeitamente de o Lisboa ter estado comigo na Inspecção dos Espectáculos, no r/c, na Calçada da Glória, com uma máquina muito velha, ele a ditar-me a carta e eu a escrever a carta à máquina. Dali o Lisboa foi ao Diário Popular para ser publicada como resposta à entrevista do Casais Monteiro ao Gaspar Simões... para elucidar esse texto do Lisboa há que ler a entrevista... Não sei se ele chegou a ir ao Popular, não sei se se arrependeu pelo caminho. Ora como é que essa carta chega à mão do Cesariny? Não sei. O que eu sei é que quando tentei fazer um trabalho sobre o Casais Monteiro, eu na altura não tinha envergadura para fazer aquilo, lembro-me que estava no Café Portugal, no Rossio, com um livro do Casais... aquele primeiro livro... o livro de ensaios... o Lisboa disse-me, muito sacana e perfurante: “estás a agarrar-te ao Casais porque não tens tomates para te agarrares ao José Régio”. É natural que o Lisboa tivesse preferência pela poesia do Régio ou que considerasse o Régio mais importante que o Casais... a poesia do Lisboa é muito mais achegada à poesia do Casais do que ao Régio. No Lisboa não havia problemas metafísicos, nem de Deus, nem do Além nem nada disso, como há no Régio e não há no Casais. Ora, anos depois, já eu estava no Pote d’Água, o Cesariny pediu-me para publicar a Carta-Sincera na Antologia em 1958, a colecção dele, que era feita na Rua Nova do Loureiro, na Editora Gráfica Portuguesa. O título completo era Carta-Sincera a José Gomes Ferreira com uma Nota do Autor por causa da Província.

[Batem à porta do quarto, entra um homem]

Visita: “Boa tarde”
Pacheco: “Quem é?”
Visita: “Pacheco?”
Pacheco: “Quem fala?”
Visita: “Aqui é o Armindo”
Pacheco: “É o…?”
Visita: “O Armindo”
Pacheco: “Quem é o Armindo?”
Armindo: “Já não te lembras de mim, pá?”
Pacheco: “O Armindo?”
Armindo: “Estivémos preso no Limoeiro”
Pacheco: “Eu sei lá quem é o Armindo, pá…”
Armindo: “Como é que não sabes…? já não te lembras…?”
Pacheco: “Não, filho, não estive preso contigo, nem com a tua avó...”
Armindo: “Também, com esta escuridão… [no quarto do Pacheco]… eu era um miúdo”
Pacheco: “Olha, vai dar uma volta…”
Armindo: “Vou…?”
Pacheco: “Vai dar uma volta e vem cá amanhã… que estamos a gravar… tu está a ficar aqui gravado, podes ser preso outra vez…”
Armindo: “Está bem pronto, O.K. Agora que estive a dizer que estive preso e tudo… isso é uma reportagem?”
Pacheco: “É, é… é uma reportagem… mas não é da televisão…”
Armindo: “É da TSF?”
Pacheco: “Vem cá amanhã filho e não sejas preso hoje,
Armindo: “Não, eu aliás já me deixei disso”
Pacheco: “Aguenta-te cá fora, vem cá amanhã, mais cedo, que a esta hora já estou a dormir, se não fosse este maluco já estava a dormir…
Armindo: “Como me disseram-me que andavas aqui nas tascas, aqui de roda, de vez em quando…”
Pacheco: “Vai dar uma volta…”
Armindo: “Tchau, adeus… isso fica para a reportagem?
Pacheco: “Fica…”

Pacheco para o entrevistador: “Não sei quem é, nem tenho óculos… Sei lá quem é esse gajo… Quem será este cabrão, nem vi a cara dele… Armindo? Puta que o pariu. Se ele esteve no Limoeiro deve ser um grande fodido, ainda me rouba… Eu estive no Limoeiro com milhares de gajos, porra, olha o que faltava agora era aparecer-me aqui a tropa toda, milhares de gajos... eu estive lá 3 vezes, imagina o que não era… o director do Limoeiro, um gajo chamado Castelo Branco, quando eu estive lá da terceira vez ele era o director, era muito novo, muito inexperiente, depois ficou pior... este jornal, o 24h, anda a publicar umas coisas sobre o terrorismo de direita, de esquerda, agora é sobre os FP’s 25 de Abril... ora este gajo morava na Lapa, mesmo ao pé de onde eu morava, mesmo ao fim da Rua Buenos Aires… e acho que já tinha prendido muita gente das FP e ele deu ordem para haver um rigor especial nas prisões… os presos condenaram-no à morte… o gajo tinha dois seguranças mas um dia estava em casa, mandou os seguranças embora, estava à espera de uns amigos para jantar, como os amigos gostavam de um determinado queijo, o estúpido foi à rua comprar o queijo para os amigos, estavam dois gajos na rua a vigiar, deram-lhe um tiro na cabeça e despacharam-no… ficou como o queijo, todo furado de chumbo...”

Como é que era no Limoeiro?
O Limoeiro era uma prisão de passagem, para quem estava à espera de julgamento, não era para os que estavam a cumprir pena. Isso era em Monsanto e assim... Lá dentro havia estratos sociais, a Sala dos Menores, a Sala dos Bacanos, os que tinham conhecimentos fora da prisão... como eu... da segunda vez que lá estive o Artur Ramos telefonou ao pai, que era Director-Geral da Penitenciária... e depois havia a Sala Comum, para onde iam todos... ah, e a Sala dos Primários, para aqueles que lá estavam pela primeira vez... De repente havia confusão... jogos a dinheiro... havia um fiscal, que era um preso nomeado... dava prestígio mas também era perigoso... tinha de ser um tipo forte. Dava prestígio e dinheiro, porque tinha um negócio de laranjadas, sandes, etc. Depois havia a oficina, alguns presos trabalhavam lá, uma enfermaria... tinha lá um enfermeiro perigosíssimo, vendia penicilina misturada com água, em frascos de vidro... deve ter morto alguns... o refeitório, com mesas corridas, aí umas 10, havia o chefe de mesa, que eram quem distribuía a comida, conforme as amizades e os acordos... Havia muita discussão por causa da comida...

 



Esteve preso com o Edmundo Pedro...
O Edmundo Pedro é um tipo muito giro... foi preso por causa de contrabando, mas também por resistência, para foder a economia do Salazar... Um vez o gajo ia num camião com uma carga valiosa, estava cheio de whisky e de tabaco... Um GNR manda-o parar, os gajos não podiam perder a carga... então o Edmundo Pedro apontou-lhe um pistolão... o GNR abre a camisa e diz: “dispare, dispare que mata um homem”. O Edmundo Pedro ficou aflito, disse ao GNR para fugir, para desaparecer, que não queria matá-lo nem ser preso. O GNR desapareceu. Depois foi saber quem era o GNR e foi a casa dele dizer-lhe que ele se tinha portado muito bem e levou-lhe um envelope cheio de dinheiro. É um gajo muito giro... Quando foi aquela cegada do Quartel de Beja, o Edmundo Pedro ia ser julgado no Tribunal Militar de Santa Clara, então pediu à mulher para lhe levar pimenta... quando estava no tribunal mandou pimenta para os olhos do PIDE... à saída tinha um carro à espera dele... fugiu e tentou abrir a porta do carro mas era a errada, estava fechada, fodeu-se... Opá, o gajo andava a ler no Limoeiro o Charles Dickens, um grande tijolo, o Grandes Esperanças. Nunca acabou de ler o livro, porque era ora lhe adiantava 100 páginas, depois recuava outra vez, e ele nunca deu por nada... A mulher levava-lhe comida todos os dias. Dessa vez comi muito bem...

O Luiz ficou associado ao Limoeiro...
Opá isso é o Bocage... fiquei ligado ao Limoeiro... já nem há Limoeiro, calha bem... Tu tens de perceber uma coisa, eu quando falo no Limoeiro é para chatear o burguês instalado...

Há uns anos, lembro-me que o Luiz andava a ler vários livros do Céline. Gosta?
Eu escrevi um texto sobre o gajo, “Lendo e Relendo Céline”, que foi publicado em Portas do Sol, a página literária do Correio do Ribatejo, e depois foi incluído na Crítica de Circunstância. O Céline era cortado, sabotado, como o Giono... mas eu escrevi aquele texto, sobre a Viagem, porque só tinha esse livro em casa. Era o único, de bolso, no original, em francês. Já tinha lido partes da tradução e fiquei muito chateado. Viagem ao Fim da Noite? O fim da noite é o dia... Devia ser: Viagem ao Fundo da Noite. Mas nesse dia, como era o único livro que tinha à mão li-o do princípio ao fim. Fiquei espantadíssimo. É um livro de arromba. O título do meu texto devia ser: “Lendo, espantado, Céline”. Recebi 20$00 pelo artigo, em selos fiscais que rebatia na papelaria. Escrevi o texto em Setúbal. O Cesariny disse-me: “Já li o teu elogio da traição”. Bardamerda!

Também ganhava dinheiro a fazer traduções...
Relativamente... muito poucochinho... Por exemplo, o José Gomes Ferreira fazia as legendas para os filmes… era com isso que ele ganhava dinheiro, não era com os livros… Álvaro Gomes era o pseudónimo… isso são coisas muito bem pagas… não é a traduzir uma merda de um romance ou de um livro… A certa altura o Ernesto Sampaio aparecia no Café Gelo, rasgava um livro em partes, em blocos de 100 páginas, e distribuía por uns tantos, para vários o traduzirem. Eram os negros. Eu fui negro do Cesariny, num livro de um escritor romano... o Gaspar Simões tem montes de traduções que não são dele, nem da avó dele... muitas são da Isabel da Nóbrega, ela traduziu Os Sonâmbulos e eu é que estive a rever as provas da Arcádia em Setúbal… tiveram que lá ir buscar que se foderam… eram à máquina, com emendas à mão…Em Massamá fiz umas 4 ou 5 traduções para o Fernando Passos, da Verbo. O Tia Vânia, do Tchekov, foi traduzido por mim e pelo Chico Bretz. O Chico traduzia até às 3 da manhã, depois quando se fartava ia-me acordar para passar aquilo à máquina.

Refere-se muitas vezes ao Café Gelo. Lembra-se de alguma história engraçada que tenha vivido no Gelo?
Lembro-me do dia 1 de Maio. Havia uma manifestação muito grande em Lisboa… havia greve, talvez… opá houve mortos e tudo, houve polícias que foram parar dentro do lago do Rossio... aquilo foi a sério... foi a primeira manifestação a sério que houve em Lisboa... depois no dia 8 houve segunda… foi a primeira vez que apareceram carros de água com metilene para marcar as pessoas, tinta que não saía… ele aí apanharam muita porrada, na rua da Madalena, no Largo da Anunciada… então a malta do Gelo, estava lá o Virgílio Martinho, que disse: “o que é que a gente veio cá fazer?” Respondi-lhe: “então a gente veio cá mostrar o casaco… dar porrada? o que é se pode vir fazer…” E de facto estivemos no dia 1 de Maio muito sossegados. Eu sentei-me num cantinho, tinha ao meu lado o pai da Fernanda Alves, que era funcionário do DN, por isso é que o genro aparece no DN, ele estava ao meu lado, também muito choné, e mostra-me a arma que era um canivete com uma coisa deste tamanho… também devia estar o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues… ao lado do Gelo havia uma pensão residencial e acho que uma estrangeira qualquer, americana ou inglesa, saiu da pensão para a rua, sabia lá o que se passava, e os gajos vieram atrás da mulher, pareciam verdadeiras feras, ela vinha assarapantada, vieram a sacudir a mulher… disseram: “ninguém se levanta daqui, ninguém sai!” O João Rodrigues tinha ido mijar ao 1º andar, vinha a descer a escada, disseram, “ei você…” E a malta disse: “é daqui! é daqui! é daqui deste grupo que está aqui sentado…” Quando os gajos iam a sair, já de costas voltadas, não sei porque carga de água começámos “uhuhuhuhuhuh”. Quando a malta faz o “uhuhuhuhuhu” os gajos regressam e começam a dar porrada à maluca… eu estou no canto, vem um gajo a distribuir cacetadas… eu aponto para os óculos e fizemos um passo assim de dança, ele para um lado eu para outro, depois começou a dar porrada num gajo que estava sentado e eu pirei-me, pirei-me para outro canto... nós não podíamos sair... Havia uns açucareiros de metal, que eram assim uma meia esfera de metal, cheios de açúcar, aquilo era chato, os açucareiros voaram, estava um gajo com a pinha toda partida, cheia de sangue e de açúcar… havia lá um gajo que era careca, diziam que era bufo, levou porrada dos polícias. O gerente, que era um gajo chamado Sequeira, um gajo muito simpático, foi chamado à esquadra nacional e perguntaram-lhe: “quem são esses gajos?”. “Ah, aquilo é malta, estudantes, artistas, pintores, poetas…” “Não quero lá esses gajos”. De maneira que quando voltámos, 3 ou 4 de Maio, o gerente disse: “vocês não podem estar aqui”. Fomos expulsos do Gelo. Foi quando a malta se passou para o café Nacional, um café enorme, que agora já não há, que era lá ao fundo, na rua 1º de Dezembro, do lado direito...

 



[Batem à porta, entra uma empregada do lar, brasileira]

Pacheco: “Ó minha senhora, desculpe que lhe diga, é uma lindíssima mulher…
Empregada: “ahhh?”
Pacheco: “ahhh? O que é que ela diz?”
Empregada: “Isso é a minha filha”.
Pacheco (pega nas mãos da empregada): “Olha, tem as mãos quentes. Tu não fazes ideia, esta senhora e as outras acordam a velhinha ali do lado todas as manhãs, sabes como? Dando beliscões na velhinha…o barulho que elas fazem a rir… Olha, ontem vi uma… não estava nua… estava a vestir-se…”
Empregada: E o senhor gosta de ver, né, e o senhor gosta…
Pacheco: Eu não vejo quase nada, ó minha senhora… eu não vejo quase nada… chegue-se aqui... olha para este espanto... é uma mulher linda... anda é muito vestida... quero vê-la na praia...”
Empregada: “Ele é fogo, o sôr Luiz é fogo…”
Pacheco: O quê? pego fogo…? Queres levar um livro? Não te faz mal nenhum…

O libertino passeia-se no lar? Como é que foi a publicação de O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor?
Quem pagou a edição foi o Vítor Silva Tavares. Um dia estava numa tipografia e encontrou uns exemplares, primeiras edições, de Sodoma Divinizada, do Leal. Comprou esses exemplares ao tipógrafo. Com o dinheiro que fez da venda desses exemplares do Raul Leal produziu a 1ª edição do Libertino. O que eu sei é que o Libertino foi a fazer ao Porto, tenho a impressão que fui lá rever provas, saiu e em Janeiro de 1970 aparece-me no Hospital de Santa Marta, onde eu estava internado desde o 25 de Dezembro de 1969. Na véspera de Natal acordei com uma ressaca doida, depois de ter andado nos copos, e não me conseguia levantar da cama… fui para o banco de S. José, fiquei lá a noite e no dia seguinte fui para Santa Marta… com uma ressaca maluca... o diagnóstico dizia que era angina de peito… estive lá um mês…bom, entra-me por ali adentro, em Santa Marta uma embaixada, à frente a Lia Gama com o marido, atrás o Lauro António e o Vítor Silva Tavares. Vinham de almoçar todos juntos e traziam-me a edição do Libertino para eu assinar e numerar…eram 500 exemplares...

A edição foi apreendida pela PIDE...
O Libertino não foi apreendido porque nunca chegou a ir às livrarias, a 1ª edição nunca chegou a ir às livrarias. Não foi apreendido, foi proibido. Depois o Vítor guardou os livros, acho que parte em casa parte no Diário de Lisboa, e era aí que depois ele vendia os livros, a 500 paus cada.. desapareceu tudo... era bem bonita, a 1ª edição...

 



O que é, para si, um libertino?
As pessoas não percebem nada do que é o libertino. O termo ficou, na linguagem vulgar, associado a coisas disparatadas, como sinónimo de devassidão. Ora libertino não é apenas um devasso. Não é apenas aquele tipo que gosta de ir para a cama com homens, com mulheres, com todos ao mesmo tempo... O libertino é um tipo livre, que está contra todas as tiranias. O Sade, por exemplo... aquilo que o Sade conta está quase tudo dentro da imaginação dele... Repara: o gajo esteve quarenta e tal anos prisioneiro em masmorras e hospícios, e à ordem de quatro regimes: a realeza absoluta, a realeza constitucional, a Revolução e o Império, o que mostra bem como o libertino é o maior inimigo de todos os sistemas e como estes o odeiam, o temem. Porque os sistemas são a ordem e o conforto, ao passo que o libertino é a aventura, é o descontrolo. O Sade está aí. O Sade está entre nós. Mais: o Sade está em todos, dentro de nós. Mas o libertino também é o ateu radical. É aquele que faz da sua vida amorosa um espectáculo, um espectáculo através das palavras, do discurso. Conheci muita gente devassa, mas libertinos muito poucos. Agora, aquela coisa da crueldade como fonte de prazer sexual aí já tenho as minhas resistências, já tenho as minhas repugnâncias. Pessoalmente, do ponto de vista do comportamento sexual, prefiro o Valmont, das Ligações Perigosas, do Laclos. Ou seja, o Sade é exemplar mas não é um bom exemplo.

A casa em Massamá, para onde foi viver em Setembro de 1970, era conhecida na vizinhança como uma casa de má fama...
A casa em Massamá era um disparate... às vezes era uma balbúrdia do caneco... a tal política de porta aberta em Portugal não dá… em Portugal não dá… quer dizer, não dá, os negros, por exemplo, têm isso, em casa moram 4, de repente vêm mais 5, ficam, ajeitam-se, vêm mais 10, ajeitam-se... são muito solidários e não se importam de ficar a dormir no meio do chão… em Massamá era assim, dormiam no meio do chão, de qualquer maneira... A gente não tem a vida na mão, de repente, depois de mortos, não precisamos de nada. Nem dinheiro, nem vestes, nem nada... Agora, às vezes o Chico Bretz avisava: “olhem que o Pacheco é mau de assoar”. Porque de repente eu não lhes abria a porta ou punha-os na rua… Se me chateavam era limpinho, bom, adiante…

Foi quando morava em Massamá que saíram os Exercícios de Estilo, um dos seus livros mais importantes...
Saiu agora, há uns anos [1998], a 3ª edição dos Exercícios. A capa é horrorosa, o gajo arranjou um postal com o lago das Caldas... esta capa é uma capa para os supermercados... as outras não tinham o mesmo impacto desta. Esta edição nem revi. É uma edição póstuma. Mas tem uma vantagem em relação à 1ª edição, que é ter separado estes textos... [aponta para o índice]. O primeiro texto era “O Homem que Calculava”, que era um gajo que não quer empregos e não sei que mais... ora se é um gajo que não quer empregos acaba a pedir esmola e, por isso, a primeira parte acaba com “peço uma esmola”, de “O que é o Neo-Abjeccionismo”. Isto é que eram os exercícios de estilos. Eles acharam pouco e eu então arranjei 4 fragmentos mesmo assim, como estavam, que são textos que não estão acabados... Esta 3ª edição leva depois aqui para o fim com a tralha toda que eu consegui juntar, “Um conto por um conto”, “O Veado”… esses vinham nos Textos de Guerrilha

[Bate à porta um velho para informar que o almoço é empadão]

Pacheco: “Este gajo irrita-me. Quando estou a dormir na cadeira ele grita: BOM DIA. Ele não diz bom dia, ele atira o bom dia como quem atira uma pedra.

 



O Luiz foi um dos grandes responsáveis pelo sucesso de O Que Diz Molero. Como é isso se passou?
Eu estava em Massamá e tive a informação de que a Bertrand me queria editar a Obra Completa. Um dia fui à Bertrand, na Venda Nova, e encontrei o Dinis Machado, que foi gentilíssimo comigo e com o Paulo... encheu-o de álbuns, papel, livros... e deu-me as provas do Molero – portanto a minha crítica saiu no Diário Popular antes do livro estar à venda. No dia seguinte comecei a ler aquela merda, aquilo são dois gajos a discutir, e eu disse ao gajo onde estava o meu filho Paulo, o Henrique Garcia Pereira: “opá, eu estou fodido com este gajo, este gajo foi tão simpático comigo e com o meu filho, deu-me tanta merda, e agora isto é uma porcaria, não se percebe nada”. Até que de repente entrei na cegada da cena de porrada com os camones no Bairro Alto... aquilo tinha uma coisa, é que era um livro que já não era escrito com medo da censura, via-se que havia ali... o gajo não era nenhum novato, já tinha escrito 3 romances policiais... havia ali de repente uma força, porque estes gajos se tivessem um bocadinho de vergonha não publicavam os livros que publicaram durante o fascismo… bom, então escrevi o artigo “Descobri um Autor”. Só na semana seguinte é que o Molero saiu à venda. Estava na feira do livro e apareceu-me o Afonso Praça: “olha, comprei aquela coisa do Molero por causa da tua crítica, opá julguei que estavas a gozar, mas tinhas razão, aquilo é muito giro…” Depois disse muito mal do Reduto quase final, numa entrevista ao B.B. Um gajo também não escreve só obras-primas, há altos e baixos... Se um gajo vai a facilitar, a não pensar, se o gajo não é o leitor mais exigente de si mesmo, está fodido, tem a classificação que merece. Eu de facto não descobri autor nenhum, descobri um livro giro…

E aquela história do Fernando Namora, O Caso do Sonâmbulo Chupista?
Eu apenas fiz a divulgação da vigarice do Namora… e eu estou em Agosto na cervejaria Trindade com o Serafim Ferreira e com o Herberto Helder, que se está a queixar que aquela gaja, a Maria Estela Guedes, tinha feito um livro com textos que tinha roubado, e de repente o Serafim diz: “opá, isso plágios é o que para aí há mais, eu tenho lá em casa a edição especial da Aparição que me deu o Vergílio Ferreira com coisas anotadas que o Namora lhe roubou...” E eu estou a ouvir aquilo e estou calado. No dia seguinte telefono para a Amadora, onde mora o Serafim, e pergunto: “ouve lá, aquela tua conversa de ontem, aquilo era blague de café ou era a sério?” “Não, tenho cá o exemplar da Aparição. Combinámos então o terrível crime nas escadinhas do duque, em que ao cimo das escadinhas eu digo: “ouve lá, tu vais fazer um panfleto e eu edito-te e vamos ganhar um bocado de massa os dois, estamos em Agosto, agora não se vende nada mas vende-se em Setembro”. E ele disse: “eu não posso fazer” – não perguntei porquê, devia favores ao Vergílio Ferreira ou ao Namora, porque o Serafim é um bocado marçano. E eu disse: “então passa-me para cá isso e faço eu”. Estive semanas ou talvez mais, um mês ou dois, a confrontar na Biblioteca Nacional, foi tudo verificado... eu mostrava às pessoas e as pessoas concordavam, aquilo era tudo roubado, o Namora, no Domingo à Tarde, tinha copiado partes do Aparição, do Vergílio Ferreira. Fui então ao O Jornal ter com o Rodrigues da Silva: “ouve lá, achas que isto aqui é publicável? Reposta dele: “opá, o José Carlos Vasconcelos é muito amigo do Namora, nem pensar...” Ninguém queria publicar aquilo. Estavam com medo do Namora. Tive eu de publicar, melhor, tive de arranjar um gajo, o Vítor Belém, ele é que fez a edição. O Belém foi comigo à Tipografia Mirandela, na Travessa Condessa do Rio, perto da Calçada do Combro... era a gráfica desses gajos da extrema-esquerda… aquilo foi composto, eu revi provas, num papel muito ordinário... saiu num folheto de 8 páginas, fiz 5 ou 6 mil exemplares. Despachei tudo, vendeu-se à maluca, alguns iam parar as caixas do correio.

 



E as reacções?
O Dinis Machado foi com a mulher ao Hospital do Rego interceder para eu não publicar o folheto. A célula do PCP na Trindade, o B.B., o Virgílio Martinho, o Dácio e outros juntaram-se e condenaram-me... diziam que eu me tinha vendido ao Vergílio Ferreira, que tinha sido pago pela direita para dizer mal de um escritor da esquerda. Ora o Namora era tão de esquerda como o Vergílio Ferreira. Dizia-se que o Vergílio Ferreira me tinha dado um fato novo e 50 contos. A reacção do Vergílio Ferreira vê-se na Conta Corrente, o gajo lamenta-se e tal… O Namora disse que me processava e não sei que mais... O meio literário não é fácil, não é melhor nem pior que os outros... agora avançar neste meio é facílimo...

O que é que é preciso fazer?
Eu não te vou ensinar, eu ensino-te é a combater o meio... opá, um tipo que quer fazer carreira, se não for parvo de todo e for um bocadinho filho da puta... é facílimo... O meio literário é de cortar à faca, é muito fácil de penetrar. Eu, que nasci em Lisboa, via-os chegar da província, os Namoras, os Amândios César, os Paço d’Arcos, etc., andavam por aí a borbulhar, a deslizar, a ver quem chega primeiro. É como os espermatozóides. Agora combater o meio, isso é que é difícil, é o mais difícil... a questão é esta, estúpidos, conformistas, cobardes, é a maioria da malta...

Isso é um bocado pessimista...
Não, é ser realista...

Todos os pessimistas respondem dessa maneira. Diz mal de toda a gente...
Eu não sou muito de me deixar influenciar... estou assim um bocadinho sempre do contra...

 



Considera-se um marginal?
Eu não me considero coisíssima nenhuma. Eu considero-me um gajo que está aqui sentado. O burguês tem perante o chamado marginal, o gajo que está na cadeia, ou que está no hospital, ou aqui no lar, uma atitude natural de superioridade e supremacia. Isso manifesta-se. O que estou a dizer é que estou-me cagando para o burguês, para os burgueses todos, incluindo a minha costela burguesa. Esses gajos são uns exploradores. Querem apanhar o meu lado pitoresco, ou folclórico, para fazerem negócio com isso. Se fazem negócio com isso, é bom, eu acho bom.

Recebe uma bolsa do Ministério da Cultura, por mérito cultural...
O Alçada Baptista encontrou-me um dia na Av. da República e perguntou-me: “não lhe dava jeito uns 7 ou 8 contos por mês?”. “Ó dr., não me diga isso”. Se fosse um conto ainda acreditava…” Depois vi o decreto e concorri. Tive logo um subsídio de 10 contos. Depois, a Maria João Rolo Duarte, a mãe deste Pedro, é que conseguiu que o Santana Lopes, quando era Secretário de Estado da Cultura, me aumentasse o subsídio, que na altura ia nos 60 contos... a Maria João Rolo Duarte sabia que o Cesariny recebia mais que eu e, numa festa em que encontrou o Santana Lopes, fê-lo prometer que me aumentava o subsídio. Como ela escrevia na Capital, publicou um texto que comprometeu o Santana. Recebi mais 30 contos por mês, passou para 90 contos. Mais trinta contos por mês, um conto por dia... de repente apareceu-me lá em Setúbal uma carta com retroactivos, 6 meses, foi um balúrdio... 30 contos é uma grande diferença... Gosto do Santana por causa disso. E também porque é um playboy, um gajo dos copos, das discotecas…

Opinião sobre José Saramago?
É muito meu amigo. Foi muito porreiro comigo na altura do Diário de Lisboa. E noutras ocasiões. Um dia apareceu-me no sanatório do Barro, em Torres Vedras, com a Isabel da Nóbrega... quando se foram embora puseram uma nota de cinco contos, disfarçadamente, na gaveta da mesa de cabeceira... Quando ele recebeu o Nobel foi lá a Palmela uma filha minha, com o marido e com os dois filhos, e diz-me assim: “ah, tu tens é inveja do Saramago”. Tenho agora inveja do Saramago… nunca quis prémio nenhum quanto mais agora o Nobel… quem tem inveja do Saramago é o Lobo Antunes e muita… porque o Lobo Antunes deve ter-se convencido que com o seu mérito próprio ganhava o prémio... ora o prémio não é um prémio para mérito próprio, o prémio é um prémio político, o prémio é dado com pontaria, com muita pontaria...

Nos últimos anos tem publicado livros a um ritmo espantoso. Uma Admirável Droga...
Isso é aquilo que eu chamo um livro póstumo, eu não tive intervenção quase nenhuma naquilo... a Isabel Segorbe, de Coimbra, telefonou-me a perguntar se podia editar um texto meu que tinha lá em casa... mudou de casa e achou lá aquela laracha... eu não sabia o que era aquilo... De repente sou confrontado com situações de que não lembro de nada... eu andei debaixo de álcool, álcool misturado com drogas, não é o haxixe e essas coisas que vocês tomam agora, era o Lorenine, era o Valium, era essas merdas. Eu tinha dias em que não me lembrava, no dia seguinte, absolutamente de nada... podem contar-me tudo o que quiserem que eu não vou negar, mas vou negar para quê? Já não consegues desfazer em muita gente a opinião que fazem de ti, é muito difícil de desfazer... por exemplo, o B.B., foi ele que apresentou esse livro de Coimbra, o lançamento foi ali na livraria Ler Devagar... eu não fui lá, ficou muito ofendido... eu se fosse lá era para lhe dar com uma bengalada... o gajo começa: “Luiz Pacheco, bebedeiras, prisões, sexo bilateral... até parece que ninguém viu o B.B. bêbedo... eu por acaso vi... às vezes aparecem-me aqui gajos que dizem que me conhecem... sei lá quem são os gajos, não faço ideia nenhuma... um dia destes apareceu aqui um gajo: “eu sou o António Carranca”, como quem diz “eu sou o Napoleão”... eu não fixo caras... quando você chegou aqui, se dissesse “eu sou o Kadafi”, eu acreditava... mesmo com os óculos eu levo uns segundos... se fores às Caldas da Rainha há montes de gajos que me conhecem ou se lembram de mim e eu não faço ideia quem são...

 



E a Admirável Droga?
A carta que tu me escreveste, quando aquilo saiu, foi a 1ª opinião que me chega sobre a Admirável Droga. Gostava que tivesses sido mais agreste. Não por masoquismo mas porque entendo que o teu adjectivo despudorado é bastante pudico... discreto... delicado... Não estamos em tempos de PIDE, Censura, Clero da Inquisição. Dá-me vontade de rir estas coisas. Eu nem sei o que escrevi. Li agora aquilo como o livro de um outro. Quando revi, em Janeiro de 2001, as provas (ampliadas) escrevi no fundo da página três desabafos, que saíram colados ao texto. Que fazer? Nada. Autorizei a Senhora a fazer o que quisesse… e ela fez bastante, caramba! As pessoas, o que eu tenho visto, prendem-se ao escandaloso, ao insólito, falando vulgarmente, ao ESPECTACULAR. É com elas. Tá bem, é assim. Não havia, creio que ainda não há, em português, originalmente, relatos com homossexualidade, pedofilia e por aí. Não vai tardar muito, creio! Nem eu me arrogo o Vasco da Gama, o Colombo, o Cabral desses “descobrimentos”. Nem está aí o meu objectivo. O Libertino é uma reportagem, escrita de jacto, no dia seguinte aos eventos relatados. Estes casos, dos marujos e da Emília, chegam-me de longe e já têm meio século.

É parecido com o que escreve?
Eu não tenho, creio, grandes dotes de imaginação. A minha fantasia é pobre. Sendo assim, os textos que considero mais conseguidos são autobiográficos. Reportagens de mim. Com um mínimo arranjo estético. Nalguns casos, como o do Libertino, são textos directos, rápidos, sem mastigação. Noutros são uma construção sobre os factos, aquilo a que chamo textos orquestrados, como a Comunidade, por exemplo.

E o livro Mano Forte, a correspondência para o António José Forte?
Quem conheça um pouco da minha vida sabe que eu tive uma vida um bocado atribulada, com fugas de casas, de terras, de mulheres, de ambientes… eu sempre tive o cuidado, quer em Setúbal, quer nas Caldas da Rainha, quer na Macieira, quando aparecia ameaça de ser preso ou ter que mudar rapidamente de casa, de não andar carregado com dossiers cheios de tralha… ficou-me muita tralha perdida para aí… ainda bem que ficou…

Mas gostou, gosta do resultado final?
Dali não vem mal ao mundo. Podia vir se isto fosse uma edição que não tivesse venda. Isto é muito cuidado. Se teve venda alguém ganhou, ganhou a tipografia, ganhou a fábrica de papel, ganhou também o editor… Eu tenho uma certa cagança nisto. Repara, eu estou aqui no quarto, não saio à rua há mais de um ano e de repente estou na montra da FNAC… é uma maneira de sair daqui.

Lembra-se de ter escrito aquelas cartas e aqueles portais?
Não me lembrava de nada. Publiquei cartas minhas para o Forte e do Forte para mim no Pacheco versus Cesariny. Isto é nem mais nem menos o resultado de um gajo que teve uma vida um bocado atribulada, ou variada, salta de Lisboa para Setúbal, de Setúbal salta para as Caldas da Rainha, salta para Almoinha, Sesimbra, salta para Vieira do Minho. As cartas também são para vários sítios porque como o Forte era funcionário das bibliotecas itinerantes andava de Vieira do Minho, Portalegre, Santarém, Tomar…

Qual a memória que guarda do António José Forte?
O que não está aqui feito e também agora não interessa fazer era valorizar, dar o seu justo valor à figura do Forte. Eu tentei convencer o Bernardo Sá Nogueira... não quis, achou que não… O Forte nunca foi um gajo de se evidenciar muito, de se por em bicos de pé… é claro que este livro era uma boa oportunidade de chamar a atenção para o Forte… Olha, não quero falar de mortos. Aqui no lar já há muitos mortos. Aqui está tudo morto. O gajo da cadeira de rodas… Quando passa aqui o cortejo, à hora de almoço, à hora de jantar…

Como é que esta correspondência aparece passados tantos anos?
Um tipo sabe que fulano António José Forte, por exemplo, guardou coisas que lhe mandou, cartas e postais, guardou, morreu, foi parar às mãos de alguém e depois aquilo representa um valor… e então vendem… depois aparece um urubu mais categorizado, com outra perspectiva empresarial e faz a edição. Eu em princípio não posso estar contra isso. De qualquer forma, este livro é uma golpada, é de rabo à mostra… repara, é uma edição de 1000 exemplares a um preço, mais 100 a outro preço, numerados, com mais 30 a outro preço, numerados também, uns em romanos e outros em árabe. É o intuito do alfarrabista a valorizar as cartas que lá tem. Seja como for, livro está cheio de disparates…

Como por exemplo?
O título, desde logo o título. Eu não conheço as cartas nem os postais, mas duas dezenas de cartas e três postais nunca podem ser “cartas fortes”, que era como o Bernardo, no início, lhe queria chamar… há uma carta maior, mas o resto são tudo cartas pequeninas… O Bernardo Sá Nogueira diz sobre estes postais que era “escrita premeditada no pressuposto de publicação”. Isto é um disparate, é a armar em esperto. Quem vê os postais que vêm ali, em fax-simile… então um gajo escreve um postal destes a pensar que vai ser publicado? Eu agora quase não escrevo postais com o objectivo de não serem publicados. Escrevo muito poucos postais e cartas, então, é um caso sério. Aqui já não é o interesse amigo de guardar um papel de um gajo que lhe mandou, aqui é já o interesse meramente mercenário de fazer dinheiro com o papel. No gesto de guardar cartas há uma certa afectividade ou interesse ou coisa que o valha. Um gajo que está numa cadeia, num hospital, numa aldeia, se comunica com alguém, se gosta de comunicar, a carta é um derivativo. Ainda mais nessa altura, no tempo do antigamente, do fascismo, a carta era uma expressão livre, claro que os gajos muitos cautelosos nem cartas nem postais escreviam. Agora eu escrevia imenso… Este livro é uma golpada. É evidente. Por exemplo, a fotografia na capa… é uma maluqueira como outra qualquer… Dá ideia que eu é que sou um exibicionista, que gosta de vir nas capas… é para chamar, para vender mais… Isto faz vender. A fotografia e o nome fazem vender…

Mas os seus outros livros também têm o Luiz na capa…
Mas olha que nunca foi por minha vontade… As edições Contraponto, que são as minhas, não têm fotografia na capa. Vem na Estampa, invenção do senhor Vítor Silva Tavares… depois vem com atributos como as calças curtas, o saco de plástico… opá isso são os chamados bonecos, é a imagem de marca. É um bocadinho por desprezo. Porque eles usam bons casacos. É uma atitude normal do burguês, que goza o marginal, ou que quer gozar…

 



Vai sair na D. Quixote, em breve, um diário inédito, o Diário Remendado...
Aquele diário é uma conversa comigo mesmo, um desabafo... e é um fragmento de um fragmento do meu diário... é uma amostra, um fragmento daquele período, entre 1971 e 1975... deitei muita coisa fora... tirei mais de metade...

Inclusive o relato do 25 de Abril...
Esse corte foi deliberado... eu não gosto daquele texto... era uma resposta aos gajos que faziam artigalhadas mais ou menos inventadas com o título “O meu 25 de Abril”... aquilo era tão presunçoso... não foi só um gajo, ainda foram uns quantos... se tu fores consultar os jornais na altura verificas isso... era uma paródia a esses gajos... Como é que foi o seu 25 de Abril? Opá, os colhões do Padre Inácio... já ninguém liga ao 25 de Abril...

Foi de pijama para o Largo do Carmo...
Mas não foi de propósito... eu estava em casa, sozinho, o Paulo tinha ido para o liceu, estava a rever provas do Pacheco versus Cesariny... de repente chateei-me, não tinha telefonia, não tinha televisão, não tinha nada, chateei-me de rever provas e disse vou ali beber uma cerveja e quando venho de beber a cerveja há o barbeiro que me diz “ó senhor Pacheco, olhe que há revolução em Lisboa”. Então enfiei o sobretudo que me deu o marido da Natália Correia e fui para Lisboa... não foi de propósito que eu fui para o Carmo de sobretudo e pijama... Agora não respondo mais nada... estou cansado... são 80 anos, caramba!... vá, pira-te que eu tenho de mijar e tenho de ir comer qualquer coisa...


terça-feira, maio 03, 2005

 

Luiz Pacheco, Grande Entrevista de Vida




A qualquer momento, durante o dia de amanhã. Um grande entrevista onde o escritor Luiz Pacheco fala da sua vida literária e não só. Um entrevista diferente, com pés e cabeça, na semana em que o escritor faz 80 anos de idade (no próximo sábado, dia 7 de Maio). A não perder!

 

Conhece-te a ti mesmo




Para Baltasar Gracian todos somos idólatras, ou da reputação ou do interesse ou do prazer. E tu? Idolatras o quê?



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