Também colaborou na Seara Nova...Com dois textos, um deles chamava-se “A Lição”, quando foi da candidatura do Humberto Delgado. Mandei o artigo ao Câmara Reys, que disse: “é escusado mandar compor o texto porque a censura corta tudo”. Mas houve alguém, já não me lembro quem, que disse: “mande! Pode ser que passe”. Resultado: foi todo cortado. Nessa altura o ministro da Presidência era o Marcello Caetano e eu trabalhava na Inspecção dos Espectáculos. Só para chatear fui para casa, preparar um texto a reclamar do corte. Tinha que se fazer um requerimento em papel selado, o máximo eram 4 páginas. Citava textos do Marcello, do Torcato de Sousa Soares (professor de Direito em Coimbra), do Herculano e do Oliveira Martins. Na minha exposição defendia que, como autor do artigo, o meu ponto de vista era igual ao dos citados. Demorei semanas a fazer a exposição, fui à Biblioteca... Entreguei ou enviei para a Presidência do Conselho, já não sei. E aguardei. Daí a tempos escreveram para a Seara Nova a permitir a publicação. Veio a aceitação mas ainda demorou. Já era um artigo cauteloso. Mas saindo na Seara Nova (que ficava na rua da Rosa, nº 23, onde nasceu o Camilo Castelo Branco), já depois das eleições, tinha menos força, era mais inócuo, menos agressivo. O que o Marcello gostou foi que o tivesse citado a ele. A intenção do artigo era mostrar que a censura não era tão cega quanto isso. O Câmara Reys é que ficou com uma grande cachola. O Câmara Reys foi meu professor no liceu Camões. Era um gajo espantoso... e um grande mineteiro. Dava aulas de literatura espantosas.
O seu primeiro livro como escritor foi a Carta-Sincera a José Gomes Ferreira? Isso era uma carta, um panfleto, não era um livro. O meu primeiro livro foi a
Crítica de Circunstância, edição Ulisseia e do Vítor Silva Tavares. Foi o gajo que de facto começou comigo e começou com coragem porque eles sabiam que o livro ia ser apreendido. E foi! Agora, a carta ao Gomes Ferreira, escrita em 1953, foi o meu primeiro texto com alguma dimensão, com alguma pontaria. Eu mandei-lhe o texto numa carta registada com aviso de recepção. Recebi o aviso de recepção assinado pelo José Gomes Ferreira mas ele nunca deu resposta. O Gomes Ferreira não percebeu aquela carta. Aquilo era uma irritação e uma homenagem, uma irritação porque ele estava a abandalhar-se como escritor e uma homenagem porque o Gomes Ferreira tinha sido um dos meus ídolos de juventude. Esse texto foi escrito para um projecto meu, do Cesariny e do Lisboa, que era “Duas gerações, Três cartas”. Eu escrevia uma carta ao Gomes Ferreira, o Cesariny ao Gaspar Simões e o Lisboa ao Casais Monteiro. A carta do Lisboa (“Carta Aberta ao Srº. Dr. Adolfo Casais Monteiro”) está naquela edição da Assírio & Alvim, o tijolo cor-de-rosa, organizada pelo Cesariny. Lembro-me perfeitamente de o Lisboa ter estado comigo na Inspecção dos Espectáculos, no r/c, na Calçada da Glória, com uma máquina muito velha, ele a ditar-me a carta e eu a escrever a carta à máquina. Dali o Lisboa foi ao
Diário Popular para ser publicada como resposta à entrevista do Casais Monteiro ao Gaspar Simões... para elucidar esse texto do Lisboa há que ler a entrevista... Não sei se ele chegou a ir ao
Popular, não sei se se arrependeu pelo caminho. Ora como é que essa carta chega à mão do Cesariny? Não sei. O que eu sei é que quando tentei fazer um trabalho sobre o Casais Monteiro, eu na altura não tinha envergadura para fazer aquilo, lembro-me que estava no Café Portugal, no Rossio, com um livro do Casais... aquele primeiro livro... o livro de ensaios... o Lisboa disse-me, muito sacana e perfurante: “estás a agarrar-te ao Casais porque não tens tomates para te agarrares ao José Régio”. É natural que o Lisboa tivesse preferência pela poesia do Régio ou que considerasse o Régio mais importante que o Casais... a poesia do Lisboa é muito mais achegada à poesia do Casais do que ao Régio. No Lisboa não havia problemas metafísicos, nem de Deus, nem do Além nem nada disso, como há no Régio e não há no Casais. Ora, anos depois, já eu estava no Pote d’Água, o Cesariny pediu-me para publicar a Carta-Sincera na Antologia em 1958, a colecção dele, que era feita na Rua Nova do Loureiro, na Editora Gráfica Portuguesa. O título completo era
Carta-Sincera a José Gomes Ferreira com uma Nota do Autor por causa da Província.[Batem à porta do quarto, entra um homem]
Visita: “Boa tarde”
Pacheco: “Quem é?”
Visita: “Pacheco?”
Pacheco: “Quem fala?”
Visita: “Aqui é o Armindo”
Pacheco: “É o…?”
Visita: “O Armindo”
Pacheco: “Quem é o Armindo?”
Armindo: “Já não te lembras de mim, pá?”
Pacheco: “O Armindo?”
Armindo: “Estivémos preso no Limoeiro”
Pacheco: “Eu sei lá quem é o Armindo, pá…”
Armindo: “Como é que não sabes…? já não te lembras…?”
Pacheco: “Não, filho, não estive preso contigo, nem com a tua avó...”
Armindo: “Também, com esta escuridão… [no quarto do Pacheco]… eu era um miúdo”
Pacheco: “Olha, vai dar uma volta…”
Armindo: “Vou…?”
Pacheco: “Vai dar uma volta e vem cá amanhã… que estamos a gravar… tu está a ficar aqui gravado, podes ser preso outra vez…”
Armindo: “Está bem pronto, O.K. Agora que estive a dizer que estive preso e tudo… isso é uma reportagem?”
Pacheco: “É, é… é uma reportagem… mas não é da televisão…”
Armindo: “É da TSF?”
Pacheco: “Vem cá amanhã filho e não sejas preso hoje,
Armindo: “Não, eu aliás já me deixei disso”
Pacheco: “Aguenta-te cá fora, vem cá amanhã, mais cedo, que a esta hora já estou a dormir, se não fosse este maluco já estava a dormir…
Armindo: “Como me disseram-me que andavas aqui nas tascas, aqui de roda, de vez em quando…”
Pacheco: “Vai dar uma volta…”
Armindo: “Tchau, adeus… isso fica para a reportagem?
Pacheco: “Fica…”
Pacheco para o entrevistador: “Não sei quem é, nem tenho óculos… Sei lá quem é esse gajo… Quem será este cabrão, nem vi a cara dele… Armindo? Puta que o pariu. Se ele esteve no Limoeiro deve ser um grande fodido, ainda me rouba… Eu estive no Limoeiro com milhares de gajos, porra, olha o que faltava agora era aparecer-me aqui a tropa toda, milhares de gajos... eu estive lá 3 vezes, imagina o que não era… o director do Limoeiro, um gajo chamado Castelo Branco, quando eu estive lá da terceira vez ele era o director, era muito novo, muito inexperiente, depois ficou pior... este jornal, o 24h, anda a publicar umas coisas sobre o terrorismo de direita, de esquerda, agora é sobre os FP’s 25 de Abril... ora este gajo morava na Lapa, mesmo ao pé de onde eu morava, mesmo ao fim da Rua Buenos Aires… e acho que já tinha prendido muita gente das FP e ele deu ordem para haver um rigor especial nas prisões… os presos condenaram-no à morte… o gajo tinha dois seguranças mas um dia estava em casa, mandou os seguranças embora, estava à espera de uns amigos para jantar, como os amigos gostavam de um determinado queijo, o estúpido foi à rua comprar o queijo para os amigos, estavam dois gajos na rua a vigiar, deram-lhe um tiro na cabeça e despacharam-no… ficou como o queijo, todo furado de chumbo...”
Como é que era no Limoeiro?O Limoeiro era uma prisão de passagem, para quem estava à espera de julgamento, não era para os que estavam a cumprir pena. Isso era em Monsanto e assim... Lá dentro havia estratos sociais, a Sala dos Menores, a Sala dos Bacanos, os que tinham conhecimentos fora da prisão... como eu... da segunda vez que lá estive o Artur Ramos telefonou ao pai, que era Director-Geral da Penitenciária... e depois havia a Sala Comum, para onde iam todos... ah, e a Sala dos Primários, para aqueles que lá estavam pela primeira vez... De repente havia confusão... jogos a dinheiro... havia um fiscal, que era um preso nomeado... dava prestígio mas também era perigoso... tinha de ser um tipo forte. Dava prestígio e dinheiro, porque tinha um negócio de laranjadas, sandes, etc. Depois havia a oficina, alguns presos trabalhavam lá, uma enfermaria... tinha lá um enfermeiro perigosíssimo, vendia penicilina misturada com água, em frascos de vidro... deve ter morto alguns... o refeitório, com mesas corridas, aí umas 10, havia o chefe de mesa, que eram quem distribuía a comida, conforme as amizades e os acordos... Havia muita discussão por causa da comida...