(fotografia de João Francisco Vilhena, publicada na revista
Ler nº 31, Verão de 1995, p. 71)
O Luiz Pacheco é muito requisitado para entrevistas...Opá, isso começou com a entrevista do
Expresso, feita por aquela maluca, a Clara Ferreira Alves, e pelo outro mangas, o Torcato Sepúlveda, que assinou com outro nome... porque esses gajos é assim: quando um gajo lhes dá uma entrevista cai-nos tudo em cima. Eles não vão pedir entrevistas ao Cesariny porque sabem que ele nem liga... Agora, eu já tenho um balanço, um pé muito bem calçado de entrevistas... sabes como é que eles fazem? Vêm com o que leram das outras entrevistas e as perguntas são sempre as mesmas... eles têm lá no ficheiro... antes de virem falar comigo eles não vão ler as minhas obras completas... nem as encontravam... De entrevista em entrevista é a mesma chapa, vêm com perguntas de chapa. É como o outra: “o que é que você pensa da juventude de hoje?” Eu não penso nada, eu nem conheço os meus filhos... uma vez apareceu-me aqui um gajo da Focus... como é que era o nome dele? É como os pastéis... de Tentúgal... Rui Tentúgal... disse-me que era casado com a Cláudia Galhoz... depois é que eu percebi, então o gajo vinha com perguntas que ela já me tinha feito há 10 anos para o Blitz.
Como é que se tem dado aqui neste lar?Há uns tempos andei com a ideia de fazer um trabalho sobre lares. A má fama dos lares é justificada... e não sabes tu da metade do que se passa aqui... há aqui casos humanos dramáticos, por exemplo, a senhora do quarto aqui ao lado... à noite têm de lhe mudar a fralda... passa horas a berrar “srª empregada, srª empregada...” Ninguém aparece... eu ainda lá fui uma vez... aqui não há campainha de alarme, não há telefone. Também, o que é que isso interessa, no lar de Palmela havia telefone mas tocava-se e não estava lá ninguém... Esse lar de Palmela era o lar nº 1, o melhor do país, segundo a Deco. Era um modelo. O projecto do lar deve ter sido gamado do estrangeiro. Era um lar invulgar, com todas as condições. Mas o ambiente era muito desumano, era uma espécie de aldeia turística. Falo disso no último texto do
Isto de Estar Vivo, o “Memorial do Recolhimento”. Era um lar no meio de uma serra, com o ar puríssimo de Palmela, uma construção nova, em arco, sem vizinhança, sem casas à volta... Era muito bonito... Fui para lá logo quando aquilo começou... no início, a fase de promoção, serviam um bacalhau altíssimo, as torradas pareciam as das pastelarias da Baixa, dois andares de torradas, molhadas em manteiga, o café com leite vinha com dois pacotes de açúcar... depois, um dia, começou a aparecer só um pacote... vieram as economias... as torradas passaram a ter só um andar com uma lambidela de margarina... Agora este aqui, do Príncipe Real, já se aproxima mais da generalidade. Por exemplo, as giletes que eles dão aqui algumas já barbearam mortos. Tu não fazes ideia... Isto é um armazém de pré-cadaveres, é uma parada de monstros. Há um gajo que não tem uma perna, anda de cadeira de rodas empurrado por um velhinho de 88 anos, há outro que é cego, tem glaucoma, mais a namorada, que é horrorosa, mas como ele não vê também não faz mal... outro tem alzheimer, o sr. Américo, entra aqui, de boné e pijama, dá uma volta pelo quarto, às vezes vai à casa de banho, sai, não repara em ninguém, não diz nada... há outro que é o sr. Vergílio, anda pelos corredores a rir e a assobiar, são dois fantasmas... Há uma que anda aqui a passear de um lado para o outro, diz “ai, ai, ai”, depois vai bater na outra que está sempre sentada na cama, vai lá mexer... não têm mão nela... com estes gajos não se pode estar a discutir, é comprimido, água para o bucho, não vai um vão dois, fica a dormir dois dias seguintes... Isto agora aqui são os últimos dia do condenado. Aqui a lei é morrer devagar. Está uma a morrer ali, ou já morreu, não sei, estou eu a morrer aqui, está outra a morrer ali... A ver quem morre primeiro… “Já foi”, é o que dizem quando alguém morre. Agora já sei o que vão dizer quando eu morrer.