Como é que ocupa aqui o tempo?Eu estou quase cego. Quase não consigo ler, só com muita dificuldade... O facto de não ler é um grande prejuízo... também já li muito... Passeio pelo quarto de bengala, nos corredores do lar, para mexer as pernas. Não me atrevo a ir lá fora. Praticamente já não saio do quarto. Nem vou ao telefone. Há uns tempos, ali no jardim, senti-me mal disposto. Mandei vir uma sandes de fiambre e uma água das pedras. Avariei. Vomitei. O criado veio buscar duas raparigas aqui ao lar. Foram com uma cadeira de rodas. Custou-me um bocadinho de massa. Levava 20 euros. Paguei, fiquei com uns trocos, dei um montão de moedas ao criado para telefonar para o lar. Para que é que me interessavam as moedas se morresse? A minha ligação com mundo, agora, é isto [aponta para um rádio Philips]. Oiço a Antena 1, o programa “O Prazer de Ler”, que passa às 13h 55m, repete às 21h 05m, é um programa da Isabel da Nóbrega. No Natal de 2002 leu a
Comunidade. Está agora a ler
A Cidade e as Serras. Às vezes também oiço a TSF, o fórum... Agora andam a chatear o Barroso por ir passear no iate. Por que é que não havia de ir? Já estão a inventar negócios malucos. Isso é inveja, é inveja, também queriam ir com o cu no barco... quando ele foi lá ao Brasil no fim-do-ano também ficaram invejosos... é preciso ter lata... o Santana Lopes era porque ia às discotecas... opá, não é fácil...
Já pensou em ser operado aos olhos?Operado? Nem penses nisso. O que é que eu quero ver com 80 anos? Eu quando vou ali à sala, onde estão os velhos todos, tiro os óculos para ver tudo nublado, para não me ver ao espelho... Aquilo é um pavor! A Isabel da Nóbrega, o Artur Ramos e a Fernanda, cunhada do Manuel Alegre, queriam levar-me a Coimbra para ser operado as cataratas. Não quero. Eu é que sei. Isso é suicidário. Quando eu quiser morrer vou a Coimbra. Depois levaram-me a um oftalmologista na Av. da Liberdade. Diagnosticaram-me as cataratas. Tive que largar 1000 paus para umas gotas. Não servem de nada. Caem-me para o nariz. Já tenho o quarto todo o cor... e o quarto está reduzido ao essencial... É uma experiência nova, não ver é uma experiência nova.