Para terminar o ano, mais um maluco. Senhoras e senhores, meninos e meninas, apresento-vos Francisco Dias. Bem vindo!
Caro João Pedro,
Depois de ler no seu blogue a disputa verbal entre si e Rui Falcão, tive
o ímpeto de lhe escrever. Quem sou eu? Um entre milhões de anónimos,
literariamente um zero, ou no melhor dos casos um zero vírgula dois. Mas
sei ler, discernir e fundamentar as minhas opiniões. Apesar de me
reconhecer como um mero consumidor de literatura, e nunca como um
aprendiz de escritor, e muito menos um candidato a crítico literário,
considero que me assiste legitimidade para opinar e para partilhar as
minhas reflexões sobre o que vou lendo.
Ora, se me esmero a reduzir-lhe as expectativas quanto à minha pessoa, é
justamente porque constato que você, para dirimir as suas razões, opta
por elevar a forma aos píncaros do sagrado, tentando assim desviar a
atenção do conteúdo. De resto, o que me leva a escrever-lhe tem relação
directa com esse seu estratagema. Transcrevo-lhe uma das suas frases em
resposta a Rui Falcão (que, como a si, não conheço de lado nenhum): "O
Rui, leitor de Gil Vicente, íntimo de Tchekov, deveria saber que não se
diz “trazer à coacção” mas sim “trazer à colação”. Um pequeno erro como
esse fere um texto de morte. E retira-lhe toda a credibilidade."(sic)
Fantástico! Consegiu apanhar o oponente em flagrante delito de
credibilidade!
João Pedro, não reparou que com esse golpe rasteiro acabou por confirmar
a justeza das críticas que o Rui lhe endereçou? Acredita realmente que um
erro retira toda a credibilidade a um texto? Francamente, sejamos
sensatos!
E acha que refocalizando a atenção na pessoa ("Rui Falcão é o seu nome
verdadeiro ou é nome falso?"... "Se... já leva alguma experiência nestas
coisas da literatura, talvez já devesse ter ouvido falar de si...Quem é
Vossa Excelência?"), ou dando importância cósmica a um pormenor, é
intelectualmente honesto?
Em geral, por tudo o que é dado ler no seu blogue, e julgando a partir
daí os seus méritos, confesso que esperava muito mais de si. Acredite
que, como mero observador desta cena de pugilato verbal, fiquei com a
nítida impressão "de" que o Rui Falcão o mandou ao tapete logo no
primeiro assalto, e sem grande esforço.
As lianas do formalismo e o tecnicismo formal nem sempre são boas
companhias. Cuide de si e não se deixe escorregar pela rampa da
verborreia.
Votos de um óptimo Novo Ano.
Francisco Dias
Post sriptum: coloquei a proposição "de" entre aspas para ressalvar
eventuais ataques formais: sei que, em rigor, a proposição está a mais,
mas gosto dela lá.
Este Natal ofereceram-me este livro, 1972: O Ano Em Que Eu Nasci, da editora Ausência. Informam-me na capa que aí vou encontrar “todos os dados e aspectos relevantes que se passaram durante o ano em que eu nasci”, em áreas que vão da meteorologia à sociedade, passando pela cultura, espectáculos, ciência, desporto, etc. Pior, pior foi terem oferecido à minha namorada este outro livro, 1970: O Ano Em Que Eu Nasci. Resultado, passámos os dois o final da noite de 24 à bulha. A discutir quem tinha nascido no melhor ano, 1970 ou 1972? Primeiro, os famosos que nasceram nesses anos. Ela mandou-me à cara o Michael Schumacher. Eu, para grande raiva minha, ripostei com o Pedro Lamy. Tentei neutralizá-la com a Catarina Furtado, mas ela tinha na manga a Claudia Schiffer. Só o meu Luís Figo conseguiu esmagar-lhe o Paulo Sousa. Nas mortes sonantes, ela vangloriou-se com Almada Negreiros, Bertrand Russel, Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Charles de Gaulle e... António Oliveira Salazar. Eu, mais uma vez, senti-me inferiorizado. Em 1972 limitaram-se a morrer Maurice Chevalier e uns tipos estranhíssimos, como o Andrei Tupolev, um engenheiro soviético, e Max Fleischer, o criador de Popeye. A coisa começava a ficar preta para o meu lado. Estava a levar uma abada.
Nos acontecimentos nacionais ela sentiu-se humilhada com a Operação Nó Górdio, do generalíssimo Kaúlza de Arriaga. Eu tinha os quinze camiões do exército que foram destruídos pelas Brigadas Revolucionárias. Nos êxitos da televisão eu atirei-lhe com o António Vitorino d’Almeida e o seu “Histórias da Música”. Mas ela arrumou-me com o Festival da Canção e com a música “Onde Vais Rio que eu Canto”, do grande Sérgio Borges. Nos acontecimentos internacionais não lhe dei hipóteses: a 30 de Janeiro o Sunday Bloody Sunday, a 6 de Setembro o ataque palestiniano em Munique à delegação israelita presente nos Jogos Olímpicos, a detenção dos terroristas Baader-Meinhof e o escândalo do Watergate. Ela só tinha, para contrapor, a eleição de Salvador Allende e o “Setembro Negro” de confrontos entre refugiados palestinianos e forças militares jordanas. Na sociedade dei-lhe um baile: a morte do Duque de Windsor, o monarca que renunciou ao trono pelo amor de uma divorciada; o húngaro tresloucado que danificou à martelada a famosa “Pietá”, de Miguel Ângelo, enquanto gritava: “Eu sou Jesus Cristo”; e a tragédia nos Andes, em que um grupo de sobreviventes de um acidente de avião come os companheiros de viagem. Ela assumiu a derrota com a aprovação em França do uso obrigatório do cinto de segurança nos assentos dianteiros dos automóveis.
Nas novidades literárias verificou-se um empate técnico. No meu ano estrearam livros como As palavras, que pena (Yvette Centeno), Os Clandestinos (Fernando Namora), Poesia H (Fiama Hasse Pais Brandão), A Mosca Iluminada (Natália Correia) e Visão-Vision (Ernesto de Melo e Castro). No ano dela, mais do mesmo: Um Sino na Montanha (Fernando Namora), As Maçãs de Orestes (Natália Correia), (Este) Rosto (Fiama Hasse Pais Brandão) e Os Outros Legítimos Superiores (Maria Isabel Barreno). No cinema arrasei com O Padrinho, O Último Tango em Paris, Tout Va Bien (Godard) e O Charme Discreto da Burguesia (Bunuel). Ela ainda balbuciou um Bertolucci (A Estratégia da Aranha) e tentou ludibriar-me com o Cowboy da Meia-Noite. Em termos de êxitos musicais eu tinha para apresentar “Que Força É Essa” (Sérgio Godinho), “Canto no Deserto” (um single de Fernando Tordo), “Riders on the Storm” (The Doors), “Harvest” (Neil Young) e “Smoke on the Water” (Deep Purple). Ela disse que lhe bastava, para me pôr K.O., a “Balada de Bidonville” do José Barata Moura, e que se eu me tentasse levantar me atirava com a “Pedra Filosofal” do Manuel Freire.
No round seguinte – a ciência – encostei-a às cordas e levei-a ao tapete: as primeiras calculadoras de bolso começaram a ser fabricadas no Reino Unido, as primeiras cassetes foram comercializadas, a Philips lançou no mercado os videodiscos, foram fabricadas as primeiras fibras ópticas e começaram a efectuar-se os exames de Ressonância Magnética Nuclear. “Mas, mas, mas”, gemeu ela, “a varíola foi erradicada”. No desporto voltei a arrasar, tinha o Bobby Fischer, campeão do mundo de xadrez depois de vencer o soviético Boris Spassky, o Joaquim Agostinho, o Carlos Lopes (campeão nacional de corta-mato), a vitória em Wimbledon de Stan Smith e os Jogos Olímpicos de Munique, onde brilharam as sete medalhas de ouro do nadador Mark Spitz. Perante isto, baixou a bolinha: só tinha insignificâncias desportivas, como a vitória de Luis Ocaña na Volta à Espanha.
Por esta altura estávamos os dois esgotados, prestes a dar o último suspiro. Ela moribunda, de morte anunciada, quis acabar à grega: tragicamente. Atirou-me com um ciclone no Paquistão Oriental que matou 300 mil pessoas. Hoje sou um viúvo vitorioso mas nunca a esquecerei.
Sim. Agora percebo a ironia do "até que idades pensas divertir-te". Continuo é sem vos perceber. Estive a ver o Serendipity (o filme) todo, e fiquei na mesma. Costuma-se dizer que a vida inteira de um homem não é suficiente para perceber as mulheres. Com esta história das batatas cancerígenas, é já certo que eu não vou ser a excepção. Filipe
.
Desde que tive a infeliz ideia de me «autonomizar» e comprar casa, nunca mais comi as tradicionais batatas fritas. Quando quero batatas fritas, compro de pacote. Nos últimos três anos, experimentei praticamente todas as marcas existentes no mercado: as do Pingo Doce, as do Mini Preço, as da Avó Matilde e as Beach Crisps, sem esquecer as Lays com sabor a cozido. Hoje, quando saí do cinema, reparei que tinha oito chamadas não atendidas. Todas da minha mãe. Era para não comprar mais batatas de pacote: parece que são cancerígenas. Leio agora no site da agência Lusa a confirmação oficial: a «Associação de Defesa do Consumidor DECO alertou hoje para a presença de um elevado teor de um produto potencialmente cancerígeno, a acrilamida [só o nome assusta], em várias marcas de batatas fritas produzidas em Portugal.» Agora é tarde. Filipe
Ler Pode Reduzir o Fluxo de Sangue e Provocar Impotência
À semelhança do que acontece com os maços de tabaco, também os livros deveriam incluir na capa, em letras garrafais, aquele tipo de avisos fúnebres. Considero mesmo um escândalo que a União Europeia, o Governo e o Dr. Fernando Pádua não tenham ainda feito nada a esse respeito. É inaceitável que um poeta como Álvaro de Campos continue a afirmar, impunemente, coisas deste calibre: “E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.//Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los/E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./Sigo o fumo como uma rota própria,/E gozo, num momento sensitivo e competente,/A libertação de todos as especulações/E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar/mal-disposto.// Depois deito-me para trás a cadeira/E continuo fumando./Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando”. Ora, a Assírio & Alvim, que detém o exclusivo da obra do poeta, deveria ser legalmente obrigada a incluir, nas capas, nas contracapas e nas badanas dos livros de Álvaro de Campos avisos como “FUMAR MATA”; “Fumar provoca o cancro pulmonar mortal”; “Para o ajudar a deixar de fumar, consulte o seu médico ou contacte o seu farmacêutico”; ou “Os fumadores morrem prematuramente”. Aliás, grande parte da obra do engenheiro algarvio é um convite explícito ao consumo de cigarros, pelo que certos versos deveriam ainda remeter esses avisos para notas de roda-pé:
1) “acendo o cigarro para adiar a viagem” e “na gare, de cigarro aceso”[1];
2) “Nunca fiz mais do que fumar a vida”[2];
3) “Sabe-me a náusea próxima o cigarro”[3].
As editoras deveriam também ser obrigadas a introduzir outro tipo de informações. Por exemplo, em todos os livros deveriam constar aviso como: “Este produto foi submetido a um rigoroso controlo de qualidade realizado em laboratórios independentes. Se não estiver totalmente satisfeito devolveremos a totalidade do seu valor”; ou “Qualquer sensação de irritação ou ardor durante a leitura indica que o seu cérebro está particularmente sensível. Se tal acontecer, remova o livro adundantemente com água. Se a sensação persistir, procure aconselhamento médico”.
[1] FUMAR PREJUDICA GRAVEMENTE A SUA SAÚDE E A DOS QUE O RODEIAM!
[2] FUMAR PODE PREJUDICAR MORTE LENTA E DOLOROSA!
[3] O FUMO CONTÉM BENZENO, NITROSAMINAS, FORMALDEÍDO E CIANETO DE HIDROGÉNIO!
O Natal é fértil em comédias românticas. Não sei se não será mesmo uma comédia romântica. Para celebrar a época, a RTP passou o Serendipity. É mais um daqueles casos em que o livro é melhor que o blogue e o blogue melhor que o filme. Filipe
A Revolução Francesa não foi uma coisa mas muitas coisas, embora tenha sido sobretudo uma competição para determinar que coisa exactamente a Revolução foi. (Ken Alder)
Rui
(O : Ilhas, um dos mais inquietos blogs açorianos, publicou um livro que reúne alguns dos seus melhores posts. Ergo uma caneca a partir desta esplanada e reproduzo o texto que o jornalista Nuno Mendes, também ele bloguista, leu durante o lançamento)
texto da apresentação do livro:ilhas
Nuno Mendes
Por norma sou uma pessoa impulsiva. Falo primeiro e penso depois, o que nem sempre é uma qualidade. Foi por isso que só me arrependi ter dito sim depois de ter desligado o telefone de ter dito "Sim" quando o Alexandre me telefonou a convidar para apresentar o livro do Ilhas.
Como é que se apresenta o livro de um blogue escrito por pessoas que, na maioria, só conheci por causa do próprio blogue? Se eles fossem o Barnabé das ilhas era fácil. Chegava aqui. Dizia qualquer coisa contra a globalização, o Bush e a Coligação e recebia as palmas. Ficávamos todos contentes. Mas.. tem o João Nuno. Já não se pode falar dos barnabés. Falar em Barnabés com a presença do João Nuno deixa de fazer sentido.
O Ilhas tem essa vantagem... mostra que um blogue não precisa ser um conjunto de barnabés e acidentais em gritaria constante como se vivêssemos outra vez no período da Guerra Fria, agora numa versão actualizada com comentadores como beligerantes. É por isso que eu gosto do blog Ilhas, e agora da sua versão em papel (que me fez relembrar, durante a leitura, muitas discussões antigas). Todos diferentes, todos com direito à opinião... De discussão civilizada e elevada.
Ao longo deste ano falou-se de tudo no Ilhas: da guerra, da "política cultural" das ilhas, dos concertos da Câmara Municipal de Ponta Delgada e da campanha para as regionais. Mas. não foi só disso que se falou. Também se falou dos barbecues espalhados pelas estradas, de amores e desamores, livros, confissões sobre sentimentos próprios em dia de aniversário.
Enfim, só posso mesmo dizer mais uma coisa, e espero que o entendam como um elogio: pegando numa velha discussão blogosférica que me fez andar a rir uns dias deixo-vos que uma pergunta: não será o Ilhas uma forma de ser sofisticado nos Açores. Eu acho que sim. Nuno
Foi com surpresa que descobri este fim-de-semana que as raparigas levam a lição kantiana das categorias a priori do entendimento humano um pequeno (para elas) passo em frente. Fazem-no generalizadamente, como tantas outras coisas que fazem - também - generalizadamente e que um rapaz desconhece por completo (estou a lembrar-me que, na adolescência, tiram fotografias artísticas aos pés ). E fazem-no através do seguinte exercício: um rapaz, é requerido um rapaz; uma vez avistado o rapaz (um qualquer), são capazes de classificá-lo, de imediato, inequivocamente e sem erro, num das seguintes duas categorias: «slip» ou «shorts». Sem erro? Perguntei eu, pateticamente. Rui
O Filipe está em grande lá para a política; o Nuno a mudar fraldas e o quê e a escrever umas crónicas do melhor, infelizmente para a concorrência (piadola: A Capital está viva em Portugal...etc.); o João Pedro está com medo (ele diz que está sem net, mas tá mas é com medo) e o Alexandre disse que ia só ali, «ai eu vou só ali comprar tabaco» disse o gajo - e nunca mais voltou. Fiquei aqui eu a falar sozinho e a ver miúdas giras a passar na rua.
Nas casas de meninas não é exactamente para ter sexo que se paga; paga-se para não ser rejeitado. Não é necessário que concordemos com a ideia de que, neste mundo, o sexo se paga sempre, de uma forma ou de outra, para estarmos de acordo que só na casa de meninas se pode pagar para não ser rejeitado, para não levar tampa. É, pois, isso que ali está à venda, auto-estima. E, a julgar pela imperial, os preços andam pela hora da morte. Rui
My conscience has it stripped down to a science, why does everything displease me still I'm trying…
And it's so very hard to ask for a part in your Christmas…I find getting in is easy when your friends with Jesus…
He's coming inside me without reason as I sit here waiting for his signal
And I ask of the Lord to spare me his sword of forgiveness cause it's so very hard to ask for a part in your Christmas with Jesus.
[Josh Rouse, «Christmas with Jesus», Under Cold Blue Stars, 2003
Rui
Com sinceridade, já nem falo do nome («Já experimentou o novo Citroen AXN 16 válvulas?»), mas é esquisito um canal que dá séries e filmes americanos intercalados por documentários de desportos radicais, normalmente surf ou escalada, só que aparentemente sempre no País Basco. Pode o fiel seguidor do magnífico «West Wing» querer, inopinadamente, saber como se conquistam os Picos da Europa, antes de ver o sangrento e científico CSI, para, mesmo antes de deitar, ficar a saber uma ou duas coisas sobre o campeonato da Europa de escalada artificial organizado pelo município de Arwen, na Holanda. Rui
After a certain age every artist works with injury
Things are never what they seem
Play a part most of the time.
What is yours cannot be mine
And I’m bored by dreams.
Bored by dreams.
I can’t say the words I mean
Make myself go through the line.
Does the payment fit the crime
If I’m bored by dreams?
Take me through the steps my love,
Shall we dance again?
I was always older then,
Now we are the same.
Lasse des rêves.
Ríve qui brille dans le noir
Brillera bien, tu peux le croire.
Toujours dire la vérité
Quand je suis lasse des rêves.
Take me through the steps, my love,
Shall we dance again?
Things were always brighter then,
Hear me call your name.
After a certain age
Every artist
Works with injury.
Take me through the steps my love,
Shall we dance again?
I was always older then,
Now we are the same.
[Marianne Faithfull, «Bored by Dreams», A Secret Life, 1995]
Rui
O indivíduo pacato, habituado a tomar a sua bica e o seu copo de água morna, sempre à mesma hora e sempre naquela mesma mesa, vê-se nesta época sem saber o que fazer. Sente-se desnorteado e desorientado num universo de pessoas que abrem caminho com os cotovelos, pisam os pés uns aos outros, as senhoras empoleiradas nuns saltos altos finos e delicados, os cavalheiros com os bicos dos sapatos arrebitados, queria cem gramas disto, uma dúzia daquilo, embrulhe-me meia dúzia daqueles... Balcões, montras, vitrinas, tudo fica atravancado de tabuleiros e bandejas com rabanadas, filhós, fatias douradas, suspiros... Mas o pior, o pior mesmo são os sonhos. Os portugueses, maníacos do trocadilho, vêem nos sonhos, umas bolas amarfanhadas e oleosas, feitas de farinha e ovo, cobertas de açúcar e canela, o pretexto ideal para dar asas à sua extraordinária apetência para o gracejo e para a chalaça. Se o empregado da pastelaria pergunta ao cliente se ele vai desejar sonhos, a resposta, invariavelmente, sai em tom de gracinha, de piadola: "sonhos? eu sonhar só se for com o euromilhões". Se o cliente pergunta "esses sonhos são de hoje?", a resposta do empregado não andará muito longe de "acabaram agora mesmo de sair da cama". Há aqueles que, perante um convidativo "olhe que os sonhos estão uma delícia", respondem "ainda por cima húmidos, como eu gosto!". Ou os mais cultos, que respondem "então dê-me lá um, que pelo sonho é que vamos" ou "dê-me aí um sonho, que a vida é sonho!". Ou também: "dê-me aí mais um sonho, que eles não sabem que o sonho... como é que dizia o outro?" Há ainda o cliente que, reparando numa atravessa apinhada, exclama: "que sonhos tão grandes!", ao que o empregado replica, como num fado à desgarrada: "são para sonhar alto!"
Por tudo isto, porque ir ao café para ler o jornal ou ficar simplesmente a olhar para o tecto se revela, nesta altura do ano, um verdadeiro pesadelo, declaro desde já: NÃO AO SONHO!
O Alexandre, o filme (não o Borges), é uma grandessíssima seca. E isto bastaria. Contudo, fica só uma coisa a sobre o propalado tratamento correcto da relação homossexual de Alexandre com Hefaísto que contrastaria com a malévola e laboriosa ocultação da relação entre Aquiles e o primo, Práctolo: por que raio hão-de os macedónios de séculos e séculos antes de Cristo ter um ar e um comportamento amaricado? Que eles têm um ar amaricado no filme é indesmentível. Jared Leto de pijama de seda e eye-liner, é assim que nascem certos posters de culto. Colin Farrel parece que tem uma gemada na cabeça. Parece, não: tem mesmo. Quer dizer, a categoria «ar amaricado» ou «sissy» é nossa, de agora, eles não poderiam nunca ver as coisas desse modo, nem ter de si próprios essa imagem, nem comportar-se assim. A noção de «maricas» não existia, logo eles não podem, com realismo, ser apresentados com esse arzinho. Era como se o Cassandro (o belo Rhys-Meyers também dá o mesmo arzinho da sua graça) se afirmasse ecologista em pleno Afeganistão ou o Parménio pós-estruturalista, às voltas no Iraque. «Ecologista», «Afeganistão», «pós-estruturalista» e «Iraque» são tudo coisas depois de Cristo. Chama-se a isto anacronismo, e é trágico e entediante. E o tédio, como dizia o outro, é sempre contra-revolucionário. A não ser que se pegue de propósito no anacronismo para fazer sátira genial, como, em A Vida de Brian, a cena do The People’s Front of Judea, por exemplo. Não é o caso. Rui
Ontem à tarde, passei em Belém pela gigantesca árvore de Natal. Devo dizer que não acho mal nenhum que se ilumine aquilo que temos de maior na Europa. Defendo, por isso, que, já agora, se ilumine também o défice. Nuno
Rodrigo,
e se eu dissesse que os teus posts são uma balbúrdia, retraços de ciência apanhados a dente, mal mascados, fruto de um cérebro atrapalhado como armazém de adeleiro, golfos de bolo não desmoído, coisas apocalípticas, muito desatadas, em prosa deslavada, derreada, enxarciada de galicismos, caótica, apontoado enxacoco de retalhinhos apanhados à toa numa canastra de apontamentos baralhados e atirados ao prelo se calhar não te chateavas nada, hom’essa, e até achavas piada ao facto de ter ido buscar o Camilo a bater no Teófilo para reinar amigavelmente contigo. Ou chateavas-te? Não, lá está, porque suspeitavas que era uma coisinha bem escrita e criativa e, quiçá, montes de impecável. E sei bem que se te acusasse de escreveres com offenbachiana parlapatice majestosa seguramente me convidarias logo para jogar futebol de cinco com a malta nos Corochéus à terça à noite. Mas, repara, ainda que te irritasses, eu não teria sequer aproximado aquilo que a Mónica fez: um ataque pessoal, pouco ético, e nada estético. A não ser que discordes disto, e então – pá – Deus nos livre de seres em política como és em estética. Rui
Maria Filomena Mónica publicou hoje um artigo lamentável e contraproducente. Lamentável porque não passa de um ataque foleiro e ad hominem; contraproducente porque faz Boaventura Sousa Santos parecer bom, cordato, justo e, se mantiver o silêncio, sábio. Antipatizo bastante com o senhor, pelas mesmas razões e com a mesma intensidade que antipatizo pessoalmente com Saramago ou Fernando Rosas. Contudo, não faço confusões: é útil e pertinente a crítica tanto ao trabalho científico, como à conduta académica de Boaventura – mas não assim. O ataque de Mónica é, ironicamente, o melhor exemplo daquilo que ela própria visa criticar. Já é mau e incompreensível que o artigo saia no suplemento Mil Folhas, agora que o faça, ainda por cima, já de forma hilariante e absurda, na secção «Poesia» torna a senhora editora cúmplice nesta lamentável montaria. Tal como é inaceitável - por desonesto - que Mónica use a má poesia de Boaventura para ajuizar da sua qualidade académica ou pedagógica (tarefa, aliás, que não chega a cumprir), é igualmente inaceitável que o dito ataque pessoal seja publicado na secção de poesia de um suplemento literário. Poesia? Nada ali é sobre poesia, ou sobre livros ou sobre literatura. Ali, está alguém a escarrar para cima de alguém, e ainda por cima à má-fila, o que, mais do que pouco ético, é pouco estético. É feio e deprimente. Rui