Este Natal ofereceram-me este livro,
1972: O Ano Em Que Eu Nasci, da editora Ausência. Informam-me na capa que aí vou encontrar “todos os dados e aspectos relevantes que se passaram durante o ano em que eu nasci”, em áreas que vão da meteorologia à sociedade, passando pela cultura, espectáculos, ciência, desporto, etc. Pior, pior foi terem oferecido à minha namorada este outro livro,
1970: O Ano Em Que Eu Nasci. Resultado, passámos os dois o final da noite de 24 à bulha. A discutir quem tinha nascido no melhor ano, 1970 ou 1972? Primeiro, os famosos que nasceram nesses anos. Ela mandou-me à cara o Michael Schumacher. Eu, para grande raiva minha, ripostei com o Pedro Lamy. Tentei neutralizá-la com a Catarina Furtado, mas ela tinha na manga a Claudia Schiffer. Só o meu Luís Figo conseguiu esmagar-lhe o Paulo Sousa. Nas mortes sonantes, ela vangloriou-se com Almada Negreiros, Bertrand Russel, Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Charles de Gaulle e... António Oliveira Salazar. Eu, mais uma vez, senti-me inferiorizado. Em 1972 limitaram-se a morrer Maurice Chevalier e uns tipos estranhíssimos, como o Andrei Tupolev, um engenheiro soviético, e Max Fleischer, o criador de Popeye. A coisa começava a ficar preta para o meu lado. Estava a levar uma abada.
Nos acontecimentos nacionais ela sentiu-se humilhada com a Operação Nó Górdio, do generalíssimo Kaúlza de Arriaga. Eu tinha os quinze camiões do exército que foram destruídos pelas Brigadas Revolucionárias. Nos êxitos da televisão eu atirei-lhe com o António Vitorino d’Almeida e o seu “Histórias da Música”. Mas ela arrumou-me com o Festival da Canção e com a música “Onde Vais Rio que eu Canto”, do grande Sérgio Borges. Nos acontecimentos internacionais não lhe dei hipóteses: a 30 de Janeiro o
Sunday Bloody Sunday, a 6 de Setembro o ataque palestiniano em Munique à delegação israelita presente nos Jogos Olímpicos, a detenção dos terroristas Baader-Meinhof e o escândalo do Watergate. Ela só tinha, para contrapor, a eleição de Salvador Allende e o “Setembro Negro” de confrontos entre refugiados palestinianos e forças militares jordanas. Na sociedade dei-lhe um baile: a morte do Duque de Windsor, o monarca que renunciou ao trono pelo amor de uma divorciada; o húngaro tresloucado que danificou à martelada a famosa “Pietá”, de Miguel Ângelo, enquanto gritava: “Eu sou Jesus Cristo”; e a tragédia nos Andes, em que um grupo de sobreviventes de um acidente de avião come os companheiros de viagem. Ela assumiu a derrota com a aprovação em França do uso obrigatório do cinto de segurança nos assentos dianteiros dos automóveis.
Nas novidades literárias verificou-se um empate técnico. No meu ano estrearam livros como
As palavras, que pena (Yvette Centeno),
Os Clandestinos (Fernando Namora),
Poesia H (Fiama Hasse Pais Brandão),
A Mosca Iluminada (Natália Correia) e
Visão-Vision (Ernesto de Melo e Castro). No ano dela, mais do mesmo:
Um Sino na Montanha (Fernando Namora),
As Maçãs de Orestes (Natália Correia),
(Este) Rosto (Fiama Hasse Pais Brandão) e
Os Outros Legítimos Superiores (Maria Isabel Barreno). No cinema arrasei com
O Padrinho,
O Último Tango em Paris,
Tout Va Bien (Godard) e
O Charme Discreto da Burguesia (Bunuel). Ela ainda balbuciou um Bertolucci (
A Estratégia da Aranha) e tentou ludibriar-me com o
Cowboy da Meia-Noite. Em termos de êxitos musicais eu tinha para apresentar “Que Força É Essa” (Sérgio Godinho), “Canto no Deserto” (um single de Fernando Tordo), “Riders on the Storm” (The Doors), “Harvest” (Neil Young) e “Smoke on the Water” (Deep Purple). Ela disse que lhe bastava, para me pôr K.O., a “Balada de Bidonville” do José Barata Moura, e que se eu me tentasse levantar me atirava com a “Pedra Filosofal” do Manuel Freire.
No
round seguinte – a ciência – encostei-a às cordas e levei-a ao tapete: as primeiras calculadoras de bolso começaram a ser fabricadas no Reino Unido, as primeiras cassetes foram comercializadas, a Philips lançou no mercado os videodiscos, foram fabricadas as primeiras fibras ópticas e começaram a efectuar-se os exames de Ressonância Magnética Nuclear. “Mas, mas, mas”, gemeu ela, “a varíola foi erradicada”. No desporto voltei a arrasar, tinha o Bobby Fischer, campeão do mundo de xadrez depois de vencer o soviético Boris Spassky, o Joaquim Agostinho, o Carlos Lopes (campeão nacional de corta-mato), a vitória em Wimbledon de Stan Smith e os Jogos Olímpicos de Munique, onde brilharam as sete medalhas de ouro do nadador Mark Spitz. Perante isto, baixou a bolinha: só tinha insignificâncias desportivas, como a vitória de Luis Ocaña na Volta à Espanha.
Por esta altura estávamos os dois esgotados, prestes a dar o último suspiro. Ela moribunda, de morte anunciada, quis acabar à grega: tragicamente. Atirou-me com um ciclone no Paquistão Oriental que matou 300 mil pessoas. Hoje sou um viúvo vitorioso mas nunca a esquecerei.
João Pedro