O indivíduo pacato, habituado a tomar a sua bica e o seu copo de água morna, sempre à mesma hora e sempre naquela mesma mesa, vê-se nesta época sem saber o que fazer. Sente-se desnorteado e desorientado num universo de pessoas que abrem caminho com os cotovelos, pisam os pés uns aos outros, as senhoras empoleiradas nuns saltos altos finos e delicados, os cavalheiros com os bicos dos sapatos arrebitados, queria cem gramas disto, uma dúzia daquilo, embrulhe-me meia dúzia daqueles... Balcões, montras, vitrinas, tudo fica atravancado de tabuleiros e bandejas com rabanadas, filhós, fatias douradas, suspiros... Mas o pior, o pior mesmo são os sonhos. Os portugueses, maníacos do trocadilho, vêem nos sonhos, umas bolas amarfanhadas e oleosas, feitas de farinha e ovo, cobertas de açúcar e canela, o pretexto ideal para dar asas à sua extraordinária apetência para o gracejo e para a chalaça. Se o empregado da pastelaria pergunta ao cliente se ele vai desejar sonhos, a resposta, invariavelmente, sai em tom de gracinha, de piadola: "sonhos? eu sonhar só se for com o euromilhões". Se o cliente pergunta "esses sonhos são de hoje?", a resposta do empregado não andará muito longe de "acabaram agora mesmo de sair da cama". Há aqueles que, perante um convidativo "olhe que os sonhos estão uma delícia", respondem "ainda por cima húmidos, como eu gosto!". Ou os mais cultos, que respondem "então dê-me lá um, que pelo sonho é que vamos" ou "dê-me aí um sonho, que a vida é sonho!". Ou também: "dê-me aí mais um sonho, que eles não sabem que o sonho... como é que dizia o outro?" Há ainda o cliente que, reparando numa atravessa apinhada, exclama: "que sonhos tão grandes!", ao que o empregado replica, como num fado à desgarrada: "são para sonhar alto!"
Por tudo isto, porque ir ao café para ler o jornal ou ficar simplesmente a olhar para o tecto se revela, nesta altura do ano, um verdadeiro pesadelo, declaro desde já: NÃO AO SONHO!
João Pedro