Lisboa, a cidade-Estado (por já estar farto de receber mails sobre ninharias)
Os problemas da Câmara Municipal de Lisboa não são comparáveis com os «casos» que envolvem outras autarquias. E isto por Lisboa ser maior, mais complexa, mais significativa a nível nacional. Lisboa é um verdadeiro governo regional, no qual a cidade propriamente dita não pode ser pensada e gerida sem se considerar a área metropolitana na qual se integra e que, no seu conjunto, influencia todo o país. Para utilizar uma noção da história política antiga, Lisboa é uma polis, uma cidade-Estado – a única em Portugal. Os problemas da cidade estão hoje menos identificados que os da Câmara, o que revela bem o grau em que a autarquia pesa sobre a cidade em vez de a servir. Se o défice da CML, as lutas intestinas de PSD, PS e CDS/PP, e a oposição quanto pior melhor de PCP e BE são reconhecidos como problemas que afectam o funcionamento da Câmara, os problemas da cidade são cada vez mais relegados para segundo plano, obscurecidos pelas notícias sobre a luta partidária. Ora esta situação só pode condenar qualquer futuro executivo, pois como o actual bem demonstra, qualquer governo de Lisboa requer um pensamento sobre a relevância nacional da cidade – e quando ele falta, falta tudo. Daí que a ideia de uma lista de independentes apoiada por partidos apenas transferiria os actuais problemas para o vácuo, dado só os partidos serem forças políticas nacionais. (E, claro está, o equivoco político dos independentes, criado por Guterres e ainda parcialmente recuperado por Sócrates, vê-se bem aqui: independente é quem não depende de uma força política, por ter vontade e meios próprios; quem, como Carmona, não os tem, é totalmente dependente; lista de independentes apoiada pelos partidos seria apenas a multiplicação dos Carmonas, passe a expressão.) Os problemas de Lisboa são em muito os problemas do país, e a estrutura da CML, a nível directivo e administrativo, reflecte isso mesmo ao ser um verdadeiro governo. Se o PS – Lisboa pretende liderar a política camarária com sucesso tem de fazer mais do que se pacificar e encontrar um candidato credível. Tem de ser capaz de estar à altura dos problemas nacionais que Lisboa exemplifica, isto é, tem de ser capaz de se organizar e de se apresentar como sede própria de política locais, necessariamente, mas com um alcance e uma relevância nacionais que a direcção do PS tenha de ter em conta na hora de tomar decisões, ao contrário do que sucede actualmente. E a situação actual, como se sabe, está ligada à candidatura Carrilho, um fracasso anunciado à partida apoiado pela direcção nacional. Se o choque tecnológico tem algum sentido, tê-lo-á forçosamente na região mais competitiva e dinâmica de Portugal, a sua capital. Se a criação de emprego é uma política nacional, então nela Lisboa é essencial, desde logo pelo peso demográfico da sua área metropolitana. Se a Justiça e a Administração Interna, o Turismo e as Obras Públicas, a mobilidade geográfica e a flexibilidade profissional são questões nacionais, em Lisboa, com a sua dimensão e complexidade únicas em Portugal, elas têm de ser pensadas e trabalhadas originalmente. Está o PS – Lisboa à espera de ordens para isso ou lança as suas próprias iniciativas? Até agora, as que promoveu desapareceram perante a imagem de oposição mais firme do BE e a chuva de casos na CML. Por isso, há que fazer mais e melhor. Lisboa pode ser gerida em articulação estreita com as políticas governamentais (contenção orçamental, reforma administrativa, qualificação de pessoal e de equipamentos) e, em simultâneo, fazer valer a nível nacional a sua condição única de grande metrópole do país: na normalização das obras públicas e do urbanismo, na promoção de turismo de qualidade, no apoio a iniciativas empresariais que reestruturem a relação investigação/produção a nível mais do que local, na definição de políticas de integração de imigrantes, etc., etc. No actual momento político, o PSD e o CDS estão perdidos em lutas internas; o PCP e o BE necessitam opor-se ao governo a qualquer custo para se legitimar a nível nacional, e tanto pior para Lisboa. Sobra o PS. Resta saber se a estrutura partidária de Lisboa vai continuar a ser ultrapassada pelos acontecimentos ou se adquire capacidade para influenciar as políticas nacionais do Partido Socialista. Por direito próprio e não por acertos de bastidores, claro.
Carlos Leone (militante do PS – Lisboa, secção da Ajuda)
O post do mês passado teve o condão de fazer multiplicar as várias famílias. Claro que o desafio nele ficou por responder, mas ainda assim obrigado a todas. Entre elas, Ana Cristina Leonardo ‘respondeu-lhe’ como se se tratasse de um ‘call for papers’, que não era. Em todo o caso, o artigo que enviou, e que não lhe publicaram depois de lho terem encomendado, alegando falta de espaço, aqui fica. Não por concordar com ele em tudo, nem por acreditar que será o referendo a resolver o que quer que seja por si só. Mas por saber por experiência própria que a falta de espaço que não afecta as prosas inanes de taradinhos conservadores ou radicais não é de hoje. Já em 1998 era assim. (Nem de propósito: o final da colaboração de Mário Mesquita no Público, em termos relatados pelo próprio ontem – e que decerto irão merecer a atenção do sempre atento Provedor –, revela bem o que são os critérios editoriais e as boas práticas na Imprensa dita de referência; tal como no Expresso, os membros do Clube de Esquerda Liberal revelam a sua exemplar contribuição para a vida pública portuguesa, apesar das perseguições políticas que, coitados, sofrem.) Só uma nota: este é um caso excepcional, não estamos à procura de mais gente para aqui escrever em nosso lugar (aliás, no caso do referendo, o que importa é votar, não escrever). E aproveito para lembrar que em 2006, muito antes das enormidades, aleivosias e piadolas sobre o referendo se multiplicarem, já o tema tinha sido aqui comentado, em mais do que um post, sempre em relação com temas que ainda não chegaram ao ‘debate’ a que agora mais uma vez assistimos (posts sobre investigação em células estaminais, embriões congelados, etc.; tudo assuntos para mais discussões em breve, como já aconteceu em Espanha). Observei isto mesmo ao Daniel Melo, que fez uma lista de blogs pelo Sim no Fuga para a Vitória, só que de facto não foi ele o único a esquecer-se. Mas isto já nem é para o post de Janeiro que remete, é para o de Dezembro, por isso adiante. Aqui fica o artigo de Ana Cristina Leonardo.
Aborto, uma polémica de sempre Portugal reinicia uma discussão onde parece continuar a haver demasiado «ruído». Ou como alguns temas nos recordam os limites da razão humana. «Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo. Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida. Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio. É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do áápadre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): «ááA gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)» (João Paulo II, Enc.Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda: «Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que "quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae", isto é, automática» (ááidem, n. 62). Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa – e essa é uma posição legítima embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo – a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia. O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em «Argumentos sobre o Aborto» (www.criticanarede.com) acrescenta: «(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas». Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto dos cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o Estado deva disponibilizar um serviço grátis de gangsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim, não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível. Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: «Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina» (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da «caça às bruxas», que vai do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas. Com o cristianismo a impor-se como religião do Estado, o aborto ganhará o estatuto de «crime abominável», um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: «não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo», sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80. A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção… Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga. A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um «homunculus», (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese – hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente – foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte. Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima «celebrar a vida», esclarecendo que o movimento a que pertence está empenhado em dotar a sua campanha de «dados científicos», procurando utilizar uma «linguagem moderada e esclarecedora». Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao Estado e ao Direito legislar sobre o tema. Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram «a invenção da maternidade», ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de Estado. A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: «Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão». Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto - Causas e Soluções, Campo das Letras,1997). O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes. A grande alteração ao estado das coisas – tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado «crime contra o Estado» e sujeito à pena capital – ficará tristemente célebre o caso de ááMarie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas)áá – dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo «direito das mulheres ao seu próprio corpo». E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005). A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do Direito, o que estava então em causa não dizia respeito «ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não ser uma pessoa do ponto de vista constitucional» (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da insistência de George W. Bush em atribuir personalidade jurídica ao feto. As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do Direito ou da Saúde Pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete. O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo? O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o Estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do «direito ao corpo», independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a Natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade. Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto. Ana Cristina Leonardo
Talvez à média de uma por semana, são já várias as mensagens para a caixa do Esplanar ou para a minha que perguntam/exigem que também aqui ocorra a retoma. As respostas têm seguido directamente, mas para economizar tempo e prevenir repetições, convém explicar algumas coisas. O Esplanar tem dois nomes. O João Pedro, por motivos que me explicou e que eu compreendo (e mais não digo porque ele escolheu não o fazer), deixou de escrever. Eu nunca quis um blog, e se continuasse a escrever fá-lo-ia noutro, de raiz. Sem o João Pedro o Esplanar não faz sentido e, quanto a mim, agora que passou a circunstância que nos juntou aqui, não sinto falta de blogs. Até porque, como disse antes de escrever no Esplanar e mantive durante, a blogoesfera é acima de tudo prolongamento de um espaço mediático cada vez menos público. O público assim o quer, e nem sequer a menção a públicos diferenciados me parece ainda relevante para diferenciar ‘nichos’. E o cansaço faz o resto. Nem eu nem o João Pedro damos importância ao caso para decretar o fim de actividades – nem prometemos não voltar, bem entendido. Dito isto, fico sempre surpreso, pela positiva, quando chegam as perguntas/desafios. E como tenho notado que, sejam elas de cá ou do Brasil, costumam ser de leitores que também escrevem (profissionalmente ou não, pouco importa), devolvo o convite. Sem um único órgão de comunicação em Português que me apeteça seguir diariamente, por que não fazer um jornal num blog? Levar o modelo do 5Dias até algo novo, talvez com sete pessoas a escrever, todas, diariamente (uma média de dois posts cada, digamos). Todos teriam de tocar vários instrumentos (política, cultura, desporto, etc.), sem repetir o mainstream nem praticar o jogo das citações e salamaleques cruzados. Perder tempo com canalhas ou anónimos nem vale a pena referir, espero. Só factos e argumentos. 14 posts por dia assim valiam mais do que qualquer dos nossos jornais, não vos parece? Para quem sente a falta do Esplanar aqui fica o desafio. Falo por mim, não pelo João Pedro, mas comprometo-me: se se juntarem seis, não deixarei se ser o sétimo. Repito que continuo a não esperar milagres de qualquer meio, electrónico ou outro, nem a alimentar expectativas a respeito do interesse do público ou do mercado em algo como o que descrevo, por isso ando (como nunca deixei de fazer) a exercitar-me noutros formatos e línguas. Mas como gosto das vossas notícias, aqui fica mais este post. E obrigado. CL
Há silêncios diferentes uns dos outros. Quase sempre desistências, nem isso os aproxima. Dois grupos, facilmente separáveis: os que calam por conveniência e os que calam por desinteresse. No primeiro, e para não sair de Portugal (mesmo visto à distância), os que perguntavam pelo MIT; os que explicavam o génio de destruir Arafat e inventar a democracia pelas armas no Médio Oriente; os que gritavam contra Israel e o ocidente mas não se interessam pela nova guerra civil no Líbano apesar (até por causa) da «força» da ONU; os que falam em censura na RTP mas não clamam pela intervenção de quem de direito; os que percebiam imenso de futebol em Agosto e Setembro; os que não perdem tempo a saudar a «crítica» anónima ordinária até perceberem que não estão a gabar quem pensam; etc., etc. Precisam tanto do silêncio para continuar sempre na mesma, sempre a escrever mais depressa do que pensam, que até apagam as referências aos outros. Os outros escreveram a tempo. E não precisam de se repetir. Moral da história: quem precisa, cala-se, de preferência fazendo muito ruído para entreter e continuar. Quem não precisa, cala, por saber que em Portugal ter razão antes do tempo é o menos; não se pode é querer saber da razão, isso é insuportável para os que dispõem sempre da razão no tempo certo, o deles. Mas escreva sempre, Cláudia CL
Não gosto de misturar coisas tão diferentes como a Prelo e o Esplanar, mas já tinha dito que iria escrever sobre estes dois livros aqui e falta-me tempo para criar algo de raiz. Ficam amostras (anteriores à revisão de texto) do que está na revista. O primeiro foi mencionado várias vezes e, tal como as Obras de Aristóteles que o seu autor organiza na INCM, tem passado em silêncio, o que só comprova o que tenho escrito sobre crítica, moda e afins. «António Pedro Mesquita, O Pensamento Político Português no século XIX, INCM Lisboa, 2006, 570 pp. Este longo estudo de António Pedro Mesquita constitui a nosso ver o mais original e bem sucedido trabalho publicado nos últimos anos sobre o século XIX português. E dizemos século XIX por, apesar de o seu foco ser o pensamento político, nunca nele a política se encontrar reduzida a intrigas palacianas ou a uma romanesca sucessão de factos, ainda que tudo isso seja mencionado. Pelo contrário, como o autor começa por esclarecer (no Preâmbulo e em Parte I, capítulo 1) com este trabalho vemos suprida a carência até aqui apenas demasiado evidente de uma abordagem filosófica as correntes mais características do nosso século XIX (este livro revê e amplia o contributo de A. P. Mesquita para o quarto volume da História do pensamento Filosófico em Portugal, publicado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e pela Caminho). E por perspectiva filosófica entenda-se um estudo dos documentos em que as doutrinas e ideologias do período se encontram, remetendo a informação biográfica para uma função ancilar e evitando exibir simpatias e antipatias estranhas por definição ao trabalho da análise (o que não impede, bem pelo contrário, que a escrita sempre formal e contida de A. P. Mesquita seja pontuada por notas de humor e comparações com outros dados da história portuguesa, sobretudo recente). A falta que esta análise faz à historiografia portuguesa é, ou deveria ser, evidente. Sem ela, termos como «liberalismo», «reacção» ou «republicanismo», tão frequentes nos estudos sobre este período carecem de sentido, e, como escreve o autor limitam-se a transpor para a realidade portuguesa conceitos que nela não iluminam antes confundem. Sem surpresa, António Pedro Mesquita entende ser preciso começar o seu percurso com uma breve (para as dimensões do livro) referência ao pensamento político do século XVIII português (citando o estudo de José Esteves Pereira, também na INCM, O Pensamento Político Português no século XVIII), para melhor enquadrar o leitor mais desatento na realidade da modernidade portuguesa. Esta é singularmente problemática o que se encontra bem nítido no cariz simultaneamente iluminista e autoritário da acção política do Marquês de Pombal, dando aliás origem a uma relação problemática dos liberais do século XIX com o grande reformista do século anterior. E «os liberais», aqui, são realmente vários: a primeira parte do livro intitula-se literalmente «Os Liberalismos» por distinguir sistematicamente (um termo muito adequado à escrita bem organizada e clara do autor) o liberalismo entre «reformismo» e «democratismo», ambos liberais mas com uma série de divergências relevantes o suficiente para o primeiro se perder com a passagem do século e o segundo evoluir para o republicanismo que, juntamente com o socialismo (este, na verdade, outro plural), constitui o tema da terceira parte do volume. Pelo meio, a segunda parte dedicada à «contra-revolução» não constitui tanto um estudo de uma alternativa a estas correntes pós-revolucionárias como a documentação da falta de tal alternativa, deixando bem documentado o mero conservadorismo sem soluções dos seus proponentes. Ora tudo isto contribui para instalar em pleno século XIX uma «questão política», no sentido amplo e não especializado do termo, já bem conhecida dos estudiosos do século XX e, igualmente, dos séculos XVII e XVIII: a da modernidade portuguesa como experiência cultural em contraste com a da generalidade da Europa (e a Europa das Luzes bem o percebeu). Noções como liberalismo, contra-revolução ou socialismo reportam a uma experiência social (política, portanto, num sentido maior do que o da ciência política) complexa que em Portugal só muito parcial, deficitária e tardiamente se produziu. Pelo que, como António Pedro Mesquita sobriamente vai notando a respeito dos nossos liberais, reaccionários, socialistas, republicanos e anarquistas, os contributos teóricos (pois que é desses que a perspectiva filosófica se ocupa) dos autores portugueses para as doutrinas que defendem são quase sem excepção extremamente pobres. Para dar apenas um exemplo, em poucos lugares como neste livro palavras tão severas, mas tão equilibradas, sobre o pensamento político de Antero terão sido escritas sem intenção depreciativa. E se em Portugal o liberalismo fez o século XIX, como sucedeu na Europa ocidental em geral, isso não significa que o tenha feito do mesmo modo; pois criar instituições e leis não foi o bastante para suprir a falta da cultura liberal que na Europa se formou ao longo dos dois séculos anteriores (e, com ela, a classe média que ainda hoje nos falta), enquanto em Portugal a sociedade dual persistia incólume. O nó górdio da modernidade portuguesa encontra-se neste problema, cremos, e António Pedro Mesquita ilustra-o com felicidade ao dedicar aos liberalismos a parte de leão do seu trabalho. […]» Este, já o referi, em troca de galhardetes com o Eduardo Pitta, há mais tempo. «Francis Fukuyama, A Construção de Estados, Gradiva, Lisboa, 2006, 145 pp. Não deve haver melhor explicação para o discreto acolhimento entre nós desta boa tradução (de F. J. Azevedo Gonçalves) de um livro ainda recente (2004) de um dos mais influentes cientistas sociais e analistas políticos do mundo do que a sua pertinência. Em menos de 150 páginas não deve haver em Português melhor discussão, nem mais actualizada, do que esta sobre assuntos «quentes» já na teoria, já na prática política, como o Estado (tema da primeira parte do livro), a administração pública (tema da segunda parte) e o Direito internacional (terceira parte). E em meios pequenos e tendencialmente fechados, com reprodução de ideias simples como se fossem enormes novidades, um trabalho acessível, metódico e imparcial como este transtornaria muitas «caixinhas» fáceis de arrumar (a começar com a classificação do autor, tratado quer por detractores quer pelos restantes como se fosse apenas mais um «neocon», que nunca foi e com os quais, desde há três anos, decididamente rompeu). A primeira parte, «As dimensões perdidas do Estado» é um clarificador exercício de história e teoria da ciência política em torno de um dos seus temas maiores, a definição do âmbito das funções do Estado e a capacidade deste para as cumprir. Longe dos lugares comuns inconsequentes do Estado «máximo» ou «mínimo», Fukuyama nota como as diversas opções quanto ao âmbito das funções do Estado na sociedade são legítimas, sempre em função de procedimentos que cada vez mais são os democráticos liberais, mas salienta como é a capacidade do Estado para exercer competentemente as suas funções que define os bons regimes, «Estados fortes» (cf. p. ex., pp. 32/3). Fora, portanto, da gritaria sobre o neo- e o anti-liberalismo (sobre isto, ver em particular pp. 18/9), Fukuyama acentua a centralidade das instituições dentro da vida social, na linha do que já fizera em trabalhos anteriores (pelo menos desde Confiança, também traduzido pela Gradiva). A questão está contudo, em o conhecimento sobre boas instituições não ser facilmente transferível de uma sociedade para outra, variando mesmo consoante o tipo de instituição em causa. Além disso, mesmo uma boa instituição pode ficar sem procura social, o modelo económico do mercado não se aplica aqui sem muitas reservas. Daí que a segunda parte do livro, «Os Estados fracos e o buraco negro da administração pública» não se centre na pluralidade de formas de organização das instituições tanto no sector privado como no público, não permitir identificar uma única como óptima em detrimento das restantes. Os vários casos identificados pelo autor (Portugal não surge, mas Timor-Leste sim) são bem reveladores da necessidade de, em vez de reclamar mais ou menos Estado, se atender à cultura local, às instituições que nela actuam e, a partir desse trabalho, os modos de reformar as instituições que se revelem mais eficazes, sem pretender generalizar (e, igualmente, sem pretender importar modelos oriundos de tempos e culturas diferentes daquela em que se intervém). Este trabalho, como Fukuyama nota (p. ex., p. 57), opta por uma tradição sociológica (largamente weberiana, ainda que modificada) em detrimento da predominância da economia na teoria social durante as décadas de 1980 e 1990. Isto não é negar vaidade à Economia, mas privilegiar um entendimento dela diverso do da «ciência-raínha» cuja quantificação soluciona qualquer problema de modo automático (o diálogo com Hayek é sobre isto muito relevante). Reencontramos, de novo, temas já presentes noutros trabalho de Fukuyama, como a margem de «decisionismo» subsistente nas nossas democracias (cf. pp. 83/5), e toda a argumentação procede por salientar as diferentes ênfases que processos de reforma podem conhecer, que devem conhecer. […]» CL
«De entre as muitas modas literárias, destaco duas: a de se querer ser da nossa época e a de não se querer ser de época nenhuma. Ah! como são numerosos os livros marcados com este ferrete: o «querer ser»! Defesa dos falsos artistas, a vontade de ser isto ou aquilo serve para mascarar de intenções a pobreza da realização. «Nós queremos que a arte seja»; «nós não queremos que a arte seja, etc….» E por aí fora, dos manifestos anunciadores às obras, num sem fim de voluntarismos. Ora, querer ser é a melhor maneira de não chegar a ser.» (Adolfo Casais Monteiro, De Pés Fincados na Terra, p. 69). A Imprensa Nacional, nas Obras Completas de Adolfo Casais Monteiro, lança em Outubro De Pés Fincados na Terra. Um dos melhores livros de crítica literária alguma vez publicados entre nós, esgotado há décadas, do melhor crítico literário português do século XX (coisa diferente de se ser influente, conhecido ou reconhecido). Como escrevi o prefácio, que me honra mas que sai diminuído pela comparação com os textos de Casais, prefiro não me alongar. Estou certo que a crítica, jornalística, académica, especializada, etc., irá dar o devido destaque ao caso. Como é normal. CL
É curioso como o alegado aviso de «fonte» da PJ a Pinto da Costa sobre as desventuras do Apito mereceu tão poucas notícias (até uma multa ao autocarro do Sporting em Moscovo teve mais destaque). Também, se desse para mais, o sempre atento Público (órgão oficial do Pintismo) descobria logo mais um caso nessa outra grande instituição que é o Glorioso. Mas, tal como está, prefere «analisar» derrota do Porto em Londres culpando Adriaanse… Entre tantos outros casos, desde os treinadores que eram maus em Lisboa mas bons no Porto (Ivic, Robson) até aos argumentos imbatíveis contra Scolari («Baía é Baía e está tudo dito»), ocorre-me uma entrevista que o Público foi fazer a Espanha a um árbitro que, há anos, não marcou penalty a favor do Porto nuns mergulhos nas Antas em jogos europeus: «V. marca poucos penalties também em Espanha»; «acha poucos?»; «Não sei, não vi os jogos»; «Então…». E depois ainda falam mal dessa fonte de entretenimento que são os diários desportivos, pelos vistos foi preciso que o Record o admitisse para os leitores perceberem que qualquer semelhança com jornalismo é pura coincidência. Cada vez gosto mais de ser do Sporting, apesar de a equipa passar anos sem ganhar nada. CL
«Assim, para navegarmos para o futuro – no limiar em que nos achamos, defronte ao mar alto −, teremos de nos entregar à tarefa que o sonho é. Demasiado ricas em hermenêuticas redutoras, as épocas modernas esqueceram o método que facilita o acesso e o recurso à fantasia. Do sonho, as psicologias conservaram o meio de libertar as almas dos cuidados que as atulham – mas carregando-as do peso existencial de um passado que se resume em infâncias irremediáveis e em lutos indefinidos. No que toca ao devaneio (segundo a diferença clássica entre rêve e rêverie, a partir da definição de uma vigília estritamente oposta ao sono), as instituições sociais interessam-se apenas pela sua instabilidade e irresolução, que exploram, manipulando-as. O subconsciente, que é o estrato próprio do devaneio, está exposto à sedução dos esterótipos e a uma homogeneização das aspirações de que a publicidade, por exemplo, é um instrumento eficaz.» (Fernando Gil, Acentos, p. 327). Não concordo com tudo, mas é bom um repto aos blogs sobre psicologia. E para todos os outros também. CL
Pouco importa que, no original mozartiano, não constem os mesmos intervenientes que surgem na suprimida encenação de agora, ou que ela já tenha sido encenada em 2003. Do que se trata é da crise do liberalismo, tal como foi aqui discutido no Verão: não apenas, nem sobretudo, como doutrina política ou económica, não estritamente como conjunto de instituições sociais específicas, mas como cultura progressista e emancipatória da sociedade civil, livre de interferência de outros poderes. Depois de décadas de cedências, transformando a luta activa pela tolerância num tolerantismo informe, sempre em nome do «respeito» que falta a quem faz ameaças (católicos, muçulmanos, hindus, etc.), a Europa liberal da qual só marginal e deficientemente fazemos parte encolhe-se agora perante ameaças anónimas. Não é tão distante de nós como pode parecer, agora que a Igreja oficialmente faz a apologia dos Direitos Humanos, a despropósito, enquanto apela aos leigos para fazerem o resto do trabalho, como já aqui se referiu (no post «A seguir», de 30 de Agosto)... Estranho é ver quem gosta de gritar pelo liberalismo, e quem apoiou a conversão do canal 2 à «sociedade civil», indignar-se com os documentários cretinizantes que este agora emite. A sociedade civil só pode emitir se emitir as opiniões de que gostamos? Rico liberalismo fundamentalista! CL
«O desejo de saber tende a ser submergido por uma avalancha de informações de que os indivíduos se arriscam a ser simples retransmissores, num sistema sempre mais vasto de comunicação neutralizada (qual será o futuro da Internet que poderá ir contra esta tendência? Perfila-se já no horizonte a ideologia de um dandismo electrónico… mas também o dandismo é dado a poucos).» (Fernando Gil, Acentos, p. 329) Antes de nova indignação geral por causa do cancelamento de uma ópera de Mozart em Berlim, devido a ameaças anónimas de represálias, convém sublinhar que esta pressão não foi feita em nome de Estados ou de organizações reconhecidas, pelo que não é da mesma ordem de gravidade que os cartoons ou a celeuma em torno do discurso de B16. Nem por isso é mais aceitável, claro, e, quer se aceite a decisão da Ópera quer não, é ocasião para observar que a moderação (religiosa em geral, não apenas islâmica) consiste em mais do que não fazer ameaças, requer que não se seja conivente, mesmo que apenas por inacção, com quem as faz. CL
Segundo se lê aqui, e por sua vez baseando-se no The Independent, parece que até ao fim do ano a situação no Darfur permanecerá sem novo agravamento. Do mal o menos. E concordo, é de facto notável tão poucas notícias sobre o caso, quando situações muito menos graves são tão mais comentadas, pense-se no caso Israel-Líbano. CL PS - Link refeito, graças a shyzsogud (neighbour).
Na última Sexta, uma das peças que acompanharam a conversa de Alberto Pimenta com Paula Moura Pinheiro foi sobre hip hop. De acordo com a peça, corroborada por «especialista em hip hop» (e porque não?!), este começou por ser uma arma de contestação da cultura negra ao racismo e, depois, passou a exprimir o sexismo da cultura americana. A falácia é óbvia mas vale a pena prestar-lhe atenção. A mudança do sujeito do hip hop, dos negros para a sociedade americana, esconde o óbvio: o hip hop permanece ligado à cultura negra e o sexismo é dela (e também lá está desde os primórdios). Pouco importa que a mulher seja mais livre na sociedade americana do que em qualquer outra, e que o sexismo nela exista como em todas (quem gostar de relíquias pode procurar nos alfarrabistas America the beautiful, de Fidelino de Figueiredo). O que importa é desviar o olhar do facto de ser entre a minoria negra que esse sexismo é mais gritante e primário, o que já originou, aliás, tensões explícitas entre os conservadores (sobretudo religiosos) dessas comunidades e os rappers. Devemos concluir que as «bitches» de 50 cent são obrigadas a bambolear-se nos clips ou que, coitadinhas, Lil’Kim e as já velhotas Salt’n’Pepa não sabem o que dizem… A boa sociedade assume o fardo de as julgar inconscientes, para melhor salvaguardar a culpa do homem (branco). Pena é que seja essa cultura estreita e boçal a emblemática, muito mais que (por exemplo) qualquer daisy age de uns De la soul – e também estes já fizeram clips no «car wash», afinal. Mas note-se: emblemática da cultura do gueto, não da cultura americana. Tudo isto levou a conversa do programa para longe, sem necessidade. Qualquer homem com o mínimo de idade não tem como não reparar no prazer que a mais comum das mulheres tem em, mais do que se tornar atraente aos olhos dos homens, se mostrar indubitavelmente mais atraente para eles do que a mulher do lado. O grau de mesquinhez e venalidade que atingem no processo é mesmo tão surpreendente que só pode resultar de uma imaginação muito bem trabalhada nesse sentido. Habituadas a viver em sociedades de liberdades individuais, essencialmente não sexistas, as «nossas» mulheres agem como se essa permanente estimulação libidinal fosse natural e neutra. Mas não é, nunca foi, e inevitavelmente lembram-se disso quando se encontram, caricaturadas, em clips. «Aquelas» fazem mais do que mostrar as glândulas mamárias no decote, soltam-nas. Em qualquer caso não será assim por muito mais tempo, a pornografia entra já nos hábitos femininos mainstream – como na Sexta bem se viu num outro apontamento do programa, sobre esse símbolo de emancipação da mulher branca que foi (até se arrepender e converter) Linda Lovelace. CL
A notícia da morte de Bin Laden, supostamente causada por febre tifóide, pode ser falsa, mas tem algo mais que se lhe diga do que o tom de justiça poética de uma morte tão desejada se dever a uma doença tão reles. A morte, hoje por febre, tal como, ontem, por insuficiência renal, surge destituída de conotações políticas: assim, não teria sido morto «por nós». Teria sido algo «natural», insusceptível portanto de fazer desabar sobre o nosso mundo mais vinganças imprevisíveis e, por isso, incontroláveis. Esta vontade de neutralizar o carácter definitivo da morte, de o tornar asséptico de modo a o tornar inócuo surge na morte de Bin Laden na sua forma mais literal, mas nem por isso é a mais interessante. As teorias da conspiração sobre o 11 de Setembro são, a este respeito, o mais relevante do ponto de vista cultural. A «má fé» de que falavam Fernando Gil e Paulo Tunhas em Impassesderrama-se aí com uma inconsciência sublime: a vontade de reduzir a barbaridade daquelas mortes a uma «teoria», ainda que conspirativa, a vontade de evitar o estrangeiro radical e transferir a responsabilidade por aquilo para o nosso lado (a conspiração interna, a inacção do governo, até a «culpa histórica»), a vontade de dar um sentido mundano e familiar (o dinheiro ou o petróleo) àquilo que é da ordem do sem sentido (logo, inegociável), tudo isso releva de uma vontade de salvaguarda do indivíduo habituado a ser indiferente à História face à impossibilidade de viver com a realidade que se abateu sobre ele. Com todas as suas incongruências, as teorias da conspiração são ainda assim, porventura assim mesmo, de uma lógica quase sem falhas, uma lógica de autodefesa de um psiquismo primário, que prefere como causa do mal absoluto a vulgaridade do seu mundo à estranheza do desconhecido. Claro que os amantes de boas, elaboradas, teorias da conspiração só podem depreciar as «teorias alternativas», elas são de facto incrivelmente toscas. Sucede que elas não são tanto fenómenos da razão como da vontade, ilustram bem como a vontade é subterrânea à razão e a submete para melhor permitir a quem assim se auto-ilude continuar a viver como habitualmente no mundo moderno a que não se vai deixar, em qualquer caso, de pertencer. O anti-americanismo militante (face real do anti-bushismo) é tão só um sintoma, sem comparação com o anti-semitismo de outros tempos. Insultar de estúpidos ou falhos de carácter os adeptos de tais teorias é simplesmente não perceber a função psicoterapêutica que têm essas «alterverdades» (julgo ter acabado de inventar este neologismo, mas provavelmente estou enganado). Isto mesmo permite também perceber o motivo de a ameaça do fundamentalismo terrorista islâmico às nossas sociedades ser objecto de «forclusão», ao contrário do que sucedeu com a ameaça totalitária soviética. É que, como a Guerra Fria demonstrou, o mundo soviético era ainda algo com o qual se podia dialogar, isto é, sendo totalitário era ainda assim moderno, não se auto-excluía de uma racionalidade imanente à existência histórica. Face a ele uma resistência era pensável e exequível. Face ao irredentismo terrorista, o homem tardo-moderno, niilista passivo, prefere a negação até ao ponto da auto-negação, a confrontar-se com um inimigo exterior à lógica do seu mundo. Fernando Gil, nos textos de controvérsia depois de 2001, distinguiu aliás em várias ocasiões o «perigo vermelho» do islamismo radical através dessa dimensão racional que o primeiro manteve, descendente que foi das altas esperanças emancipadoras e progressistas do pensamento de Marx (sem hífen para Lenine). Entre a democracia liberal e o totalitarismo soviético, o choque foi entre modelos de sociedades modernas, nascidas da autonomização do poder do Estado face aos poderes religiosos. Esse processo, no Ocidente, arrastou-se por séculos e custou milhões de vida em guerra que ficaram na História como Religiosas. Nelas, as Igrejas foram vencidas e forçadas à tolerância (que hoje há quem julgue coisa pouca). No mundo árabe, falho de centralização quer religiosa quer política, tal dinâmica não se pode reproduzir, e a persistência em formas pré-modernas de organização social é tudo menos acidental, pelo que não será alterável por simples voluntarismo de terceiros. Sobra, assim, o desejo de uma causalidade não-politica para compreender o destino dos seus símbolos (Bin Laden hoje, outro no futuro) e a crença na redução aos termos mais banais do nosso mundo de tudo aquilo que surge como radicalmente estranho a ele (como no «pensamento» do agora na moda Zizek). A notícia da morte de Bin Laden pode ser tão pouco factual como as teorias conspirativas do 11 de Setembro, mas ambas são peças de um todo bem real, o de uma psicologia vulgar digna do termo (de novo Gil e Tunhas) «suicídio ideológico». Mas, como denunciar a má-fé em casos concretos não me parece programa suficiente, resta saber como melhor curar esta nossa febre. CL
Caro Luís Mourão, Apesar de concordar com a sua arguta observação sobre as manifestações do tempo da outra senhora, há um equívoco: creio que me leu como se eu estivesse a renegar o seu ponto de vista. Ora, como escrevi no post de Quinta, o seu diálogo com o Rui é diferente por ser interessante, logo… Repare: eu não disse que a sua posição não era política, disse que não era boa política. É outra das tais discordâncias benignas: eu entendo que as diferentes possibilidades de leituras dos textos, sendo reais em todos os textos, politicamente são questões menores face aos usos sociais que essas leituras conhecem, isto é, face a uma ou outra tornar-se dominante enquanto todas as outras são ignoradas. A questão é «para que coisas dão» os textos, creio que podemos concordar nisto. O discurso do Papa, em que uma leitura simplesmente completa desmonta a polémica, é um bom exemplo, pois essa leitura, em sociedades sem instrumentos de mediação modernos amplamente difundidos (não basta haver aliados nossos se a rua deles os ignora), provavelmente não será feita. Ou melhor, quem a faz somos nós (se não nos ficarmos pelos resumos televisivos). Quanto a ser benignos para todos, justamente o meu post centrava-se nisso mesmo. O problema é todavia aquele que (se) levanta, que fazer com quem activamente quer ser maligno? Agora, conversas a três geralmente dão em partes gagas. Obrigado pelos vossos comentários e links (às vezes penso que é moda não linkar o esplanar), mas continuem, eu não quis interromper. CL
Sou ateu. Nada de especial, vivo sem Deus e sei como se construiram as sociedades modernas. Não sou agnóstico, por saber que uma questão de fé não se reduz a outra de conhecimento. Não precisei de mandamentos de um ser («Ser») omni-tudo-e-mais-alguma-coisa para me portar decentemente. Sou um ateu «normalizado», sem grandes esperanças na falta de futuro da ilusão. Mais uma vez, a exigência de desculpas (desta vez de islamitas a católicos) deixa-me perplexo com o esquecimento dos ateus. Todos os dias, não há fanático ignorante da sua própria religião que não perore sobre a «crise de valores», «o relativismo», «a decadência de costumes», e muitas outras coisas ainda muito piores, atribuindo-as a «uma época que não escuta Deus» e outras pérolas do género com que encobre estar a falar para os seus (não praticantes), muito mais do que para ateus pacíficos e civilizados que vivem tranquilamente uns com os outros e, até, com crentes preconceituosos, violentos e antipáticos que nos insultam sem nos conhecerem de lado nenhum. Daí a perplexidade com o esquecimento: quando é que os «crentes» se vão lembrar de nos pedir («exigir» é ameaça, nem conta para nada) desculpa por todos os insultos, calúnias e ameaças que todos os dia nos fazem? Afinal, nenhuma doutrina política, filosófica, etc., tem no currículo tantas mortes, perseguições, crimes de todo o género como qualquer uma das grandes «religiões» (irónica designação, a não ser no que de sarcástico mas infelizmente real ela comporta). Como ateu, não preciso das desculpas deles para nada, bastava-me que deixassem de aumentar o seu longo currículo de barbaridades. Mas estranho que tanta gente fale das desculpas necessárias do Papa ao Islão (para me cingir a este caso) enquanto não há quem se lembre dos mais constantemente atacados, sem qualquer justificação. Os ateus. Será por não andarmos por aí a falar em público do nosso Absoluto para justificar massacres? De qualquer modo, por mais que ameacem, ou sejam cúmplices com os que ameaçam (quando convém), não tenciono converter-me. Pela razão e pela ética, passo bem como estou. E não ofende quem quer... CL PS - A única troca de ideias interessante que vi sobre a polémica em curso é entre Luís Mourão e Rui Bebiano. Mourão interessa-se pelas ideias dos textos, menosprezando o efeito mediado das suas interpretações, como bom teórico literário (e mau político). Bebiano interessa-se mais pela dimensão política do que pela literal, como bom historiador (e polemista irénico). É um desentendimento incurável, mas amigável. Benigno, como é possível entre não-crentes.
Uma blogger cínica quanto às virtualidades cívicas do meio informa-me de dois posts sobre Darfur, aqui e aqui. Parece que a 30 de Setembr, infleizmente, haverá motivos fortes para voltar ao tema. Já os leopardos parecem despertar menos atenções...
O dia 17 de Setembro, data de evocação do Darfur (é assim que se escreve? vi tão poucas referências...), passou em claro aqui e em quase todo o lado. Mas boas causas, felizmente, há muitas, como esta. CL
O post definitivo (até às próximas novidades, decerto tristes, claro) sobre a nova polémica da (pseudo) «rua islâmica» está, sem surpresa, aqui («caricaturas-parte 2»). CL