Pede-me Bruno Cardoso Reis, em O Amigo do Povo, explicações:
«Para já deixo-lhe a ele e aos demais anti-revisionistas um par de perguntas: Como é que definem fascismo? O Salazarismo é fascismo porquê?»
Deve-se isto a um post meu, «Rever a crise do liberalismo», em que em vez do jogo do empurrar a culpa entre Esquerda e Direita sobre culpas e mentiras relativamente aos crimes políticos do século XX, sugeri que a crise do liberalismo é o tema que mais importa, mas que nessas polémicas mais se esquece. Ou seja, não adiro aos termos da discussão «quem matou mais, rojos ou falangistas?». Isto exclui-me de quase todos os «demais» a que Bruno Cardoso Reis se refere, mas em todo o caso prefiro por agora a companhia deles à dos historiadores que Bruno Cardoso Reis muito respeita.
Por isso mesmo, temo desapontá-lo com a seguinte resposta (no Vox Populi de O Amigo do Povo já falei dos aspectos menores da discussão):
1) O fascismo como ideologia foi tão vazio que nem tem uma definição forte, como a que há para comunismo (aliás requerendo várias distinções) e nazismo. De origem italiano e revivalista da Roma imperial, difundiu-se em versões igualmente vagas entre regimes de países com histórias que se prestavam a ser mitificadas de modo similar A única resposta que vejo ser viável é, não uma definição de género «tipo ideal», sempre de tipo contextual. Pelo que,
2) O salazarismo foi um regime fascista por se filiar explicitamente no movimento italiano que cunhou o termo (apesar de a sua realidade militar nada ter que ver com a do Império Romano…), por só se ter afastado dele quando a derrota do Eixo era inevitável, e por nunca ter mudado significativamente a sua política antimoderna (o que não significa que não tenha havido modernistas, coisa diversa, a servir de adorno ao regime), isto é, antiliberal, antidemocrática, e uma série de outros «anti» que caracterizam bem a natureza reactiva dos movimentos políticos (português, espanhol, italiano, e não só) que merecem a designação «fascista». Ou, para quem tiver pruridos, «filofascista», «protofascista», etc.
Pode preferir um método de definições gerais, mas até hoje nunca vi nenhuma que resolvesse «indiscutivelmente» o seu problema em encontrar uma definição satisfatória. Alias, no seu post di-lo também.
Neste ponto, uma nota de destaque: como acabei de repetir em 2), o meu post salientava que o Fascismo, tal como o Comunismo, se fez na Península contra a modernidade, e não sobre a modernidade como sucedeu no resto da Europa Ocidental. É um ponto decisivo, se me permite. Remete para a história de Portugal na modernidade e é dentro desta que enquadro toda a discussão (indiquei bibliografia bem como pistas de pesquisa por explorar). Falo portanto de um liberalismo anterior à revolução francesa, que fez o seu caminho como tradição daquilo que veio a chamar-se Esquerda contra o absolutismo, e que, em Portugal, nunca vingou. Ora, apesar de ser preciso diferenciar em vez de amalgamar (como escrevi no meu post), há uma nítida e proclamada coincidência entre a reacção na Europa e o conservadorismo português, que sempre se inspirou nela apesar de cá nunca ter havido revolução (tal como importámos a Contra-Reforma sem termos tido Reforma). E não é a mitificação vagamente biográfica de individualidades (João Franco ou Paiva Couceiro) que serve como modelo para discussão do processo histórico de isolamento de Portugal desde o século XVII (também ele a rever, admito). A diferença da nossa ditadura face às extra-peninsulares é real, por força da história moderna do país, mas não a torna menos ditadura (veja: se não foi fascismo, teve muito em comum – polícia política, censura, perseguições políticas e profissionais, campos de concentração tortura… não ser fascista em algum sentido teórico «exacto» ajuda em alguma coisa? «Democracia orgânica» será mais ajustado?). A escassa modernização da sociedade portuguesa até ao século XX gerou um liberalismo incipiente, ao contrário do que sucedeu na Alemanha ou em Itália, daí a necessidade de rever a sua crise (e respectivo desenlace ditatorial) em moldes próprios; mas sem falar dela como se se tratasse de uma evidência que os especialistas conhecem e os outros, coitados, não. E se me exige provas do que digo, toda a história do discurso crítico em Portugal no século XX está aí para quem a quiser ver. Um caso bem interessante, que já tratei num outro post, é o Adolfo Casais Monteiro em
O país do absurdo. Aí, a lista dos «anti» de que se fez o regime é bem longa e bem analisada, com o «extra» do testemunho pessoal do autor. Não terminarei sem citar esse testemunho.
Antes disso, reconheço que tenho aprendido com os seus posts sobre a relação crítica do Vaticano com o regime nazi, mas deles não vejo como infere uma oposição a Hitler. Eu vejo um cuidado distanciamento expresso de forma diplomática. Já foi muito, de acordo. Mas resistir é outra coisa, que coube a pequenos grupos de cristãos. A mim, que sou ateu, isto não me espanta nem incomoda. E, como português, permito-me ver as diferenças de comportamento, face ao que explica ter sido a política do Vaticano perante o nazismo, da Igreja portuguesa face ao salazarismo, que literalmente ajudou a fabricar e a manter, invocando Maurras e destruindo as vidas de gente como Sílvio Lima, até se ter distanciado muito gradualmente desde que o estertor do regime se tornou evidente com a desertificação das paróquias promovida pela emigração. Tarde falou, e mesmo assim cedo demais para a ICAR, o Bispo do Porto quando descobriu que não se podia ser católico e salazarista. Não, não foram erros nem falta de informação, não foi a ausência em parte incerta, nem qualquer silêncio, de Deus: foi cumplicidade da hierarquia com o poder ditatorial e com os métodos (maquiavélicos no pior sentido do termo) do «em politica o que parece é». Já houve quem inventasse um rótulo: «catolaicismo». Conhece, decerto.
O que me espanta e incomoda é a soberba de quem trata por bestas e ignorantes, quando não como censores do «politicamente correcto» (?), todos os que falam sem exactidão científica de realidades políticas que (como refere de passagem, e eu concordo) muito resistem a qualquer definição indiscutível. Se quer esquecer as análises de Hermínio Martins, Joel Serrão ou Magalhães Godinho e apoiar-se em Pulido Valente e seus idólatras, faça favor. Eu reservo-me o direito de dizer que essa revisão pretende recriar a história para melhor convir às suas carreiras e às suas simpatias e antipatias paroquiais, para revogar sem argumentos mas com muita prosápia uma tradição historiográfica com 50 anos, a dos melhores historiadores de Portugal (sobre as science wars à portuguesa, outra instância da nossa retardada modernidade, também já escrevi, e à custa das condições para o meu trabalho, escuso-me a voltar ao ponto agora).
Quero terminar com o ponto do testemunho de quem viveu os acontecimentos. Fora dos confrontos entre historiadores, deixe-me terminar citando Casais, do livro que mencionei:
Mas, por outro lado, não podemos sequer acreditar – pelo menos nós, aqueles que ainda conheceram a vida portuguesa anterior à implantação da ditadura – naquele disco incansavelmente repetido segundo o qual a república era a desordem e a anarquia. Essa desordem e essa anarquia nunca existiram senão na imaginação apocalíptica dos autores de legendas para cartazes de propaganda, uma propaganda que não hesita em pretender convencer-nos que, antes do golpe do 28 de Maio… não havia estradas em Portugal, e não se podia sair à rua sem risco de ser morto pela explosão de uma bomba! Ridícula propaganda para analfabetos ou mesmo débeis mentais, do mesmo nível que as conhecidas figuras do «antes» e «depois» dos anúncios de produtos contra a queda do cabelo…
(p. 29)
Bem sei que Casais, coitado, nasceu em 1908 e não teve o benefício de ler os autores de hoje, que nem lutaram contra o marcelismo sequer (e para quê? O homem era um génio, sabia que a democracia cá não podia funcionar…). Para ele, o essencial da mudança ocorrida a 28 de Maio não era a chegada da «ordem» que vinha substituir a «desordem», mas sim a opressão que destruíra a liberdade. Quem a quiser elogiar por portas travessas que o faça. Não aprenderam nada com a história, simplesmente.
Conto que continue a não ser esse o seu caso, e continuarei a lê-lo a si e aos restantes amigos do povo.
CL
PS - Caso não seja claro, o título deste post remete para duas obras de Eduardo Lourenço, que não por acaso raramente são citadas. Censura do «politicamente correcto»? Só se incluir o de Direita e o de Esquerda.
PPS – Nem de propósito: hoje, VPV volta a baixar o nível, muito abaixo dos produtos contra a queda do cabelo. A República matou muito mais do que Salazar… Bem sei que a credibilidade dele como historiador já nem entre jornalistas pega, mas, se gosta de coisas destas, pode sempre reclamar-lhe números e documentos.