ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

terça-feira, junho 20, 2006

 

A crítica não morreu, mudou de função (II)

Augusto M. Seabra escreveu no Público da semana passada um artigo em duas partes (e ainda por concluir) intitulado «”A crítica” ainda existe?». Vale a pena comentá-lo (obrigado Patrícia!), por ser tão ilustrativo de equívocos como o dos «clássicos» e contemporâneos (ver post de ontem).
Na Quinta, dia 15, Seabra parte de um «paradoxo», o da desaparição de espaços de crítica na Imprensa, sua sede histórica. Ora sucede que não se trata de um paradoxo, antes da prova do sucesso da crítica moderna. A promoção iluminista do discurso crítico foi não apenas, nem fundamentalmente, artística mas sobretudo política. E isto no sentido mais lato, social, que o termo pode ter: como queremos viver em sociedade? Primeiro sob a forma de crítica de textos e de obras de arte e, depois, abertamente político, o discurso crítico moderno foi porta-voz da «liberdade dos modernos» (Constant). E muito cedo se formou neste discurso liberal (pois a Esquerda é liberal, como é natural ao formar-se contra a autoridade e a tradição, e só pontualmente foi revolucionária, com resultados aliás problemáticos) um tópico central: o comércio como alternativa ao conflito armado. O comércio de bens, mas igualmente de gentes, ideias, etc. – esta foi a pedra de toque do cosmopolitismo que Seabra tanto gosta de invocar. O seu sucesso dependeu de uma conversão cultural que demorou séculos (e que em Portugal tardou), a de uma cultura religiosa numa cultura ateia, na qual os valores não são nem podem ser, por definição, absolutos (isso seria criar limites à liberalidade dos diferentes comércios). Esta é a história da modernidade e, fácil é ver, confunde-se com a história do Ocidente, a civilização ateia por excelência (não Cristã: a religião cristã, mesmo feita religião de Império, não se confunde com nenhuma civilização particular, sob pena de perder a sua universalidade; pena que está muitas vezes disposta a sofrer, claro, mas isso são contos largos).
A conversão de espaços de crítica em espaços de moda, tal como a conversão das notícias em peças de propaganda «disponibilizadas» por agências de informação, é assim não um paradoxo mas a marca indelével do sucesso do discurso crítico: a sociedade de constantes trocas que propunha em alternativa à servidão do súbdito ao senhor faz-se hoje sem ser preciso sequer argumentar. Talvez por isso, quando é preciso argumentar, falta a prática, mesmo quando os casos não podiam ser mais transparentes (veja-se a chantagem obscena feita em torno dos cartoons de Maomé).
Mas, partindo do seu «paradoxo», Seabra anota em Portugal alguns casos perversos desta conversão do discurso crítico em moda e publicidade e conclui: «começam a ser recorrentes os casos em que a recensão de livros de críticos de um jornal instauram, porventura até injustamente, uma dúvida que afecta a credibilidade de todos – e a credibilidade é uma noção vital à imprensa em geral, à crítica também.» Certo, nos moldes do discurso crítico. Mas errado, quando a crítica (reduzida a sucessão de modas) e a Imprensa são, como hoje, veículos de entretenimento. Ninguém que veja o Prof. Marcelo (ou o seu duplo Vitorino) espera deles isenção, elaboração conceptual, reflexão sobre modelos sociais a explorar, ligação do presente ao futuro; esperam entretenimento, e isso é o que recebem.
Relembrando o seu trabalho bulldozer (termo vazio que se aplica tanto a Seabra como a João Pedro George) no campo das artes plásticas, e declarando-se estranho aos amiguismos em nome das «cumplicidades» (um termo que conviria saber o que significa mesmo que para isso se tenha de ler Aristóteles), as questões que importam a Seabra são três: «há 1) uma marginalização informativa do espaço da cultura, 2) uma informação tantas vezes apressada e pouco trabalhada, que transmite com escasso tratamento os diversos discursos “oficiais” e 3), como corolário, uma secundarização da crítica, desde logo pouco considerada nos orçamentos, favorecendo agendamentos de diversas proximidades imediatas.». Vamos por partes.
A primeira questão reduz a crítica às artes (a «cultura»), o que é historicamente errado. Essencialmente político, o discurso crítico nem é sequer moderno (não me tenho referido a Aristóteles – ou aos Sofistas, para recorrer a outros clássicos na INCM – por acaso). Existiu na Antiguidade, na Idade Média, na Modernidade e, se quisermos diferenciar, na contemporaneidade. O que mudou foi a sua função social e, com ela, a sua visibilidade. Nunca foi tão exuberante como na Modernidade (por motivos que já elaborei em livros, e que não vou resumir aqui), hoje é preciso procurá-lo com mais cuidado, mas nunca falando apenas de dança, livros, música, etc..
A segunda questão resume muitos lugares-comuns em torno não da crítica mas do jornalismo: quem é o culpado da má informação? Os «estagiários»? (Canalhice, como se estes não tivessem editores). Os jornalistas? As «agências de informação»? Com a crescente especialização da crítica em diversos campos produziu-se também uma segregação da crítica face às notícias, isso é real e grave, mas acrescentemos que não impede as notícias de serem muito judicativas em prejuízo da informação que dão (então no Público!). É por causa de problemas como este, de fronteira entre géneros, que prefiro falar de «discurso crítico» e não de «crítica» (em Portugal, imediatamente tomada como «crítica literária» por razões puramente conjunturais ).
Como as campanhas de Soares nas últimas presidenciais e de Carrilho nas autárquicas bem demonstraram, quem se queixa da estratégia do entretenimento é quem não a sabe organizar, não quem tem ideias próprias e sabe difundi-las em função dos meios de comunicação disponíveis. Mais recentemente, uma notícia do Público em que Agostinho da Silva é dado como profeta da Internet, podia bem servir como exemplo da informação inteiramente acrítica dos mass media de hoje (no Abrupto e no Indústrias Culturais foi devidamente tratada). Mas o meu caso preferido é o da tese de mestrado de uma jornalista da RTP, que explica como o sensacionalismo televisivo em torno da ponte de Entre-os-Rios foi, afinal, ao permitir que as pessoas desabafassem, boa Psicologia… No (acriticamente) celebrado aniversário de Freud em 2006, eis o contributo nacional de excelência para a análise selvagem!
A terceira questão não foge a um problema sério, o do dinheiro. Em países com um espaço público muito tardiamente formado e ainda pouco autonomizado face ao Estado, este é um problema grave, e não só para o discurso crítico. Actualmente, a aposta desesperada de toda a comunicação social no Mundial, agravada pela omnipresença da publicidade que se associa a ele de todos os modos, é um caso claro disso. De novo, é um problema político, não estritamente «cultural». (Enfatizo esta diferença para esclarecimento dos públicos, não por oposição a Seabra, que me parece neste respeito pensar na mesma linha.)
Claro está, esta é a minha leitura, que aqui nem sequer verdadeiramente resumo. Não me surpreende o silêncio em torno do Portugal Extemporâneo, a razão para o escrever foi mesmo esse silêncio, e quem quiser tomar as três questões de Seabra como «cruciais para interrogar se “a crítica” ainda existe» que o faça.
Mas então que o faça mesmo. O que não sucede de todo na continuação do artigo, este Sábado. Uma página inteira de jornal (num suplemento, cuidado com o orçamento) em ajustes de contas entre críticos. Ou, para usar o termo que me parece correcto, entertainers. Mais uma edição de comentários sobre os comentários de outros com o costumeiro desgosto de Seabra com Pulido Valente e o Independente. Mas tirando a repetição do evidente (que a crítica é plural, que é preciso mantê-la viva fora de círculos estritamente académicos – onde também falta em Portugal, diga-se – e que há uma cultura anti-crítica em Portugal), o que se lê? Uma penosa e mesmo perniciosa (com a devida vénia) diferenciação do «sistema crítico» de Prado Coelho face ao «método George». João Pedro George não precisa que eu o defenda, nem este seria o local para isso (e nem é por causa do amiguismo», esse lugar-comum que se lhe associou e que só deturpa o que George efectivamente escreve). De facto, é «óbvio» que há diferenças: George não insulta (sobre isso já lhe gabei o humor aqui no blog, já que ninguém o refere), George lê os livros antes de os qualificar como melhores ou piores, George não esconde o que o incomoda (como Seabra nota que Prado Coelho faz, e exemplos de outras pessoas não faltam), George não tem o incrível curriculum de polémicas acríticas de Prado Coelho. Este último ponto é o crucial: desde há quatro décadas que Prado Coelho produz aqueles elogios involuntários como o que deu a George (se soubessem a quantidade de mails na caixa do Esplanar a dizer isto mesmo…). É preciso não ter noção nenhuma do que é a crítica em Portugal no século XX (ou fingir não ter) para falar de casos como o que Seabra invoca como sendo recentes.
A conclusão? O discurso crítico numa sociedade já liberalizada e regida pelo comércio não é o mesmo nem tem a mesma função que lhe era próprio enquanto lutava por essa liberalização. Retomando em nova forma algo que vem do seu passado moderno, hoje o discurso crítico consiste em analisar as modas que lhe tomaram a função de mediação social e transformaram em outra coisa. Daí mesmo lhe faltar orçamento (pois se incomoda o negócio…) e daí também a irritação com que é recebido. Não é de estranhar que nem George, nem eu, nem João Tiago Proença, para não me alongar no elenco, não escrevamos regularmente na Imprensa. Esta pertence aos ‘críticos’ que só notam na moda que lhes convém, como devem fazer os bons entertainers.
Aqui haveria a considerar, como Seabra refere mas não chega a fazer, o problema do(s) público(s), a meu ver excessivamente complexo para se discutir mesmo numa série de artigos (em resumo: o público é hoje definido pelos mass media e não pelos media, pela imagem e não pela palavra; ora a crítica exerce-se pela palavra).
The show must go on? Sem dúvida, e crítica dele não faltará. Aqui no Esplanar, onde me estreei graças a um carta que o director do Público não publicou (por eu corrigir informações falsas num editorial seu?). Por vezes até em jornais, como Augusto M. Seabra, em várias outras ocasiões, bem exemplifica. Quanto à conclusão do artigo de Seabra, com a continuação que teve parece comprometida; mas não percamos a esperança – dizer bem é a mais nobre parte do discurso crítico, e por isso a mais exigente.
CL



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