ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

segunda-feira, maio 15, 2006

 
PARA QUE SERVE (ATÉ AGORA) A POLÉMICA DA HORA

A polémica em torno do livro de Manuel Maria Carrilho não surpreende, como o próprio e a editora decerto ambicionavam. Também não destoa do esperado, desde as loas de Prado Coelho à reescrita da (sua) história por Pulido Valente, que pelos vistos nunca escreveu um artigo a explicar porque é que Carrilho e a sua candidatura camarária mereciam atenção. Do lido, que não será tudo, salvam-se os artigos de Domingo dia 14 no DN («A culpa é do Carrilho?», de Albano Matos) e no Público («O “quinto erro” de Carrilho» de Mário Mesquita). Logicamente, dedicam-se àquilo que a reacção pavloviana da comunicação social tratou de obliterar: há ou não razão de queixa? Longe de ser um ataque à comunicação social, este aspecto deveria ser do máximo interesse para os seus agentes, veremos se algum Provedor abordará o caso.

As reacções judiciais são outra história (e no caso de Francisco Almeida Leite, que conheço desde 2002, sei da sua independência por experiência própria, a qual só os seus colegas de jornal puseram em causa por métodos semelhantes aos que são objecto da queixa de Carrilho). A questão está em saber se Carrilho – por antipático, conflituoso e egocêntrico que seja − foi ou não objecto de fair treatment por parte daqueles que, agora, o acusam de falta de fair play. A avaliar pelo que se sabe sem recorrer ao livro (como leitor do Público, que sou desde sempre) é óbvio que não, e desde muito antes da candidatura. Aliás, esta manipulação no mínimo anti-deontológica de meios profissionais contra Carrilho não é sequer exclusiva da comunicação social: exemplo disso são as inacreditáveis sentenças proferidas por sucessivos juízes sobre a queixa de Carrilho contra um artigo infame de António Barreto (publicado no mesmo jornal que, com outro director, é certo, em tempos não publicou uma prosa de Pulido Valente sobre Espada). Nestas ocasiões as solidariedades são poucas e os seus efeitos nulos; o que conta é a credibilidade das acusações e a seriedade das defesas. Os acusados limitam-se a chamar-lhe ressabiado e fingirem-se vítimas de ataque, o que no país da vitimização e irresponsabilidade funciona sempre. Ora, justamente, é isso que mais credibilidade confere a acusações que não podem ser provadas: a imediata fuga ao escrutínio, mesmo que apenas ao auto-escrutínio. Numa Imprensa em que a figura do Provedor de Leitores é ornamental (e quando não é o mais certo é não terminar o mandato, como sucedeu a Mesquita no DN), isto não pode espantar ninguém.

Como não se discutem as razões, algumas delas absolutamente indemonstráveis, restam os facciosismos do costume (de momento maioritariamente anti-Carrilho) e a questão da autoridade. O problema maior de Carrilho é a falta de autoridade para falar.
Primeiro não lha reconhecem, porque em Portugal se odeia quem pense pela sua cabeça, mais a mais sendo-se «filósofo» (em Portugal, um insulto). Grande pensador, no jornalismo e na política à portuguesa, é Paulo Portas....
Depois, porque quer pela sua devoção ao neopragmatismo, quer pela sua experiência política, nada disto o deveria ter espantado; mesmo não sendo o político brilhante que se imagina, e não tendo nunca desprezado os meios comunicacionais que agora deplora – veja-se como procedeu relativamente a Alegre, Guterres ou Sócrates – a simples opção de se candidatar à CML deveu-se a um conjunto de cálculos de 2002, nos quais germinou também a brilhante estratégia de candidatar Soares à Presidência, completamente ultrapassados em 2005 (além do que se sabia que, nas autarquias como nas Presidenciais, os ciclos são bi-eleitorais, pelo que não era expectável nenhuma mudança pró-PS depois da viragem de 2001, ainda para mais estando já de volta ao poder e a conduzir políticas impopulares). As campanhas comprovaram esse desfasamento entre o plano e a sua realização e isso deveria aconselhar menos contundência no tom da autodefesa. Tal como surge presta-se a ser rapidamente esvaziada como simples revanchismo, e não sem alguma razão.
Por fim, porque a sua conduta política desde o seu primeiro mandato como ministro sempre esteve eivada de características de promoção pessoal e de promiscuidade com uma corte bastante socialite que, quando as coisas se complicam, pouco ajudam e muito embaraçam. E, se Bárbara Guimarães foi importante, os jornalistas foram também parte relevante, pelo que mais ainda, agora, evitam confusões com o livro. A excepção de Rangel apenas comprova isso, aliás.

Tal como estão as coisas, quer o livro (quase ignorado) quer a polémica em seu redor, são típicos do espaço público português. Muito mais do que de qualquer especificidade do jornalismo que se faz, os termos em que decorre mais esta polémica revelam bem como o espaço público português é ainda corporativo, um legado muito anterior ao Prof. Salazar. Se Carrilho escreve para os jornalistas (como disse a uma jornalista, na RTP) ou para os seus filhos (segundo a versão autorizada de Prado Coelho), tanto faz; o certo é que o faz sem poder usar argumentos da razão, que o espaço público (e não só o jornalismo) rejeita por desinteressantes. Sobrar-lhe-iam os da autoridade, se tivesse continuado a escrever livros decentes (mesmo sem ter muitos leitores), mas disso foi ele quem abdicou.
Mesmo sendo uma polémica real e relevante, como também é a que envolve o João Pedro George, é notório que essa realidade é rejeitada pelo espaço público (pela sociedade) do país. Na inviabilidade de os tribunais introduzirem algum módico de seriedade nas polémicas (só as agravam), resta esperar que também esta desapareça sem deixa rasto. Ficará, como de costume, o ressentimento.
Quem conheça as transformações do espaço público português ao longo do século XX, nas quais muitos (todos) os protagonistas deste incidente participaram ao menos passivamente, não deixará de constatar, uma vez mais, que a única realidade possível em discussões sobre coisas sérias como liberdade de expressão ou de responsabilização, só é viável saindo das convenções, demasiado pré-modernas, da sociedade portuguesa. A única realidade que Portugal pode ter (e tem tão pouca) é a europeia, seja em economia, política, cultura, civilização, tanto faz, a questão será sempre a da responsabilização das pessoas e das instituições, justamente o que em Portugal se evita ora pela acusação sem fundamento, ora pela vitimização sem causa.
E uma polémica destas só serve para o mostrar.

Carlos Leone



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