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Mil Folhas do pretérito sábado (22/04/06, p. 16), João Bonifácio (JB) escreveu um texto - «Escrever pelo prazer da escrita» - comentando o
Não É Fácil Dizer Bem, deste vosso súbdito, o
Primeira Pessoa, do Pedro Mexia, e o
Pobre e Mal Agradecido, do Rui Tavares. Ver-me assim anexado a tão bons e talentosos escribas lisonjeia-me. Digo-o sem ponta de ironia. Por mais de uma vez manifestei, sem reservas, a minha admiração pelo Pedro Mexia (em especial nesta vertente de cronista, onde continuo a encontrar alguns dos melhores textos que hoje se publicam nos jornais) e pelo Rui Tavares (basta ler o texto que escrevi sobre o
Pequeno Livro do Grande Terramoto para perceber o entusiasmo).
Sobre o meu livro tece JB algumas afirmações que gostaria de aqui rebater. Que fique claro de início que não é o amor-próprio ferido a motivar-me as palavras. O pensamento, entre outras coisas, progride pela crítica, pela negação, pela recusa (saber recusar é tão necessário como o seu contrário). Além do mais, o direito de serem tão severos para comigo como eu fui para com os outros é irrefragável. Tal não me inibe, porém, de criticar essa mesma crítica, principalmente quando é leviana, negligente, desleixada, facciosa e estéril. O texto de JB, aliás, exibe alguns dos sintomas que caracterizam o quietismo da crítica jornalística: ausência de critérios seguros para avaliar as obras, incapacidade (e impossiblidade, é certo, por restrições de espaço) de se demorar nos livros, opacidade dos conceitos e superficialidade da argumentação. Analisemos, passo a passo, os juízos de JB.
«O estilo de JPG é, então, anotar repetições, advérbios de modo usados em excesso, e aquilo que considera literatura emproada. O método é quase sempre esse, e isso é manifestamente pouco - esse é o primeiro problema de JPG: na ânsia de se mostrar implacável denota fraca capacidade de observação das narrativas e da construção das personagens. Quase sempre que se refere a um livro JPG atém-se exclusivamente na linguagem, como se esta fosse um fim em si mesmo. A este propósito o texto sobre Rui Nunes («A musa», p. 21) é esclarecedor.»
Reduzir 27 textos, onde se misturam opiniões várias sobre:
1) entrevistas (a António Lobo Antunes, Gonçalo M. Tavares, Javier Marías);
2) crónicas (por ex: «Os Cabelos Arrepiam-se», «O Bebé Prado Coelho» ou «EPC»);
3) cenas de sexo na literatura (José Rodrigues dos Santos vs. Henry Miller);
4) um programa de televisão («O Eixo do Mal»);
5) certas práticas jornalísticas (por ex: «Eduardo Prado Coelho: O Escolho do Olhar», «A Coutada Literária do Expresso», «António Costa Pinto, o Incessante»);
6) determinadas estratégias editoriais («Editores e Crítica Literária»),
7) etc,
reduzir, repito, 27 textos a um princípio único de explicação - análise da linguagem - é um monismo inaceitável e intelectualmente desonesto.
Anotar advérbios de modo, sim, faço-o, mas apenas no texto sobre Miguel Sousa Tavares (e esse é um aspecto menor do texto).
Anotar repetições, sim, é verdade, mas apenas nos textos sobre Rui Nunes, Miguel Sousa Tavares e, em parte, Eduardo Prado Coelho («O Escolho do Olhar»).
Gostava de saber onde é que JB se apoia para enunciar tão retumbante afirmação.
Nos textos sobre Luiz Pacheco?
Na crítica a António Alçada Baptista?
No texto sobre José Eduardo Agualusa (e o que estava aí em causa, por via das dúvidas, não era criticar o romance mas sim uma prática: a repetição
ipsis verbis de nacos de prosa de uns para outros livros)?
Na crónica sobre Miguel Esteves Cardoso?
Na análise do livro de memórias de Maria Filomena Mónica?
No elogio ao
Pequeno Livro do Grande Terramoto, do Rui Tavares, ou ao romance
Alma, de Manuel Alegre?
E, sobre este último, será que João Bonifácio confundiu o texto sobre
Rafael («Manuel Alegre, o Caçador de Citações»), uma brincadeira suscitada por uma célebre entrevista de José Sócrates ao
Expresso, com a crítica ao livro do deputado e candidato a Presidente da República?
Em todos esses casos, pela própria natureza das críticas (daí ter evitado o termo «críticas literárias» no subtítulo no livro,
Não É Fácil Dizer Bem: Críticas, Obsessões e Outras Ficções), não era minha intenção fazer a «observação das narrativas e avaliar a construção das personagens», até porque a ficção é apenas um entre os vários géneros em que me detenho:
a) entrevistas (quatro capítulos, sobre António Lobo Antunes, Gonçalo M. Tavares e Javier Marías);
b) crónicas (ex: «O Mundo do Pacheco);
c) correspondência (ex: «Estardalhaço e Amnésias: Cartas ao Léu, de Luiz Pacheco);
d) um programa de televisão (acima referido);
e) crítica da crítica (ex: «Eduardo Prado Coelho: O Escolho do Olhar», «A Coutada Literária do Expresso», «António Costa Pinto, o Incessante»).
Perante esta salganhada de géneros, deveria eu fazer «observação das narrativas e da construção das personagens»?
E ainda que assim fosse, a afirmação não é exacta, porquanto nos textos sobre António Mega Ferreira, Possidónio Cachapa, Inês Pedrosa, António Alçada Baptista ou Miguel Sousa Tavares essa análise está feita.
Depois, considerar o texto sobre Rui Nunes - «A Musa Parada de Rui Nunes» - como paradigmático dessa suposta preocupação com a expressão linguística é de bradar aos céus.
Saberá JB que a característica maior de Rui Nunes é precisamente o trabalho sobre a linguagem? Que Rui Nunes se concentra nos mecanismos estilísticos para potencializar (até à exaustão) os assuntos que privilegia? E a crítica deve passar, ligeira, por cima disso, concentrando-se nesses dois critérios?
A constatação das repetições da escrita de Rui Nunes é que me permitiu, aliás, chegar ao núcleo dos seus temas, que inclusivamente aponto no meu texto: doença, degradação/decomposição do corpo humano, marginalização social, solidão, morte, descrença absoluta num Criador, temas esses que podem ser sintetizados, como fiz (recorrendo a Julia Kristeva), na ideia da «literatura da abjecção».
Não se concorda com a análise, consideram-se outros os temas? Certo, mas aí entramos noutra discussão, que JB não fez, ou porque não podia, ou porque não quis, ou porque lhe faltavam os recursos críticos.
«(Podia agora referir que JPG tem uma escrita "proto-celineana" descabida, e que abusa de expressões como "Por Zeus!", excede-se nas interjeições e é bastas vezes escusadamente exclamativo. Recuso-me a apontar as repetições gramaticais - não tenho paciência.)»
Neste parágrafo, JB diminui-se a si próprio. Em primeiro lugar, qualificar como escrita «proto-celineana» todo o livro é, uma vez mais, desonesto. O único texto onde tal epíteto se aplica é no último - «A Comédia Terminou» - ainda por cima um texto que incluo, não por acaso, sublinhe-se, na parte das
Ficções (JB poderia ter referido também o Álvaro de Campos da
Ode Marítima, onde claramente me inspirei).
Reparem, estamos a falar de três páginas (3!) num total de 255. Teria sido muito mais lógico referir o Luiz Pacheco (apenas para as críticas e só em algumas delas), porque aí sim (nunca o escondi) é possível encontrar - modéstia à parte - algumas parecenças de estilo e de atitude.
De qualquer forma, JB tinha a obrigação de explicar/justificar/fundamentar o porquê de considerar «descabida» a escrita «proto-celineana». JB não tem paciência para apontar as repetições gramaticais? Não tem paciência!? É esse o seu dever, é para isso que lhe pagam, para ter paciência!!! (percebe agora as exclamações?)
«Há, no entanto, um outro problema com a escrita de JPG: um registo de tal modo destrutivo ou é sustentado em algo mais que a mera aritmética de "bengalas" literárias ou tem de saber fazer uso do seu potencial de humor - o que neste caso se torna impossível à conta do lastro moralista que o torna por vezes mais desagradável que incómodo. (No final do livro, JPG entrega-se à ficção, mas a bem da sua reputação esqueçamos esses pequenos devaneios.)»
No que toca às «bengalas literárias», não vale a pena chover no molhado. Quanto ao moralismo, a história é outra, já que JB não explica o sentido que dá à palavra. O conceito tem dezenas de significados, quer em termos linguísticos (basta consultar o dicionário) quer em termos da história da filosofia, onde o «moralismo» surge como um dos grandes ramos da reflexão filosófica. Se JB considera moralismo comportar-me na vida de acordo com determinados princípios, com base nos quais me arrogo o direito de criticar certos comportamentos; se JB vê no moralismo uma disposição de espírito para escrever com vigor sobre atitudes que revelam falta de profissionalismo, então sim, sou moralista. É desagradável? Tanto melhor. Porque essa moral não me prende a nenhuma «camisa de deveres» nem me impede de ter uma opinião livre. Além disso, note JB que «demasiado fácil, o desprezo do moralismo corre o risco, quando não justificado, de ser um simples álibi para quem elude as verdadeiras exigências da moralidade» (
Dicionário de Filosofia, dir. de Lucien Jerphagnon, edições 70). Ou, utilizando um velho ensinamento dos bancos do liceu, «nenhum ser humano é filósofo sem o saber, mas todo o ser humano é moralista sem o saber».
A fechar o parágrafo, JB introduz um parêntesis paternalista que tresanda a fanfarronada: «no final do livro, JPG entrega-se à ficção, mas a bem da sua reputação esqueçamos esses pequenos devaneios».
Assim, sem qualquer fundamentação, sem um pensamento, sem uma ideia, sem amplitude ou alcance intelectual. Ora, isto não é aceitável numa crítica (é contra esta falta de ousadia, este medíocre temperamento crítico, esta forma apressada de avaliar os textos, entre outras coisas, que o estilo «proto-celineano» ainda hoje faz todo sentido).
Ou pura e simplesmente tinha ignorado as «ficções» (como aliás fez com as «obsessões», a parte central do livro) ou então escusava de mutilar o raciocínio, ficando-se pela referência, mui duvidosa, à minha «reputação».
Nas minhas críticas, com todas as suas limitações, há uma coisa que não me pode ser assacado: não justificar as afirmações que faço. Poder-se-á concordar ou discordar, mas as justificações, essas, apresento-as.
O que mais me penaliza, nas observações de João Bonifácio, não é a eterna história do incompreendido. Nem tão-pouco a falta de educação científica, onde se aprende a fundamentar as afirmações. Não, o que verdadeiramente me penaliza é ter chegado à conclusão que a única coisa que o meu livro despertou foi a preguiça do cérebro de João Bonifácio.
João Pedro George