Carlos Leone é doutor em História das Ideias pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Publicou recentemente, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (colecção «temas portugueses»), a tese de doutoramento:
Portugal Extemporâneo: História das Ideias do Discurso Crítico Português no século XX (2 volumes). Outros livros, do mesmo autor:
Dez Críticas (1999) e
O Essencial sobre Estrangeirados no Século XX (INCM, 2005). Carlos Leone (que em tempos teve a gentileza de criticar a minha tese de mestrado) enviou-me agora mesmo um texto que merece leitura atenta e poderá suscitar uma reflexão mais alargada. Ei-lo:
«O editorial do
Público de 3/3/06 tem vários aspectos que merecem nota, desde logo o seu título. O "assassinato" do reitor de Harvard Lawrence Summers é descrito como resultante do fundamentalismo politicamente correcto de alguns professores, o que é tanto mais excessivo quanto o afastamento de Summers não se deveu a nenhuma Faculdade em particular mas à Harvard Corporation, que gere a Universidade.
E neste caso, que nos EUA chegou mesmo a merecer a cobertura noticiosa da TV (órgão por excelência dos assassinatos e afins, logo criadora de uma imagem muito distorcida da pacata Nova Inglaterra), em todas as notícias surgidas na rádio, TV, jornais generalistas, Internet, publicações académicas, ninguém questionou as "inúmeras qualidades" de Lawence Summers. Pelo contrário, foi sempre lembrada a sua nomeação consensual há poucos anos e as altas esperanças que acompanharam a sua entrada em funções. Sucede que também se forneceu a informação que explica os "inimigos" que criou. E, com isso, evita-se a demonização do politicamente correcto (sempre olhado com uma desconfiança geral, dentro e fora da Universidade) e compreende-se melhor o apoio dos alunos (dos "undergraduate", sobretudo) a uma liderança essencialmente carismática. O caso é que o afastamento não se deveu a não querer enfrentar um voto de desconfiança de uma das faculdades (já era o segundo e não apenas de uma), deveu-se sim aos principais investidores da Universidade, que o haviam seleccionado, concluírem que tinha sido na sua qualidade de gestor que Summers falhara. Não foi uma batalha da boa ciência do gestor exemplar contra o relativismo P.C. que se travou, antes sim uma decisão estratégica por parte dos corpos gerentes da instituição, que o próprio Summers compreendeu e para a qual contribuiu, estando o processo ainda em curso, pois o sucessor está apenas a assegurar transitoriamente o lugar até se encontrar alguém com o perfil certo. E apesar de todos verem que será difícil, a contestação ao afastamento tem sido quase nula. Vale pena acompanhar o caso, até para se apreciar as diferenças agora que o processo de Bolonha conhece em Portugal todas as vicissitudes que não surpreendem ninguém. Aqui procura-se não o culpado do assassinato que nunca aconteceu, mas alguém com o perfil que Summers tinha mas não conseguiu fazer valer. Consagrado, mas com idade para ocupar o cargo por tempo suficiente para proceder às transformações que a Universidade precisa. E, ao contrário do que o editorial sugere, não há em Harvard ou nas universidades americanas nenhuma ortodoxia politicamente correcta (ou outra), há sim uma prática consolidada de diversidade e autonomia entre as Faculdades, que Summers tentou remodelar centralisticamente. Não que isso seja visto aqui como um pecado, como em Portugal há quem goste de fazer crer; a questão está em que o fez de modo conflituoso e arbitrário não só nas declarações (eufemisticamente aludidas no editorial) mas também nos actos. Por isso, a própria equipa directiva de Summers se desagregou. Casos mais particulares, como o que o editorial refere, o do professor e activista (
public intellectual) Cornel West, foram vários e todos resultaram em perdas escusadas para Harvard. Ora, não é preciso ser admirador da obra e do activismo de West nem pertencer à Harvard Corporation para perceber que tudo isto resulta num prejuízo para a instituição. E como esta acredita no rumo que traçou e para o qual se escolheu Summers, sem grandes oposições, procura-se alguém que exerça melhor a função. Não há assassinato nenhum, muito menos de Summers, que tem (ao que se noticia) propostas bem interessantes.
A descrição do editorial de uma Universidade feita para os que lá estão e não para as funções que deve exercer, a custo dos estudantes e da comunidade, aplica-se bem às universidades portuguesas (admito que haja excepções), mas não a Harvard ou à generalidade das americanas. Nestas, não faltam discussões livres e por isso mesmo nada disto é novo nem nada disto se reduz à moda P.C. que em Portugal há quem pense ser dominante nos EUA. Em rigor, já Max Weber, em
A Ciência Como Vocação, há quase um século, falava aos alunos alemães da americanização da vida universitária e da vida em geral, indicando o nexo entre burocratização e democratização, mas chamando também a atenção para o facto de isso não significar que nas Universidades, nos institutos de investigação, etc., o papel de chefia deixe de ser, também, político, isto é, obrigar a uma competência técnica-científica mas, igualmente, precisar de mobilizar, equilibrar, os recursos da instituição. Justamente o tipo de exercício de recursos humanos que o gestor Summers, reputado professor, não foi capaz de fazer. Esta liderança carismática falhou a sua missão como muitas outras, ao falhar institucionalizar-se. Ao menos Summers saiu com elegância, sem acusações vagas nem escândalos.
Podemos ler na tese do editorial mais uma tentativa de importar as
science wars, que há anos se tenta criar em Portugal apesar da falta geral de cultura científica (à imagem da importação da Contra-Reforma sem que tivesse havido Reforma… mas sobre essas guerras de alecrim e manjerona já escrevi no
Expresso em 1997). Mais grave do que isso, que já não é pouco, podemos ver como é já normal na Imprensa portuguesa o comentário obliterar a informação prévia ao leitor, que fica com os comentários antes mesmo de conhecer os problemas. Por isso, a terminar, uma boa notícia: Harvard e a Ivy League continuam grandes, e a Nova Inglaterra cheia de vida.»
Carlos Leone