A minha estreia nos jornais (
O Independente, 12/12/1997) deu-se com este texto.
Charles Bukowski revisitado (e maltratado).
Considerado por Sartre e Jean Genet como um dos maiores poetas americanos contemporâneos, Charles Bukowski foi reeditado pela conceituada Relógio d'Água. E antes o não tivesse sido, pois para quem aprecia literatura e gostaria de conhecer melhor a obra deste escritor, a presente edição é para esquecer. Pelo lugar que disfruta no meio editorial português, esta editora dever-se-ia sentir obrigada a tratar com mais cuidado e com outro brio profissional as obras que edita. Num país que o tem ignorado, Bukowski merecia melhor.
A Sul de Nenhum Norte (originalmente publicado em 1973 pela Black Sparrow Press) mostra-nos agora um Bukowski truncado, mal traduzido, onde o sub-título da edição original (
Stories of the Buried Life) fica na gaveta do tradutor (Manuel Resende); não existe um índice dos contos (e são vinte e sete); as gralhas são mais que muitas e, pasme-se!!!, há contos que estão incompletos (
Solidão)! Assim não vale a pena ler livros. Muito menos ainda desembolsar os quase três contos que este custa.
O leitor português perde pois uma das poucas oportunidades para retomar contacto com o universo literário deste escritor norte-americano, num livro que nos relata, no original, o dia-a-dia nos subúrbios de Los Angeles, onde a cerveja e o bourbon dão vida a personagens dominados pela violência e pelo sexo. Vagabundos, prostitutas, bêbados e outros marginais perpassam ao longo das suas páginas, retratados com um humor lúcido e uma paixão irredutível pelo perverso. Bukowski contruiu toda uma obra com o peso da sua própria existência. Bêbado santificado numa prosa larvar, o álcool foi o companheiro inseparável da vida e da obra deste escritor que nasceu em 1920 numa pequena cidade alemã, Andernach. Aí viveu até aos três anos de idade, altura em que foi levado para os Estados Unidos, país que não mais abandonou e onde veio a morrer aos 74 anos de idade, vítima de uma leucemia.
Através do seu alter-ego, Henry (Hank) Chinaski, as histórias deste
A Sul de Nenhum Norte (no original
South of No North – Stories of the Buried Life) são narradas num tom que se fica entre o realismo obsceno e a sátira feroz, usando e abusando de imagens escatológicas, frases mordazes e vocabulário pouco recomendável. Num estilo coloquial, característica saliente da ficção americana, as suas frases simples, curtas e sem pretensão intelectual, lembram o estilo dos melhores contos de Hemingway e Saroyan, mas com um humor que estes nunca revelaram.
Poeta dos subúrbios, Bukowski foi durante muito tempo um fantasma no mundo espectral do
underground americano, enviando os seus poemas e escritos de velho indecente a revistas marginais e pornográficas de tiragem reduzida. Decidiu tornar-se escritor profissional em 1968 quando John Martin da Black Sparrow Press lhe ofereceu um rendimento mensal para toda a vida. Encontro feliz, pois o êxito de um foi o sucesso de outro. Traduzido na Europa, onde logo mereceu maior atenção que nos Estados Unidos, chegou a ser o escritor americano mais vendido na Alemanha e em França. Para a história fica ainda a sua polémica passagem pelo prestigiado programa literário
Apostrophes, onde se embebedou em directo frente a 50 milhões de espectadores. Abandonou o programa a meio, assediou uma das escritoras convidadas e ameaçou o moderador Bernard Pivot. O filme
Barfly, realizado por Barbet Schroeder e interpretado por Fay Dunaway e Mickey Rourke, consagrou-o definitivamente.
Charles Bukowski permaneceu, todavia, um homem coerente e, por isso, inevitavelmente só. Fiel a uma peculiar honestidade, deixou à sua passagem um rasto de veneração e de ódio. Goste-se ou não, merece ser lido com rigor. Precisamente o que falta a esta edição da Relógio d'Água.
ATENÇÃO: Esta edição miserável continua à venda. Via-a ontem nos escaparates da FNAC do Chiado.
João Pedro