Os livros, não por força os melhores ou os de que mais gosto, mas aqueles de que me lembro exactamente onde, como e quando os li, e que os li de um só fôlego. Uma lista de memórias de leitura, não de melhores livros (pela precisão,
mind you, que a pretensão é a mesma). Por essa razão, não corro o risco de me esquecer dela.
Papillon de Henri Charrière. Quando nasci, já lá estava na estante, ao lado do Irving Wallace, do
Olhai os Lírios dos Campos e do Dr. Spock, o famoso sexólogo. Já lá estava em casa, quer dizer, a casa era a dos meus pais. Sentei-me a lê-lo no sofá de couro ao fundo, na marquise fechada da sala. Ainda lá cabia todo dentro, virado de costas para a luz e para o frio (os caixilhos de alumínio são sempre frios). Quando o reli, anos mais tarde, fui sentar-me exactamente no mesmo sítio para sentir exactamente o mesmo e gostar exactamente da mesma maneira. Posto assim, poderá parecer impossível.
Catch-22 de Joseph Heller. Estava na casa dela e o livro era, é, da mãe dela. Estava na casa dela e não conseguia dormir. Ela dormia. Fui para a sala passear. A sala era acolhedora e eu gostava de estar naquela sala. Tirei-o da estante porque tinha ouvido dizer que era bom (com o
Viagem ao Fim da Noite fiz o mesmo). Sentei-me no sofá a ler. Li-o até de manhã, consciente de que estava a ler pela madrugada fora um livro supostamente bom num sofá de pele em casa da namorada que supostamente estava a dormir. Felizmente, o estar tão consciente de estar consciente disso não me impediu de gostar do livro. E se acrescentasse «quem diz o livro diz, está claro, o resto» não seria, é óbvio, verdade.
Crime e Castigo de Dostoievsky. Quando era puto, meti na cabeça que havia de ler livros segundo certos e determinados planos, do género todos os do Eça ou todos os do Aquilino Ribeiro. Bom: os meus pais tinham destas colecções «Obras Completas de» em abundância, como o Eça no Círculo dos Leitores, aquela da RTP com bolas de cor nas lombadas (Mar Morto de Jorge Amado seguido de Como Jogar Xadrez no Escuro), e agora também a do Público e a dos Prémios Nobel. Entre elas, a do Dostoievsky numa edição vermelha de capa dura «debruada a ouro», como se diz. Li três de seguida (talvez a última ocasião em que a expressão «três de seguida» fez sentido), por esta ordem:
Os Irmãos Karamazov,
Crime e Castigo e
O Jogador. Depois, desisti do plano como se desiste de um brinquedo novo excessivamente elaborado.
My Dark Places de James Ellroy. Li-o em casa, numa casa que era a minha mas já não é. Li-o em horas de culpa que roubei ao trabalho, enrodilhado no sofá. Agora, está ali - estou a vê-lo -, na mesma estante, no mesmíssimo lugar da estante. É um livro quase impossível, sobre a memória que um puto tem do assassinato da mãe. Um assassinato que volta a investigar depois de adulto. Um homícidio que um homem levou uma vida inteira para olhar de frente, e com ele a si mesmo. Os pais de Ellroy divorciaram-se era ele ainda criança. Eu acho que os filhos de pais divorciados se lembram melhor da infância; eu lembro-me muito mal. É como se fosse importante começar a recordar mais cedo, logo. Toda a gente sabe a idade que se tem na terceira classe, eu não; e por aí fora. A primeira coisa de que me lembro é a lágrima do Misha em 1980, tinha eu sete anos. E depois temos este machão, Ellroy, que fala da mãe promíscua com uma ternura imensa, uma ternura tanto mais perturbante e terna por ser servida pela arma que Ellroy usa para escrever: a rajada de metralhadora, e o ritmo
staccato.
Sinais de Fogo de Jorge de Sena. Para quem cresceu a atravessar a placa na Rua Garcia de Orta que assinala o fim do concelho de Lisboa para ir apanhar o 46-A, é uma outra adolescência. Sena fala, sem pieguices e com uma limpidez difícil, de amores adolescentes, do Sol e da praia, da iniciação sexual e de como o sexo envelhece as pessoas, de como o sexo desencadeia na biografia adolescente uma cronologia nova. Luz, Verão, prazer, culpa, redenção. A criança de Junho, em Agosto, é já um velho. Ficou-me a memória daquele banho de mar que nem tudo lava porque é impossível, e mesmo não é desejável, que o faça, ou seja, que a vida se viva em permanente inocência. A adolescência não é a idade da inocência, é a idade para acabar de vez com a inocência. Precisamos dos pontos de não retorno criados pelas consequências do que fazemos, é isso que faz de nós homenzinhos.
O livro não era meu, nem sei de quem era e não me lembro onde o li. Só sei que tem a edição da Asa mais feia que conheço e que, ainda hoje, e sendo porventura o livro de que mais gostei, não o tenho.
Rui