Um uivador furioso. Que odiava tudo e todos. O mundo, a humanidade. O ser humano? Um merdas, um cobarde, um gorila comilão. O amor? “A palavra mais fedorenta, obscena e peganhenta de todo o dicionário”. Progresso? Felicidade? Esperança? Sortes-macacas! Pecado original sim, salvação nunca. Céline morreu a espumar. A refilar. Delirante, torcido de ódio. Uma congestão cerebral. Horas antes tinha acabado de escrever um romance,
Rigodon. Vivia em Meudon, no sudoeste de Paris. Com a mulher, Lucette, e o gato Bébert. Vestia calças de jardineiro presas com uma guita e uma camisola imunda e rota. Dentes podres, unhas sujas, o jardim, a casa, os movéis, os objectos, tudo miserável, estragado, enferrujado.
Céline escrevia na linguagem falada das classes trabalhadoras, no
argot dos soldados, no calão da rua, do
lumpenproletariat, dos carteiristas e dos trapaceiros, dos donos de bordéis e dos vagabundos. Um francês oral e popular ignorado pela literatura. Um francês a milhas da linguagem académica, da prosa literária, da escrita asseada, com a frase direitinha, a sintaxe bem-comportada, os verbos no conjuntivo, a bela gramática. Céline inventou palavras, criou neologismos. Uma cacofonia de plebeísmos e vernáculo que virou do avesso o francês educado de Voltaire, da
Enciclopédie e do liceu. Céline criou uma música e uma melodia próprias, uma escrita visual e barulhenta, atafulhada de pontos de exclamação e de reticências, alternando parágrafos convulsivos e caudalosos com frases truncadas, lacónicas e sem maneirismos verbais, onde as palavras atingem directamente o sistema nervoso sem passar pelo intelecto, pela razão. Com Céline a língua francesa perdeu o pudor, ganhou emoção, tornou-se vulcânica e escatológica.
“As ideias? Nada mais banal do que as ideias. A forma determina a acção da obra. A mudança de forma é que provoca a mudança de conteúdo. Não quero contar, quero fazer sentir. Escrevo como sinto. Não sou homem de mensagens. Não sou homem de ideias. Sou homem de estilo. E ao estilo ninguém se quer vergar. Dá imenso trabalho, vivem para gozar a vida, e isso não deixa trabalhar muito. O calão? Palavrões, obscenidades? Também Rabelais e Villon os diziam. O calão é feito para o operário poder dizer ao patrão que o detesta: vives bem e eu vivo mal, exploras e anda num grande carro, vou dar cabo de ti...”
“Agora há tanta gente que tem instrução superior, qualquer um que tenha diploma ou licenciatura pode escrever um romance. É a carta à priminha em ponto maior!”
“O Sartre? Uma ténia dos cagalhões, um merdoso... um bufo falhado... um chacal!... um bandulhozinho com olhos de feto!”
“Talvez haja uma coisa – a única coisa que talvez seja verdadeira –, é que não sei gozar a vida, não vivo. Não existo. E então, como não gozo a vida, tenho esta superioridade em relação aos outros, que estão realmente podres mas sempre a gozar a vida. Gozar a vida é beber, enfardar, arrotar, foder, é uma série de coisas que pregam com o homem no zero, e com a mulher também. É como o vício. Eu estava metido no vício até ao pescoço, na medicina até ao pescoço e nos bordéis até ao pescoço!... Mas foi preciso ter saído. Era o que dizia a Marie Bell: «Tu não és vicioso, porque se fosses vicioso não descreverias o vício, estarias lá metido». Quando não estamos lá metidos, descrevemo-lo. É como a política!... Estão lá metidos. Gostam dos consumidores. Estão lá metidos... Gostam dos netos... Pedem beijos... Gostam de uma carícia no quarto de casal e dizem: «Ah, querida, hoje trabalhei tanto!» Gozaram, ejacularam, fizeram coisas de porcos, são porcos como os outros!...”
“Prontos para atravessar os desertos e as ondas e procurar mundos diferentes noutro lado qualquer”.
(entre aspas: colagem de textos com as mais diversas proveniências)
João Pedro