Foi uma madrugada difícil. Adormeci no sofá, um sofá barato e desconfortável, responsável por torcicolos, hérnias, obesidade e outras adiposidades. Adormeci quase feliz, quase sereno, apesar dos incómodos. Algumas sondagens apontavam para a vitória de Kerry no Ohio. Nestes últimos tempos, silenciosamente (porque percebo pouco e gosto ainda menos da política pura e dura; mas atenção, sempre votei, as comissões eleitorais, a minha junta de freguesia, ninguém poderá impedir uma candidatura minha à Presidência da República), silenciosamente, dizia, desejava a vitória de John Kerry. Reparem, considero-me um rapaz de direita, a minha socialização primária (na família) foi feita à direita, a minha Avó (adoro-a, já vai nos 90), que viveu mais de quarenta anos em África e gosta do Salazar e do Cavaco Silva, diz sempre às refeições, antes de começarem: à mesa não se discute nem política nem religião. Claro que as discussões acabam invariavelmente por acontecer (os primos são os piores) embora, no final, quem acaba sempre por ter razão é a minha Avó, aliás, para quem não sabe, as Avós têm sempre razão. São discussões em que ninguém se entende, em que o tom de voz aumenta e exorbita, os primos zangam-se, o convívio fica estragado. Dizia portanto que a minha educação foi de direita, não me lembro de alguém ter votado à esquerda do PSD. A minha irmã é filiada no PP (embora não pague as quotas e não queira saber daquilo para nada, filiou-se por excentricidade, maluqueira, ela é assim e é assim que eu gosto dela, bem-haja!); a minha mãe e o meu padrasto (de direita e monárquico, pertence a uma associação Real qualquer coisa, embora muito distante, muito indiferente), sem terem filiação partidária, são claramente de direita, nem sequer conceberam a hipótese ver o filme do Michael Moore e isso deu discussão acesa à mesa de um restaurante chinês; o meu pai, que não vive em Lisboa mas em Viseu, é direita, direita, a África foi uma experiência para toda a vida... Ora eu cresci nesse ambiente, em cafés de bairros de retornados onde o ambiente era o do colonialismo português, falava-se de ruas e localidades africanas com muito mais frequência e à-vontade do que de ruas em Lisboa; são nomes, palavras, que projectam em mim uma ressonância quase mítica, ainda hoje, quando oiço falar na Ilha de Moçambique (onde o meu Avô paterno foi Administrador), no Bilene, em Porto Amélia, Niassa, Lourenço Marques, Polana, etc, fico em transe, apático, nostálgico. Porque aquelas conversas em cafés cheios de fumo e de copos de whisky, quando criança, fizeram com que incorporasse em mim memórias que não me pertenciam. Até a palavra “paludismo” me é tão próxima e familiar como se dele sofresse as maleitas e não a minha tia, que volta e meia fica de cama, com tremuras e suores ora frios ora quentes. Tudo muito reaccionário, com à-partes muito racistas e “ó tempo, volta para trás”. Diziam: África?, regressar a África?, nunca mais quero voltar, os pretos deram cabo daquilo tudo, quero morrer com a memória daqueles tempos intacta, como era naquele tempo. Sinto-me de direita, como quem nasce com uma doença genética. No entanto, por temperamento, estilo de vida, sinto-me mais próximo da esquerda. Claro que esta distinção direita/esquerda complica-se muito quando falamos da América, dos Estados Unidos. O Kerry não será de esquerda, só é de esquerda porque os Republicanos são de direita. Se o Kerry fosse Europeu, líder de um partido europeu, não tenho dúvidas de que pertenceria a um partido de direita ou do centro-direita, digo eu, que não percebo nada disto. Bom, mas, como dizia, adormeci descansado, deviam ser umas quatro da manhã, adormeci a assistir à directa do José Alberto de Carvalho e do Pedro Magalhães. Quando acordei, pouco antes das seis, o mundo tinha mudado, pior, não iria mudar. Bush era o mais que provável vencedor. A Florida já estava a encarnado e o Ohio era cada vez mais Bush. Senti-me desgraçadamente, desassossegado, encarquilhado, com o pescoço maltratado, os olhos pesadíssimos fustigados pela luz azulada e intermitente da pantalha televisiva e a sala às escuras. Pior, acordei enrodilhado no edredão, com os pés de fora, frios, gelados. Levantei-me para comer qualquer coisa, beber um sumo de laranja com cálcio produzido na América, marca Tropicana, a mesma que o Tony Soprano bebe (já repararam nele a abrir o frigorífico e a beber do pacote um sumo Tropicana?). Os restantes minutos televisivos serviram-me apenas para confirmar a vitória republicana. Desliguei e fui para a cama, tentar finalmente descansar e verdadeiramente dormir.
Agora, acordado e pequeno-almoçado, tento racionalizar relativizar as eleições americanas. Desde logo, e o menos importante, a vitória de Bush é óptima para o leitor dos jornais portugueses. É muito mais entusiasmante ler a maioria dos comentadores irritados, furibundos com a vitória republicana. Sempre preferi ver as pessoas irritadas, zangadas, exaltadas. Revelam-se mais, mostram mais claramente a sua natureza e o fundo de que são feitos. Assistir a um coro de opiniões auto-celebratórias e contentinhas é um espectáculo que me desgosta. Por isso, fico à espera, na expectativa. Quero ver o fel e a bílis dos intelectuais a correr em turbilhão. Depois, e este será o aspecto mais importante, a esquerda europeia só tem a ganhar com esta vitória. Sabendo-se que a maioria dos europeus desejava a vitória de Kerry é de supor que nas próximas eleições em países europeus os povos se queiram vingar de não terem podido votar nas eleições da metrópole mundial (actualmente, um português que vá a Washington sente provavelmente o mesmo que um indiano no século XIX sentia quando ia a Londres ou um moçambicano a Lisboa, estava na capital do Império, na metrópole). Prevejo por isso que, mais do que duas Américas (e os resultados finais nas eleições americanas mostram-nos que, no fim de contas, a América não estava assim tão dividida, Bush ganhou mais contra Kerry do que contra Al Gore), teremos uma América e uma Europa cada vez mais de costas voltadas, uma América de direita e uma Europa de esquerda, mesmo que nas razões de Estado da política internacional certas alianças se mantenham: a América continuará a ser o mal menor. E eu, pequeno e insignificante bípede perante tudo isto? Bom, eu continuarei, como sempre, a votar no Partido da Terra.
P.S. Não posso deixar de confessar e reconhecer que hoje é um dia feliz para mim. Acabei a pior tradução da minha vida (caríssimo Rui Branco, o Quentin Skinner está despachado, vamos comemorar?). É portanto um dia de contrastes, como aliás todos o são: feliz por causa da tradução, infeliz por causa do mundo. Como é a olhar para o umbigo que todos nascemos e morremos, a minha pequena felicidade é muito mais importante do que o mundo. É mesmo assim, não há volta a dar.
João Pedro