Isto quando se parte para um filme com vontade de gostar dele, depois quando não se gosta é muito mais irritante. Ninguém gosta de sentir as suas expectativas defraudadas; o ferrete da fraude é pior que o do roubo.
Falta cinema, acho. Quando o principal recurso cinematográfico é o campo/contra-campo em close-up, ou o travelling em close-up, quando de propósito se dirige, por esse meio, a atenção do espectador para o texto e para as caras dos actores, é melhor que o texto seja cintilante e que a representação seja muito boa – porque é só isso que se tem. Ora não o são, nem um, nem outra.
A Julie Delpy, como é natural, perdeu aquela coisa adolescente, e não é por acaso que ele lhe pede para ela soltar o cabelo a ver se fica como antes. Não consegue, mas eu até prefiro assim. Não é por aí. Claro que se pede muito dela, e numa língua que não é a sua nativa, mas a Delpy está demasiado declamativa, apesar de (ou porventura por causa disso mesmo) ter melhorado o sotaque em relação ao outro filme (dizem-me). O Ethan Hawke está a envelhecer mal, parece rugoso e sem charme, dentes e boca feios (reparem numa certa ansiedade do Etahn - não do personagem - quando lhe pede uma passa e lhe crava um cigarro), irritante no morder sistematicamente o lábio inferior. Já é mau o ar embevecido, tipo aparvalhado, com a mais ínfima banalidade que ela emite. Mas é ainda pior o ar permanentemente postiço.
Estas pequenas irritações funcionam como uma mosca na lente da câmara na qual se está sempre a reparar. Ou seja, distraem o olhar do conteúdo para o meio, colocam o foco no processo do que estamos a ver e quebram a desejável suspensão do espectador no interior da história. Em suma, criam distância em relação ao espectador. E, quando se olha para o processo, começam a ver-se as costuras. O argumento é todo em esforço, sem souplesse, e previsível. Parece um halterofilista inguche. É como uma canção pop, só que má. É assim: tema (digamos, a fome no mundo), historieta ilustrativa (fui à Índia, etc.), remate moral ou não (normalmente, sim), festinha no braço, novo tema. Claro que era indispensável fazer conviver o pequeno casulo criado no primeiro filme com o mundo, sem matar a magia entre eles. Mas era mesmo preciso aquela cena no café? Na América não há mesmo cafés destes? É tão bonito que ela esteja a salvar o mundo, a fazer alguma coisa de concreto em vez de, em abstracto, teses de doutoramento em história ou mesmo, ainda que farisaicamente, a trabalhar no governo (os políticos não resolvem nada, esses chupistas). Ai é tão bonito.
E outra coisa: ou eles se encontravam e começavam logo a tocar-se e faziam amor e falavam depois, mas só depois (ter feito amor com alguém é uma espécie de porta ou de atalho para a outra pessoa, que fica sempre lá e que pode ser aberta em qualquer momento no futuro) ou então não se tocavam de todo, apenas no fim. Isso tinha alguma lógica. Agora, Jesse Wallace demora precisamente 1 minuto e 35 segundos a tocar no braço de Céline. E depois não pára, repetidamente, e mais uma vez e mais, e mais, e ela não quer até que começa a cantar. Ao fim de nove anos. E porque raio é que ela demora uma hora e tal de filme a perguntar-lhe o que era aquilo do anel no dedo dele? E porque é que ele, se lhe quer tocar, nunca lhe encosta a palma da mão aberta nas costas que a camisa, tão generosamente, prodigaliza?
A propósito: e a camisa do Ethan Hawke? Han? Maravilha. Merece este parágrafo.
O filme só arranca verdadeiramente na parte final da cena no barco, e durante toda a cena no carro a caminho de casa dela, esta sim francamente boa. Daí até ao final o filme é bom, embora ele continue a fazer aquelas trejeitos e sorrisos postiços. Contudo, e pensando melhor, não haverão muitas outras formas de, não indo embora, reagir àquela valsa. Eu estou com esta conversa, mas teria perdido igualmente o avião, não por causa da valsa, mas por vê-la imitar assim a Nina Simone.
Rui