ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

sexta-feira, outubro 29, 2004

 

Um desabafo e "Até quando, Possidónio Cachapa?"



Há mais de um ano, mais precisamente no nº 4 da revista Periférica (Inverno de 2003), publiquei um texto sobre António Mega Ferreira, Possidónio Cachapa e Inês Pedrosa. Ontem, por causa da capa com o António Lobo Antunes e de uma chamada para a página 44 – Possidónio Cachapa, “Autobiografia” – comprei o Jornal de Letras, Artes e Ideias. Pensei, perguntei-me: será que o jovem Cachapa já está a escrever a sua autobiografia? Será pré-publicação? Mas quantos anos tem o homem? Sessenta? Setenta? Que vida foi a dele? Que episódios, acontecimentos levam o jovem escritor (39 anos) a relatar-nos publicamente a sua vida? Dei o benefício da dúvida, gastei 2 euros e 60 cêntimos, o preço do jornal. Antes de continuar, e em clima de tanta barafunda por causa do Prof. Marcelo e da liberdade de expressão, vou contar-vos uma historieta sobre a relação imprensa/publicidade/(pequeno) poder económico.
Antes de colaborar na Periférica (à borla, não recebo cheta), trabalhava na revista Os meus livros (a sucessora da Livros, que pertencia ao Independente que, por sua vez, pertencia a Paes do Amaral), dirigida pela jornalista Tereza Coelho (onde me pagavam, quando calhava e depois de muitos telefonemas, chatices várias, mal e porcamente). Em conversa com a Tereza, discutindo os livros sobre os quais iria escrever, sugeriu-me e passou-me para a mão três livros de autores portugueses: Amor, de António Mega Ferreira, O Mar por Cima, de Possidónio Cachapa e Fazes-me Falta, de Inês Pedrosa. Que fizesse um texto maior, duas páginas da revista, sobre. Acrescentando, quando já me ia embora: “é para dizeres mal...” E riu. Eu também ri, cúmplice: conheço-me, sei que tenho uma propensão congénita para o mal-dizer, além disso conhecia a escrita deles, à partida já não gostava, já tinha lido outras coisas, só um milagre me faria mudar de ideias, afinal as pessoas não mudam de escrita de um dia para o outro mas, quem sabe... E fui ler, sublinhei, voltei a reler páginas para atrás, para me certificar, para tentar perceber coisas que à primeira me tinham escapado. Ao fim de uma semana, mais coisa menos coisa, estava feito. E dizia mal, muito mal, pessimamente. Uma merda, para falar depressa e bem. Telefonei à Tereza: olhe que a coisa está forte, gostava que lesse, que se certificasse se há frases insultuosas e mal fundamentadas. Leu, riu-se, ri-me, tudo bem, não está insultuoso, está bem fundamentado, vamos em frente. Fui para casa feliz da vida. Quando voltei à Tereza, para entregar outro texto sobre um outro livro qualquer, perguntei: quando é que sai? Não sai, ou mudas o texto ou não sai. E mais disse: está insultuoso e mal fundamentado!!! Utilizas frases retiradas do contexto e isso não pode ser, não fundamenta opinião nenhuma (que tal citar os livros por inteiro?, respondi, tentando manter a calma, o sangue frio). Escuso-me a relatar quer o que senti, quer a minha reacção. Limitei-me a dizer que assim não, assim batia com a porta. Tudo bem, se é isso que queres, limitou-se a dizer-me. Sem mais cenas, sem pedidos para que reconsiderasse, que a porta estava sempre aberta para quando quisesse voltar (havia uma testemunha: José Prata, o braço direito da Tereza, logo desmentirá a minha versão, é certinho). Fui-me. Não me pagaram o texto, o trabalho, não fiquei com os livros (para oferecer a certos amigos que eu cá sei ou para vender nos alfarrabistas). Não me surpreendeu. A falta de profissionalismo e a incompetência da Tereza são do conhecimento geral: dá os mesmos livros a diferentes colaboradores para escreverem e no final há um dos textos que vai fora, fica na gaveta, porque a senhora se esqueceu, fez confusão, sem um pedido de desculpa, sem o legítimo pagamento; com outros textos, perde-os simplesmente ou diz que não os entregámos; corta textos, subtrai frases, acrescenta outras da sua lavra; troca as assinaturas dos textos dos colaboradores (a mim aconteceu-me). Assim, com grande descontracção, leveza e um encolher de ombros. Estas coisas demoram tempo a perceber, principalmente numa fase das nossas vidas em que escrevemos quase de graça, queremos é ver os nossos textos impressos, sentir essa vaidadezinha, a ilusão que nos lêem. Qual o valor do dinheiro perante isso? Quase nulo. E, no fim de contas, que interesse tem tudo isto? Quase nenhum. É apenas um exemplo de como o poder económico (pequeno, neste caso pequenino) fala mais alto. Um exemplo da pequena censura. A revista arriscar-se-ia a perder a publicidade das editoras do Mega, do Cachapa e da Pedrosa. No dia em que o meu texto deveria ter saído, lá estava a dita publicidade, ainda por cima a um dos livros referidos, o do Possidónio. Além disso, a Inês Pedrosa tinha elogiado, na sua crónica do Expresso, a revista da Tereza (que deve ter pensado: como poderei eu publicar um texto a dizer mal da Pedrosa depois de ela me elogiar publicamente?; eu até não gosto dos livros delas, mas tenho de ter cuidado, ninguém pode saber, o importante é, à boca grande, dar umas palmadinhas nas costas, fazer umas visitas, fazer exercícios de curvatura de espinha; e o Mega, o todo poderoso Mega, ele está em todo o lado, não posso arriscar-me, posso ficar sem a revista, podem mandar-me fechar a loja...). Pessoalmente, tudo isto não passa de um desabafo, depois de quase dois anos decorridos.
A parte do texto que escrevi sobre o Possidónio Cachapa (afinal foi ele quem desencadeou estas memórias, esta “autobiografiazinha”) dizia assim:

O Mar por Cima, de Possidónio Cachapa. Uma prosa encaracolada, com planos temporais alternados, não passando de jogos de arquitectura narrativa que até o leitor mais atento sente dificuldade em acompanhar. Não espanta por isso que haja uma confusão de personagens, quase fantasmas, que não têm qualquer espessura psicológica e se esquecem ao virar de cada capítulo. Conseguimos perceber, no entanto, que há a Manuella, de famílias bem, finalista de arquitectura, alvo de assédio sexual no trabalho. O Ruivo, um polícia com problemas mal resolvidos que se apaixona por Manuella. O Xuinga, um delinquente afro-descendente que assalta o Miguelito numa casa-de-banho pública (a cena prolonga-se por quase todo o livro). E pouco mais, além de uma parte da acção decorrer nos Açores, enquanto Manuella e Ruivo vivem na Lapa. Lá pelo meio, sem se perceber muito bem, há sexo, brutalidade policial, ganzas, calão, pedofilia e homossexualidade. Como dizia Jorge de Sena, “não passam de conservas de realidade no azeite dos lugares comuns”.
Mas vamos à escrita. Alguém sabe explicar o que é um “abismo preguiçoso” ou um “penhasco vulgar”? E as “masmorras do umbigo”? Repare-se em frases como: “o pé numa poça fria, estava um rapaz pequeno” (p. 45); “corpos lançados à lua, como que a subirem planetas à unha” (p. 58); “quando não se nasce com jeito de mãos, fica-se sempre em estado de emaravilhamento perante o manual criar dos outros (p. 81); só mais esta: “do mar, a terra parece que chega sempre mais depressa do que sim” (p. 213). E depois há foleirices como “curvas de antebraços que se amam”, “sorriso moldado entre maços de tabaco”, “fumadores que fumam o último trago”, parágrafos que começam com “eram oito, as horas, quando…”, imprecisões, como chamar batráquio à osga, quando se trata obviamente de um réptil (p. 88), afirmações enigmáticas como “a meia-idade é o limbo do sexo no coração dos filhos” (p. 95); “fechar com chaves a alegria porque imaginamos que os samurais são mais felizes” (p. 128).
As vírgulas são anárquicas, umas vezes entre o sujeito e o verbo, outras tornam a leitura dolorosamente soluçante. Enfim, uma escrita que não cataliza a acção, sem causalidade, onde as insinuações, as ambiguidades e as situações estão mal construídas, com a excepção do capítulo onde Manuella e Ruivo se conhecem. Não é fácil dizer bem.”

Este naco de crítica mereceu uma resposta do escritor: referia-se-me como “um sincero camponês que se assina pelo aristocrático nome de George” e “boy George” (esta gostei, teve piada, há que reconhecê-lo). A minha réplica, no blog da Periférica, terminava com: “para quem se assina pelo Possidónio nome de Cachapa, é preciso ter coragem e estômago de baleia. Há quem lhe chame completa ausência de boa educação e sugira a leitura quotidiana de manuais de urbanidade. Eu chamo-lhe apenas criancice.” A questão ficava arrumada. Ele não me gramava, eu não gramava a escrita dele, dificilmente voltaria a perder tempo a lê-lo. Mas não resisti, não resisto. O texto do JL intitula-se “Começar outra vez”. Aparentemente, não se trata de uma pré-publicação do novo livro, uma autobiografia, do autor de A Materna Doçura. Trata-se de uma crónica, na última página do jornal, onde antes escrevia o não menos inenarrável Jorge Listopad (venha o diabo e escolha). A crónica, desde logo, começa bem, outra vez: “Era Abril e se calhar chovia. O que em Évora não é mau, pois nem tudo era confortável nesse tempo”. E continua, mais à frente: “Cresci entre pradarias improvisadas, cheias de índios, e fornos de cal desactivados que faziam as vezes de gruta. E tinham eco. E tinham eco.” Aquele pradarias seria um jogo de fonética com “padarias”? Fornos de cal?, para cozer pão? Índios?, os padeiros? E aquela repetição – “E tinham eco. E tinham eco” – será o quê? Serve para quê? Logo a seguir, sem mais aquela, à laia de erudição patético-foleira, uma expressão latina: “in illo tempore, crianças caminhavam ao longo das estradas”. É extraordinário. Reparem, estas coisas publicam-se e sem que ninguém diga nada, faça um reparo, chame a atenção. Talvez o mal esteja em mim, masoquista me confesso: é que o Possidónio continua a abusar da minha paciência. Vejam-se só estas frases, expliquem-mas, s.f.f.: “Onde se prova que são prematuros os que morrem mais...” (a frase acaba aí mesmo, as reticências vêm no original). Mais e mais: “com os cabelos molhados de banhos em pedreiras imortais”, “foi aí que rebentou o 25 de Abril e a ordem das coisas se alterou. Podia andar-se pendurado dos braços dos adultos, que lavavam as ruas com gritos de «Fascismo Nunca Mais» ou de «A terra a quem a trabalha!»” Uma maravilha. Andar-se pendurado dos, lavar ruas com gritos. Mas Possidónio, apesar de tudo, revela alguma ciência, dois dedos de testa: “Também é aí que se aprende que se pode escrever com clareza sobre tudo, menos sobre nós, mistério maior do que se traz às costas”. Depois, em jeito de manifesto, lança-nos com isto à cara: “o fracasso das boas ideias [leia-se, as coisas que escreveu, os argumentos, as cenas de teatro e os sketches de televisão] mal explicadas a um país de surdos. A desilusão. A incapacidade de viver entre argolas e setas alaranjadas [atenção Santana!]”. Sobre A Materna Doçura: “a maioria dos leitores recebeu-o como ele tinha de ser recebido: como um documento sobre a busca do amor. Foram precisos vários anos e uma nova edição mais alargada para que o Sistema de Informações e Segurança do Sântano (SIS-S) o metesse no Índex dos livros «potencialmente criminosos», ao lado dos de Thomas Mann ou de André Gide”. É preciso ter lata, ser muito vaidoso. E aquele SIS-S é o quê? Que raio de subtileza é esta? Concretize, homem, tem medo do quê? Não estamos no Estado Novo, as ruas já foram lavadas com gritos... E que Índex é aquele? Percebem alguma coisa? Que autobiografia é esta? Que escritor é este? A gabarolice do Possidónio é de arrancar os cabelos. Ele, que tão indignado ficou com a minha crítica, vem depois armar-se no grande cívico, o alerta consciências, o escritor-sirene: “E as crónicas? Perguntei-me várias vezes, por que diabo as escrevia eu, se tanta gente preferia que me ficasse apenas pela invenção. E só me resta responder «por presunção»; pelo meu lado humano, o de quem está vivo e sonha com um país melhor. A ilusão de contribuir para o debate. Dizer o que se pensa num país em que se pensa no que NÃO se deve dizer, não é muito fácil (nem dá tanta alegria como possa parecer). Mas ainda assim é uma vontade que se instala. Como se fosse a minha vez de estragar as mãos a construir o parque infantil onde os meus filhos brincarão adultos”. Enternecedor, sem dúvida. Mas muito descaramento. Ele que não aceita críticas e goza com o meu nome, não discute sequer ideias, opiniões, limita-se a brincar com o nome que Deus e a minha família me deram. E cagança, muita cagança: “ilusão de contribuir para o debate”, “dizer o que se pensa”. Realmente é preciso ter muita coragem para falar de SIS-S e outras referências sibilinas, não concretizadas, não assumidas. É melhor parar por aqui, apenas uma última referência às fotografias que acompanham este texto miserável: Possidónio com as primas aos 6 anos, Possidónio aos 12 anos, Possidónio na actualidade. Piroso, convencido e, pior, desprovido de todo e qualquer sentido de auto-crítica. Basta! Até quando, Possidónio?

P.S. Peço desculpa pela desproporcionalidade deste texto. A verdade é que tudo isto me irrita e muito. E, bem vistas as coisas, tenho estado ausente deste blog.
João Pedro



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