[foto roubada daqui]
«O segundo manifesto, o
Antropófago [o
Manifesto Antropófago de Oswaldo de Andrade, 1928], desenvolve explicitamente a metáfora da devoração. Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse donde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, “assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais ineludíveis que dariam ao produto resultante um carácter autónomo e lhe confeririam, em princípio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação”. Oswaldo subvertia a ordem de importação perene – de formas e fórmulas gastas – (que afinal se manifestava mais como má seleção de referências do passado e das orientações para o futuro do que como medida da força criativa dos autores) e lançava o mito da antropofagia, trazendo para as relações culturais internacionais o ritual canibal. A cena da deglutição do padre d. Pêro Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade.
A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos “comendo” os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também – e procuro agora – relê-la nos textos originais, tendo em conta as obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia ou tal poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos, se retraiu na constatação de que as implicações “maiores” do movimento – e com isso Gil quer dizer suas correlações com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas – foram talvez fruto de uma superintelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a ideia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada. [...]
No entanto, há pertinência em notar na Tropicália (na esteira da Antropofagia) uma tendência para tornar o Brasil exótico tanto para os turistas quanto para brasileiros. Sem dúvida eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro católico tropical, feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade internacional mediana. Claro que reconheço que reflexos de um turbante de bananas não seriam particularmente úteis à cabeça de um pesquisador de física nuclear ou de letras clássicas que tivesse nascido no Brasil. Apenas sei que este fato “Brasil” só pode libertar energias criativas que façam proliferar pesquisadores de tais disciplinas (ou inventores de disciplinas novas) se não se intimidar diante de si mesmo. E se puser seu gozo narcísico acima da depressão de submeter-se o mais sensatamente possível à ordem internacional»
[Caetano Veloso,
A Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 2002 (1ª. ed. 1997), pp. 247-252].
Caetano Veloso, hoje, no Pavilhão Atlântico.
Rui