ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

terça-feira, setembro 28, 2004

 

Vamos jogar a uma coisa (XVI)

Para escrever esta nota final, a um ano e meio de distância, tive de mergulhar no baú onde empilhei todos os e-mails que recebi. Sorrio ao relê-los, sorrio quando descubro que nasceram clubes on-line de pessoas que gostariam de ter estado naquele comboio. Depois regresso à mensagem que mais me comoveu e à que considerei mais desagradável: tinha-as colocado de parte, e visto que são ambas anónimas penso que poderei reproduzi-las aqui, mesmo sem a autorização dos autores.
Eis o mais perverso:
«- Posso começar a ler?
- Não, ainda não. Espera que o comboio parta. É preciso respeitar exactamente as indicações do texto. Quando o comboio se mover, tu começas. Antes não. Ainda faltam dez minutos.
- Ao menos lê-me a primeira frase.
- Está bem, a primeira e depois chega. Começa assim “Compraste o ‘Le Monde’ no quiosque da estação, antes de subir para o comboio...”
Ele, por seu lado, tinha comprado o jornal uma hora antes. Não tinha previsto apanhar o comboio naquele dia. Foi o texto escrito pelo marido que o convenceu. Aquele estranho conto, publicado precisamente naquela sexta-feira. Naturalmente, ela tinha-o avisado tanto do conto, como do ‘Le Monde’, mas não tinha pormenorizado o conteúdo do texto. Ao chegar ao fim da última linha, ele posou o jornal, pagou o café e meteu-se num táxi em direcção à estação. Ter-se-á reunido a ela no seu compartimento, com discrição. Ela não pareceu surpreendida por vê-lo. Sentou-se em frente a ela e deram-se as mãos, em sinal de confiança. A confiança dos amantes. Na verdade, muito simples: nada mais que seguir escrupulosamente as instruções do texto. Apenas com uma única, e relevante, diferença: que ele estivesse ali. Que ele tivesse relido o conto no momento em que ela o descobria. E que juntos tivessem jogado o jogo do marido. Ele ali a fixá-la durante todo o trajecto, a espiar o mais ínfimo frémito da sua pele, a imaginá-la nua por debaixo da roupa, a ver o seu dedo a deslizar sob a axila, a adivinhar-lhe as palavras nos lábios: quero a tua pila dentro da minha cona. Sim, mas a sua pila, a pila dele, do amante. A sua pila enorme que a faz gritar. Porque o amante não é um tipo delicado, um contentado de longo curso, um esteta destas coisas. O amante, ele, agarra nela como a uma cadela, a grandes bordoadas, com as costas contra a parede ou na esquina de um parque de estacionamento. Penetra-a até a fazer sufocar, com grandes golpes de rins, escava-a, e quando ela se precipita no orgasmo, esgotada, assaltada por tremores nervosos, e se sente submergir de prazer em ondas violentas que lhe cortam a respiração, ele sabe que ela é muito mais do que uma coisa sua, muito mais do que um animal domesticado. Sabe que ela é uma parte dele.
Mas hoje, nada. Limita-se a olhar para ela. Na realidade, observa-a a fazer amor com o seu marido, num comboio, à distância. Até porque não é preciso mudar nada do projecto inicial. Porque, à medida que procede a descoberta do texto, o seu desejo aumenta e aumenta, aumenta sempre. Excitar-se com as palavras do marido sob o olhar do amante é uma coisa que lhe trará um prazer novo e poderoso. No final irão masturbar-se juntos, numa casa de banho. Ela em frente ao espelho; ele, atrás. Ele terá cuidado para não ejacular para cima dela, vir-se-á lentamente para o chão, sem a salpicar. Terão de ser fortes para conseguir não se tocar.
Nada de físico, será tudo estritamente como está escrito. E depois, para acabar, o e-mail enviado à chegada. Mal desça do comboio, procurar um ciber-café para enviar a mensagem. É isto, sem dúvida, aquilo que mais o excita. Que o marido saiba sem nunca deixar de duvidar. Enredá-lo no seu próprio jogo. ‘Le Monde’, 600.000 leitores e seguramente o belo número de e-mails. Esta mensagem, de início, fá-lo-á sorrir. Dir-se-á: nada mal. Está escrita de modo apropriado, é divertida. Mas depois a dúvida começará a insinuar-se. Acordaram que, qualquer que seja o seguimento da história, ela negará tudo. Nem uma palavra, nem um indício, nada. Nunca mais se voltará a falar desta viagem.
E pronto, Emmanuel. A minha história acabou. Eu sou o amante. Este é um enunciado performativo. Eu declaro-te guerra.
Antes de enviar o texto, para o esquecer a logo a seguir, mais uma palavrinha para semear definitivamente a dúvida: de noite, aquilo de que ela mais gosta é adormecer enfrunhada na almofada, com a coluna encurvada, e tu (ou eu) colado com suor contra as suas costas.»
E eis o mais comovente:
«É apenas para dizer-lhe: obrigado.
O ‘Le Monde’ de sábado 20 de Julho chegou-me por acaso, esquecido em minha casa por amigos de passagem. Deixei-o ali onde estava, em desarranjo, até hoje à tarde.
A casa está tranquila. Está bom tempo, faz muito calor.
É o momento certo para uma soneca...percebe-me?
Então, li-o. E também eu, como ela, usei o ‘Le Monde’.
E deu-me prazer.
Aquele que me dava prazer deste mesmo modo, está hoje, como dizer, um pouco impedido, pelo menos da forma mais simples e directa. No entanto, sabe que comigo as palavras são eficazes. É por isso que se serviu de si, pelo menos assim o creio, usou as suas páginas, e é por isso justo que eu lhe agradeça por haver-me transmitido a sua mensagem.
Aquele que me dava prazer morreu há já quase cinco anos.
Desde então, creio não nunca mais ter feito uma soneca.
Eu tenho setenta anos.
Obrigada uma vez mais»

Fim.
Rui



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