Novembro 2003.
Nos meses de Julho a Agosto, em cada sábado, o «Le Monde» oferece, no número de fim-de-semana, um conto de 16 páginas aos seus leitores. No Verão de 2002, propuseram-me escrever um, sobre o tema vaguíssimo da viagem, e eu, divertindo-me muito, escrevi as páginas que acabaram de ler. Pareceu-me divertido colocar o mais respeitado dos quotidianos franceses ao serviço da minha pequena fantasia erótica. Ao escrever estas páginas, não me lembro de ter experimentado sequer o mínimo sentimento de inquietude: pareceu-me uma ideia irresistível, e sobretudo perfeitamente inocente.
Nos dias seguintes à publicação, recebi um pouco mais de mil e-mails. Quase todos os meus correspondentes me faziam as mesmas duas perguntas: se era tudo uma invenção ou existia uma mulher de facto que apanhava um comboio verdadeiro no qual fazia realmente aquilo que eu lhe pedia que fizesse? No segundo caso, e assumindo que ela havia apanhado o comboio, o que é que tinha mesmo acontecido?
Antes de mais, sim, escrevi de facto esta história para a jovem senhora com quem vivia na altura, e organizei tudo meticulosamente de modo a que ela a lesse nas condições que havia previsto. Ela não suspeitava de nada: devia juntar-se a mim em férias no Sábado, 20 de Julho; eu tinha-lhe comprado o bilhete de comboio e tinha-lhe dito ao telefone que não se esquecesse de comprar o «Le Monde» para a viagem na manhã do dia da partida. Era para mim uma delícia o pensar em estar à sua espera, ali, no cais.
Naturalmente, como sempre sucede quando se planifica uma coisa ao mais ínfimo pormenor, passei um tempo infinito a imaginar os mil e um grãos de areia que poderiam emperrar a minha máquina performativa. E, como acontece invariavelmente, não sucedeu nada aquilo que havia imaginado, sucedeu algo bem diferente.
Lamento ter de vos desiludir, mas não vos direi o quê. Não vos direi o quê porque tenho intenção de o contar um dia em pormenor, e esse dia ainda não chegou. Direi apenas que se desencadeou uma crise entre a destinatária desta história e o seu autor, que a crise nada tinha que ver com a história mas que por uma espantosa coincidência espoletou na noite anterior à sua publicação, e que se veio a concluir, meses mais tarde, com uma separação tristíssima para ambos.
(Falo de uma coincidência espantosa e é assim mesmo, deste modo racional, que me esforço por considerá-la. Mas é verdadeiramente um esforço enorme: é muito difícil, quando uma coincidência nos assombra a este ponto, não ceder à tentação do pensamento mágico. Não dizer de mim para mim que os deuses que ousei desafiar quiseram dar-me uma pequena lição: a ver se assim aprendes a brincar ao demiurgo).
Mas, em suma, no fim, não: ela, ao comboio, não chegou a apanhá-lo. Telefonou-me na véspera à noite para dizer que o não faria, que não poderia fazê-lo. Assim sendo, apanhei-o eu. Voltei a Paris e fiz eu o trajecto que deveria ser o dela. Ocupei o lugar que ela havia deixado livre, olhei para os vizinhos que teriam sido os seus, fui, até, ao bar, à hora prevista, para ver o que estava a acontecer. Para dizer a verdade, nada de especial. Um dos meus interlocutores fez-me notar, justamente, que o comboio não tinha sido bem escolhido: no Paris-La Rochelle de um sábado à tarde de Julho estão apenas famílias, inúmeras, numerosas e burguesas; toda uma outra inspiração me teria servido o Paris-Marselha de sexta-feira à noite, o ambiente teria sido decisivamente mais quente. É verdade, mas se os contos do «Le Monde» saem ao sábado, o que é que eu posso fazer?
Rui
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