Não sei se chegaste a entrar, no bar, depois de te teres dado conta do que implicava, ou se o estás a descobrir apenas agora, não sei o que pensas mas devo dizer que esta cena me agrada de morte. Agrada-me porque, ao contrário da cena com a surdo-muda graciosa, não se baseia no aleatório, mas decorre de modo preciso do dispositivo que criei. Se o conto acabou de facto por sair no dia previsto, se o comboio transita de facto no dia previsto, se a carruagem restaurante não está em greve, é absolutamente seguro – de outro modo seria desesperante – que um certo número de passageiros, e espero de passageiras, a ela se dirijam à hora indicada, o mesmo é dizer
agora, na esperança de te identificar. Estão aí, ao teu redor. Eu não os conheço, mas convoquei-os dois meses atrás e agora estão aí. Isto sim é literatura performativa, ou não?
És uma belo ser um pouquinho exibicionista, imagino que estejas com o nariz enfiado no jornal, sem coragem para levantar os olhos. Vá lá, levanto-os ligeiramente. Estás em frente da janela. Se estiver escuro, ou se o comboio entrar num túnel, o interior da carruagem reflectir-se-á no vidro e tu poderás vê-los sem te voltares, mas não existem túneis no trajecto, não existem reflexos, apenas a paisagem sombria da Vandeia,
chateaux d’eau, casario baixo, estradas desertas, sob um sol ainda alto no céu.
E eles, nas tuas costas.
Força. Não vale enterrar a cabeça na areia.
Respira fundo e depois volta-te.
Como se nada fosse, com a máxima naturalidade.
Agora. Vá.
Estão todos aí.
Homens, mulheres. Também eles agem como se não fosse nada com eles, mas muitos têm o «Le Monde» na mão.
Olham-te?
Tenho a certeza que te olham. Tenho a certeza que estão a olhar para ti já há alguns minutos, não sentiste os seus olhares cravados nas tuas costas? Aguardavam que te voltasses e agora aí estás, aí estás à sua frente, aí estás como se estivesses nua à sua frente.
Isto é demasiado, não te parece? Começa a parecer uma cena de um filme de terror. A heroína crê ter-se refugiado num lugar seguro, um bar cheio de gente, quando um pormenor aparentemente insignificante lhe revela, de repente, que todas as pessoas à sua volta, mesmo as mais aparentemente insignificantes, fazem parte do complot. Espiões, zombies, invasores extra-terrestres, pouco importa quem sejam, mas todos lêm o «Le Monde», é essa a sua senha de reconhecimento, acercam-se, e o cerco aperta-se.
Sentes-te apanhada na armadilha?
Ora, ora, era uma brincadeira. A história não é assim. Procura pensar um pouco. Antes de mais, não és a única suspeita, tenho a certeza que, no bar, outras mulheres estão a folhear um exemplar do «Le Monde». Quantas? Uma, quatro, onze? A partir, digamos, da terceira, considerarei isto um êxito. Eu, a estas mulheres, não pedi apenas que comparecessem, de preferência sós e em grande número para que não deixassem o campo aberto a uma orda de machos com cio, eu a estas mulheres pedi mais qualquer coisa. Ou melhor, estou a pedir-lhes neste momento, mas tenho a fundada suspeita que elas, ao contrário de ti, não tenham respeitado rigorosamente as indicações de leitura, e por isso tenham descoberto este parágrafo antes. O que eu peço a estas mulheres é o seguinte: se leram a minha carta e se se excitaram um pouco, ainda que só um bocadinho, estão dentro do jogo, e durante a derradeira hora de viagem, entre Niort e La Rochelle, comportai-vos como se fossem vocês a destinatária. É um papel fácil de interpretar, basta que leiam o «Le Monde» bebendo um café e uma água mineral no bar do TGV e que estejam atentas ao que acontece em vosso redor – e também dentro de vocês. É um papel simples, mas pode ser extremamente sexy. Conto com a vossa colaboração.
Ora bem, está tudo pronto, recordo-vos as regras do jogo: nesta carruagem restaurante estão um certo número de homens e mulheres que leram esta história, e que, com objectivos recôndidos diferentes, mas substancialmente sensuais, procuram identificar a heroína. A heroína és tu, mas és a única a sabê-lo e as outras mulheres fazem de conta que são tu. A heroína já há duas horas que está molhada como uma gota, e as outras mulheres começam a ficar molhadas elas também. Ademais, ao contrário da heroína, elas leram a história até ao fim, logo sabem o que acontece nas poucas páginas que restam. Esta situação deixa-me doido, fico louco por, graças ao «Le Monde», a coisa acontecer mesmo,
realmente, mas em compensação não faço a mínima ideia de como controlá-la. Demasiadas personagens, demasiados parâmetros. Agora não controlo mais nada. Deixo a presa. Continuo, é óbvio, a imaginar: um ballet de olhares, sorrisos discretos, piscadelas de olho entre raparigas; uma risada sufocada, talvez uma risada incontrolável, se calhar uma manifestação violenta, ou então um tumulto surdo, porque não? Alguém reclama que está desgostoso, um outro que não compra o jornal de Hubert-Beuve-Méry para ler quejandas porcarias; talvez um diálogo picante e sofisticado do género eu-sei-que-tu-sabes-que-eu-sei («E o que é que sabe?» «Que ela tema a cona em chamas, cara senhora»), e porventura duas pessoas chegadas ao bar sem se conhecerem saem juntas. Pergunto-me o que acha uma pessoa que se encontre no bar sem ter lido o «Le Monde»: passa-lhe tudo ao lado? Ou dá-se conta de que está a acontecer alguma coisa, sem saber o quê? Pergunto-me, imagino, mas já não decido, agora deixo que cada um improvise a sua parte e espero que tu chegues à hora prevista, dentro de uma hora, para me contares tudo, na cama e depois em frente a um prato gigante de marisco. Decide tu por que ordem, como vês não sou assim tão despótico.
Rui