«Há um poema do Fernando Pessoa onde ele faz um requiem aos barbeiros e a si próprio que começa nestes termos: «Entrei no barbeiro no modo do costume/com o prazer de me ser fácil entrar/sem constrangimento.» Sem constrangimento? Esta, francamente causa-me espanto.»
[José Cardoso Pires, «Salão de Espelhos», in
A Cavalo do Diabo, p. 148]
Causava espanto ao José Cardoso Pires, e causa-me espanto a mim. Não há sítio mais constrangedor que este tipo de estabelecimentos. Tenho inveja daquelas pessoas que discutem a bola com os barbeiros e as férias com as cabeleireiras. Há anos que vou cortar o cabelo ao mesmo sítio – e a conversa nunca passa disto: «Olhe não fiz marcação, não sei se pode ser agora...». «Tem preferência?». Respondo que não. «Então pode sentar-se ali naquela cadeira». Sentado na cadeira e de cabeça lavada, fazem-me a pergunta retórica: «Então como é que vai ser?» E eu finjo que a minha resposta vai condicionar o resultado final: «Não queria muito curto». Como não tenho «preferência», tenho sido vítima dos diferentes profissionais que ali trabalham. Quando vejo quem me calhou na rifa, já sei à partida se vai ficar mais curto ou mais comprido. No fim, mostram-me sempre a parte de trás da obra de arte, através de um espelho – um exercício sado-masoquista que só serve para confirmar a progressão da careca. «Está bom assim?».
Voltei lá na segunda feira, decidido a evitar a conversa introdutória do costume. Disse «boa tarde», mas não disse o óbvio. Achei que era óbvio que estava ali para cortar o cabelo e não para comer um bitoque. Depois do embaraço que o meu silêncio causou, perguntam-me se tinha «preferência». Devia ter dito que sim, que queria o bitoque «mal passado».
Filipe