ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

sexta-feira, setembro 10, 2004

 

Salão de espelhos

«Há um poema do Fernando Pessoa onde ele faz um requiem aos barbeiros e a si próprio que começa nestes termos: «Entrei no barbeiro no modo do costume/com o prazer de me ser fácil entrar/sem constrangimento.» Sem constrangimento? Esta, francamente causa-me espanto.»
[José Cardoso Pires, «Salão de Espelhos», in A Cavalo do Diabo, p. 148]

Causava espanto ao José Cardoso Pires, e causa-me espanto a mim. Não há sítio mais constrangedor que este tipo de estabelecimentos. Tenho inveja daquelas pessoas que discutem a bola com os barbeiros e as férias com as cabeleireiras. Há anos que vou cortar o cabelo ao mesmo sítio – e a conversa nunca passa disto: «Olhe não fiz marcação, não sei se pode ser agora...». «Tem preferência?». Respondo que não. «Então pode sentar-se ali naquela cadeira». Sentado na cadeira e de cabeça lavada, fazem-me a pergunta retórica: «Então como é que vai ser?» E eu finjo que a minha resposta vai condicionar o resultado final: «Não queria muito curto». Como não tenho «preferência», tenho sido vítima dos diferentes profissionais que ali trabalham. Quando vejo quem me calhou na rifa, já sei à partida se vai ficar mais curto ou mais comprido. No fim, mostram-me sempre a parte de trás da obra de arte, através de um espelho – um exercício sado-masoquista que só serve para confirmar a progressão da careca. «Está bom assim?».
Voltei lá na segunda feira, decidido a evitar a conversa introdutória do costume. Disse «boa tarde», mas não disse o óbvio. Achei que era óbvio que estava ali para cortar o cabelo e não para comer um bitoque. Depois do embaraço que o meu silêncio causou, perguntam-me se tinha «preferência». Devia ter dito que sim, que queria o bitoque «mal passado». Filipe



<< Home


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Arquivo

julho 2004   agosto 2004   setembro 2004   outubro 2004   novembro 2004   dezembro 2004   janeiro 2005   fevereiro 2005   março 2005   abril 2005   maio 2005   setembro 2005   outubro 2005   novembro 2005   dezembro 2005   janeiro 2006   fevereiro 2006   março 2006   abril 2006   maio 2006   junho 2006   julho 2006   agosto 2006   setembro 2006   outubro 2006   novembro 2006   dezembro 2006   janeiro 2007   fevereiro 2007   março 2007  

Outros Blogues

Abrupto
Alice Geirinhas
Álvaro Cunhal (Biografia)
AspirinaB
Babugem
Blasfémia (A)
Bombyx-Mori
Casmurro
Os Canhões de Navarone
Diogo Freitas da Costa
Da Literatura
Espectro (O)
Espuma dos Dias (A)
Estado Civil
Fuga para a Vitória
Garedelest
Homem-a-Dias
Estudos Sobre o Comunismo
Glória Fácil...
Memória Inventada (A)
Meu Inferno Privado
Morel, A Invenção de
Não Sei Brincar
Origem das Espécies
Portugal dos Pequeninos
Periférica
Prazeres Minúsculos
Quarta República
Rui Tavares
Saudades de Antero
Vidro Duplo











Powered by Blogger

This page is powered by Blogger. Isn't yours?