Mantinha-se em pé com dificuldade. Mal se podia ter nas pernas. Ficou um instante parado, indeciso sobre o que iria fazer. Passou as mãos nervosas pelo cabelo, pela testa coberta de suor, e deixou-se finalmente cair no sofá. Chegara no dia anterior, sedado, exausto, com dificuldades respiratórias. Dali, na sala de convívio daquela clínica psiquiátrica de Buenos Aires, El Gran Maradona conseguia ouvir o bramido indistinto dos jornalistas aglomerados nos portões da entrada. Teve um acesso de tosse, como se fosse um furacão. De olhar fixo e a cabeça enterrada nas golas da canadiana, um doente deteve-se mesmo à sua frente, com um cigarro à altura da boca, entalado entre dois dedos sujos de nicotina. Chupou o cigarro até ao filtro. Por entre os lábios arroxeados, com os cantos cobertos de saliva ressecada da nicotina, libertou a última baforada para o ar. Diego olhou em volta. Homens e mulheres andavam de um lado para o outro, de cá para lá, como leões presos numa jaula. Num canto da sala, sentada numa cadeira, embrulhada em si própria, apática, perfeitamente imóvel, uma mulher de cabelos cinzentos, com a palidez de Saturno, vazia de pensamentos e olhos desvidrados. Em pé, um jovem de calças de ganga coçadas e uma t-shirt branca, de braços estendidos, fixava uma mancha de tinta na parede com o olhar de um cavalo a morder. Sempre que se sentia observado, como naquele momento, baixava os olhos, como se tivesse medo de revelar os pensamentos. Confundido em visões vagas e indefinidas, estava convencido que todos os outros suspeitavam dele. Sentado na mesa de madeira do lado direito de Diego, um velhinho com a testa cheia de verrugas, sobrancelhas unidas e farfalhudas, olhos engelhados, barba a escorrer da boca. Parecia ter a mesma idade do planeta Terra. Paralisado com um garfo no ar, comia uma sopa de espinafres, verde como um relvado. Diego deixou-se subitamente levar pelo movimento passivo das imagens do passado, os primeiros pontapés na bola na equipa infantil dos Cebollitas, o cheiro a humidade das regas antes dos jogos, os 111 golos marcados ao serviço dos Argentinos Juniores, o Boca Juniores, o primeiro contrato na Europa, no F. C. Barcelona, a transferência para o Nápoles, um clube que na época anterior estivera quase a descer de divisão, a euforia do primeiro scudetto, aquela canção napolitana típica, ‘o surdato ‘mammurato (o soldado enamorado), que os fãs cantavam durante os desafios. A Nápoles das ruas e vielas barulhentas, dos bordéis e das casa de jogo, das mulheres de má vida, a cidade da massa folhada e do macarrão, dos chouriços e das morcelas, das almôndegas e das chirivias, dos casatielli, dos raffioli. O regresso à Argentina, os campeonatos do mundo, sobretudo aquela vitória sobre a Inglaterra, a mão de Deus vingando toda uma nação. Agora estava ali, gordo como um hipopótamo, com a cabeça maior que uma abóbora, a fazer mais uma cura de desintoxicação, acabado para sempre, entre indivíduos que arrastam os pés e acendem cigarros uns atrás dos outros. Voltou a encarar a realidade que o rodeava. O velho da sopa arrancava agora as côdeas ao pão, envolto no numeroso povo dos sonhos. Outro gritava, dizendo: “enfermeira, borrei-me todo”. Começou a esbracejar e a mandar pontapés no espaço vazio do invisível. Os enfermeiros agitaram-se, seguraram no indivíduo e arrastaram-no como um carneiro para a degola. Na janela, com a testa contra o vidro, uma mulher contemplava a paisagem e a luz oblíqua que o sol espalhava sobre o mar, ao longe. Um homem nos seus quarenta anos dirigiu-se a ela com gestos de quem pede lume. A mulher acendeu-lhe o isqueiro debaixo do nariz, ele juntou avidamente as mãos em concha por cima da chama trémula e aproximou o cigarro. Logo se seguida voltou-se para Maradona. Alguém finalmente o tinha reconhecido, pensou Diego. Estendeu a mão e apresentou-se: “Como está, o meu nome é Diego Armando Maradona”. "Muito prazer, eu sou o Napoleão".
João Pedro