Ainda a propósito da entrevista de José Sócrates. A trapalhice, o exibicionismo parolo, as citações a granel. Tudo isso é verdade, já foi dito. Mas, pensando bem, e comparando com os outros candidatos à liderança do PS, é injusto. Veja-se o caso de Manuel Alegre no seu último romance, Rafael. Só autores citados são 84, muitos deles, ainda por cima, mais do que uma, duas, três, quatro vezes (em Rilke, por exemplo, o leitor tropeça 8 vezes). Manuel Alegre cita mais depressa do que a própria sombra. Sócrates, bem vistas as coisas, limitou-se a citar 9 nomes: Miguel Torga, Sartre, Erich Maria Remarque, Fellini, Voltaire, Eduard Bernstein, Pessoa, Karl Popper e Vinicius de Moraes. Em Alegre há um verdadeiro fogo cerrado de referências a escritores, filósofos, pintores, músicos, cineastas e cantores. Frases entre parêntesis, poemas em itálico, sentenças em francês, versos em italiano. Uma barafunda onde se misturam André Breton, Marx, Semprum, Camilo, Rimbaud, Joyce, René Char, Sartre, Eça, Mandelstam, Sá de Miranda, Lorca, Jean Moulin, Camões, Camus, Juliette Gréco, Godard, Pero Vaz de Caminha, “o mestre Dante”, Henri Michaux, Silva Gaio, Churchill, Aquilino, Conrad, Oliveira Martins, Bernardim, Freud, Gil Vicente, Sarmento Pimentel, Picasso, Guido Cavalcanti, Leo Ferré, Aragon, Lacan, Eugénio de Andrade, Omar Kayham, Plekhanov, Feuerbach, Vieira da Silva, Malraux, El Greco, Mozart, Erasmo. Tudo serve de pretexto para Alegre convocar referências cultíssimas. E as variantes na forma como introduz as citações são inesgotáveis: “aquilo a que Hölderlin chamaria”; “Nietzsche tinha razão”; “assim cantava o poeta Fernando Assis Pacheco”; “o chinês de Fernão Mendes Pinto tinha razão”; “o país quietinho de que falava Teixeira de Pascoaes”; “seguir a lição de Sthendal”; “alguns de vocês deviam ler Trotski”; “recitando Herberto Helder”, “você não leu Thomas More?”. Há citações que são autênticos achados, como “o orgasmo é a base da saúde mental” (Willelm Reich). Exemplos tão originais como “a burocracia francesa parece saída das páginas de Kafka” ou “a música de Bach é uma equação matemática”. E, sabe-se lá porquê, uma referência inesperada ao “caralho de Guerra Junqueiro”. Como diria Manuel Maria Carrilho, apoiante da candidatura de Manuel Alegre: “Até o próprio Sócrates terá, se calhar, descoberto que o Oxford Dictionary of Quotations não substitui... Oxford, ou seja, que citar muitos autores não traduz sabedoria, antes revela, muitas vezes, o seu contrário”.
João Pedro