ESPLANAR

JOÃO PEDRO GEORGE
esplanar@hotmail.com

quinta-feira, agosto 12, 2004

 

«Há coisas que já não estou disposta a aceitar. Eu já não tenho vinte anos»

Ao ouvir isto, comecei a prestar atenção. Eram duas raparigas a almoçar na mesa ao lado. A que já não tem vinte anos já não tem, de facto, vinte anos. Tinha o cabelo apanhado atrás, sardas e fumava maravilhosamente, como num filme. Braço direito no ar, cotovelo apoiado no braço da cadeira; braço esquerdo cruzado sobre a cintura, mão esquerda a tocar no cotovelo direito. O fumo a elevar-se no ar continuando a linha vertical do braço. Perfeito. Foi a primeira e, infelizmente, a última coisa que lhe ouvi. Isto porque a amiga, a que estava do meu lado, não deixou.
«Ai o pôr-do-sol, é pá, era mesmo lindo», disse a amiga. Calou-se e ao fim de dois minutos repetiu a mesma frase, palavra por palavra. A outra fumava e olhava, fumava e olhava. «Temos que ligar à Daniela, que ela merece imenso». E telefonou logo. Falava muito alto e dizia tudo de uma forma demasiado expressiva, dramática mesmo. Comecei, por isso, a olhar para o corpo dela à procura de indícios; para o corpo não, para a postura. «Ai, o pôr-do-sol, emocionei-me, e desatei a chorar»: e repetia isto incessantemente. Muito direita, inclinada para a frente, veemente. O corpo, de ginásio e praia, estava afinado e retesado por uma compulsão qualquer. «Bem, tinha tantas saudades tuas, é que tinha mesmo» e repetia também isto, alternando com o pôr-do-sol. A outra continuava calada, a fumar. «Olha, sabes, sinto-me bem, sinto-me mesmo bem. O pôr-do-sol, era lindo lindo. Estou tão feliz...olha vou ligar à Teresa que ela merece imenso.» A outra apagou o cigarro, olhou de soslaio para o relógio e virou-se para pedir a conta, mostrando-me finalmente o nó em que prendia o cabelo. Rui



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