A notícia da morte de Bin Laden, supostamente causada por febre tifóide, pode ser falsa, mas tem algo mais que se lhe diga do que o tom de justiça poética de uma morte tão desejada se dever a uma doença tão reles.
A morte, hoje por febre, tal como, ontem, por insuficiência renal, surge destituída de conotações políticas: assim, não teria sido morto «por nós». Teria sido algo «natural», insusceptível portanto de fazer desabar sobre o nosso mundo mais vinganças imprevisíveis e, por isso, incontroláveis. Esta vontade de neutralizar o carácter definitivo da morte, de o tornar asséptico de modo a o tornar inócuo surge na morte de Bin Laden na sua forma mais literal, mas nem por isso é a mais interessante.
As teorias da conspiração sobre o 11 de Setembro são, a este respeito, o mais relevante do ponto de vista cultural. A «má fé» de que falavam Fernando Gil e Paulo Tunhas em
Impassesderrama-se aí com uma inconsciência sublime: a vontade de reduzir a barbaridade daquelas mortes a uma «teoria», ainda que conspirativa, a vontade de evitar o estrangeiro radical e transferir a responsabilidade por aquilo para o nosso lado (a conspiração interna, a inacção do governo, até a «culpa histórica»), a vontade de dar um sentido mundano e familiar (o dinheiro ou o petróleo) àquilo que é da ordem do sem sentido (logo, inegociável), tudo isso releva de uma vontade de salvaguarda do indivíduo habituado a ser indiferente à História face à impossibilidade de viver com a realidade que se abateu sobre ele. Com todas as suas incongruências, as teorias da conspiração são ainda assim, porventura assim mesmo, de uma lógica quase sem falhas, uma lógica de autodefesa de um psiquismo primário, que prefere como causa do mal absoluto a vulgaridade do seu mundo à estranheza do desconhecido.
Claro que os amantes de boas, elaboradas, teorias da conspiração só podem depreciar as «teorias alternativas», elas são de facto incrivelmente toscas. Sucede que elas não são tanto fenómenos da razão como da vontade, ilustram bem como a vontade é subterrânea à razão e a submete para melhor permitir a quem assim se auto-ilude continuar a viver como habitualmente no mundo moderno a que não se vai deixar, em qualquer caso, de pertencer. O anti-americanismo militante (face real do anti-bushismo) é tão só um sintoma, sem comparação com o anti-semitismo de outros tempos. Insultar de estúpidos ou falhos de carácter os adeptos de tais teorias é simplesmente não perceber a função psicoterapêutica que têm essas «alterverdades» (julgo ter acabado de inventar este neologismo, mas provavelmente estou enganado).
Isto mesmo permite também perceber o motivo de a ameaça do fundamentalismo terrorista islâmico às nossas sociedades ser objecto de «forclusão», ao contrário do que sucedeu com a ameaça totalitária soviética. É que, como a Guerra Fria demonstrou, o mundo soviético era ainda algo com o qual se podia dialogar, isto é, sendo totalitário era ainda assim moderno, não se auto-excluía de uma racionalidade imanente à existência histórica. Face a ele uma resistência era pensável e exequível. Face ao irredentismo terrorista, o homem tardo-moderno, niilista passivo, prefere a negação até ao ponto da auto-negação, a confrontar-se com um inimigo exterior à lógica do seu mundo. Fernando Gil, nos textos de controvérsia depois de 2001, distinguiu aliás em várias ocasiões o «perigo vermelho» do islamismo radical através dessa dimensão racional que o primeiro manteve, descendente que foi das altas esperanças emancipadoras e progressistas do pensamento de Marx (sem hífen para Lenine). Entre a democracia liberal e o totalitarismo soviético, o choque foi entre modelos de sociedades modernas, nascidas da autonomização do poder do Estado face aos poderes religiosos. Esse processo, no Ocidente, arrastou-se por séculos e custou milhões de vida em guerra que ficaram na História como Religiosas. Nelas, as Igrejas foram vencidas e forçadas à tolerância (que hoje há quem julgue coisa pouca). No mundo árabe, falho de centralização quer religiosa quer política, tal dinâmica não se pode reproduzir, e a persistência em formas pré-modernas de organização social é tudo menos acidental, pelo que não será alterável por simples voluntarismo de terceiros.
Sobra, assim, o desejo de uma causalidade não-politica para compreender o destino dos seus símbolos (Bin Laden hoje, outro no futuro) e a crença na redução aos termos mais banais do nosso mundo de tudo aquilo que surge como radicalmente estranho a ele (como no «pensamento» do agora na moda Zizek). A notícia da morte de Bin Laden pode ser tão pouco factual como as teorias conspirativas do 11 de Setembro, mas ambas são peças de um todo bem real, o de uma psicologia vulgar digna do termo (de novo Gil e Tunhas) «suicídio ideológico». Mas, como denunciar a má-fé em casos concretos não me parece programa suficiente, resta saber como melhor curar esta nossa febre.
CL